11/15/2017

Coisas que só eu sei (Conto), de Camilo Castelo Branco


Coisas que só eu sei

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Na última noite do Carnaval, que foi justamente aos 8 dias do mês de fevereiro, do corrente ano, pelas 9 horas e meia da noite entrava no Teatro de São João, desta heroica e muito nobre e sempre leal cidade, um dominó de cetim.

Dera ele os dois primeiros passos no pavimento da plateia, quando um outro dominó de veludo preto veio colocar-se-lhe frente a frente, numa contemplação imóvel.

O primeiro demorou-se um pouco a medir as alturas do seu admirador, e virou-lhe as costas com indiferença natural.

O segundo, momentos depois, aparecia ao lado do primeiro, com a mesma atenção, com a mesma penetração de vista.

Desta vez o dominó-cetim aventurou uma pergunta naquele desgracioso falsete, que todos nós conhecemos:

— Não quer mais do que isso?

— Do que isso!...— respondeu uma máscara que passava por casualidade, esganiçando-se numa risada que raspava o tímpano. — Olha do que isso!... Já vejo que és pulha!...

E retirou-se repetindo — Do que isso... do que isso...

Mas o dominó-cetim não sofreu, ao que parecia, a menor contrariedade com esta charivari. E o dominó-veludo nem sequer acompanhou com os olhos o imprudente que viera embaraçar-lhe uma resposta digna da pergunta, fosse ela qual fosse.

O cetim (fique assim conhecido para evitarmos palavras e tempo, que é um preciosíssimo cabedal), o cetim, desta vez, encarou com mais alguma reflexão o veludo. Conjeturou suposições fugitivas, que se destruíam mutuamente. O veludo era forçosamente uma mulher. A pequenez do corpo, cuja flexibilidade o dominó não encobria; a delicadeza da mão, que protestava contra o ardil mentiroso de uma luva larga; a ponta de verniz, que um descuido, no lançar do pé, denunciara debaixo da fímbria do veludo, este complexo de atributos, quase nunca reunidos num homem, captaram as sérias atenções do outro, que, incontestavelmente, era um homem.

— Quem quer que sejas — disse o cetim — não te gabo o gosto! Tomara eu saber o que vês em mim, que tanta impressão te faz!

— Nada — respondeu o veludo.

— Então, deixa — me, ou diz-me alguma coisa ainda que seja uma sensaboria, mais eloquente que o teu silêncio.

— Não te quero embrutecer. Sei que tens muito espírito, e seria um crime de lesa— Carnaval se te dissesse alguma dessas graças salobras, capazes de fazer calar para todo o sempre um Demóstenes de dominó.

O cetim mudou de opinião a respeito do seu perseguidor. E não admira que o recebesse com rudeza no princípio, porque, em Portugal, um dominó em corpo de mulher, que passeia “sozinha” num teatro, permite umas suspeitas que não abonam as virtudes do dominó, nem lisonjeiam a vaidade de quem lhe recebe o conhecimento. Mas a mulher em quem recai semelhante hipótese não conhece Demóstenes, nem diz leso-carnaval, nem aguça a frase com o adjetivo salobras.

O cetim arrependeu-se da aspereza com que recebera os atenciosos olhares daquela incógnita, que começava a fazer-se valer como tudo aquilo que apenas se conhece por uma face boa. O cetim juraria, pelo menos, que aquela mulher não era estúpida. E, seja dito sem tenção ofensiva, já não era insignificante a descoberta, porque é mais fácil descobrir um mundo novo que uma mulher ilustrada. É mais fácil ser Cristóvão Colombo que Emílio Girardin.

O cetim, ouvida a resposta do veludo, ofereceu-lhe o braço, e gostou da boa vontade com que lhe foi recebido.

— Conheço — diz ele — que o teu contato me espiritualiza, belo dominó...

Belo, me chamas tu!... É realmente uma leviandade que te não faz honra!... Se eu levantasse esta sanefa de seda, que me faz bonita, ficavas como aquele poeta espanhol que soltou uma exclamação de terror na presença de um nariz... que nariz não seria, santo Deus!... Não sabes essa história?

— Não, meu anjo!

Meu anjo!... Que graça! Pois eu ta conto. Como o poeta se chama não sei, nem importa. Imagina tu que és um poeta, fantástico como Lamartine, vulcânico como Byron, sonhador como Mac-Pherson e voluptuoso como Voltaire aos 60 anos. Imagina que o tédio desta vida chilra que se vive no Porto te obrigou a deixar no teu quarto a pitonisa descabelada das tuas inspirações, e vieste por aqui dentro a procurar um passatempo nestes passatempos alvares de um baile de Carnaval. Imagina que encontravas uma mulher extraordinária de espírito, um anjo de eloquência, um demônio de epigrama, enfim, uma destas criações miraculosas que fazem rebentar uma chama improvisa no coração mais de gelo, e de lama, e de toucinho sem nervo. Ris? Achas nova a expressão, não é assim? Um coração de toucinho parece-te uma ofensa ao bom senso anatômico, não é verdade? Pois, meu caro dominó, há corações de toucinho estreme. São os corações, que resumam óleo em certas caras estúpidas... Por exemplo... Olha este homem redondo, que aqui está, com as pálpebras em quatro refegos, com os olhos vermelhos como os de um coelho morto, com o queixo inferior pendente, e o lábio escarlate e vidrado como o bordo de uma pingadeira, orvalhada de banha de porco... Esta cara não te parece um grande rijão? Não crês que este baboso tenha um coração de toucinho?

— Creio, creio; mas fala mais baixo que o desgraçado está gemer debaixo do teu escalpelo...

— És tolo, meu cavalheiro! Ele entende me lá! É verdade, aí vai a história do espanhol, que tenho que fazer...

— Então queres deixar-me?

— E tu?. Queres que eu te deixe?

— Palavra de honra que não! Se me deixas, retiro-me...

— És muito amável, meu querido Carlos...

— Conheces-me?!

— Essa pergunta é ociosa. Não és tu Carlos!

— Já falaste comigo na tua voz natural?

— Não; mas começo a falar agora.

E com efeito falou. Carlos ouviu um som de voz sonora, metálica e insinuante. Cada palavra daqueles lábios misteriosos saía vibrante e afinada como a nota de uma tecla. Tinha aquele não-sei-quê que só escuta nas salas onde falam mulheres distintas, mulheres que obrigam a gente a prestar fé aos privilégios, às prerrogativas, aos dons muito peculiares da aristocracia do sangue. Todavia, Carlos não se recordava de ter ouvido semelhante voz, nem semelhante linguagem.

Uma aventura de romance! dizia ele lá consigo, enquanto o dominó-veludo, conjeturando o enleio em que pusera o seu entusiasta companheiro, continuava a fazer gala do mistério, que é de todas as alfaias aquela que mais alinda a mulher! Se elas pudessem andar sempre de dominó! Quantas mediocridades em inteligência rivalizariam com Jorge Sand! Quantas fisionomias infelizes viveriam com a fama da mulher de Abdel-Kader!

— Então quem sou eu?— prosseguiu ela. — Não me dirás?... Não dizes... Pois então, tu és Carlos, e eu sou Carlota... Fiquemos nisto, sim?

— Enquanto eu não souber o teu nome, deixa-me chamar-te de “anjo”.

— Como quiseres; mas sinto dizer-te que não és nada original! Anjo! É um apelido tão safado como Ferreira, Silva, Sousa, Costa... et cetera. Não vale a pena questionarmos: batiza-me à tua vontade. Ficarei sendo o teu “anjo de Entrudo”. E a história?... Imagina que te possuías de um amor impetuoso por essa mulher, que fantasiaste linda, e insensivelmente lhe curvaste o joelho, pedindo-lhe uma esperança, um sorriso afetuoso através da máscara, um aperto convulsivo de mão, uma promessa, ao menos, de se mostrar um, dois, três anos depois. E essa mulher, cada vez mais sublime, cada vez mais literata, cada vez mais radiosa, protesta eloquentemente contra as tuas instâncias, declarando-se muito feia, indecentíssima de nariz, horrível até, e, como tal, pesa-lhe na consciência matar as tuas cândidas ilusões, levantando a máscara. Tu que a não crês, instas, súplicas, abrasas-te num ideal que toca as extremas do ridículo, e estás capaz de lhe dizer que te abolas o crânio com um tiro de pistola, se ela não levanta a cortina daquele mistério que te dilacera uma por uma as fibras do coração. Chamas-lhe Beatriz, Laura, Fornarina, Natércia, e ela diz-te que se chama Custódia, ou Genoveva para te aguar a poesia desses nomes, que, na minha humilde opinião, são completamente fabulosos. O dominó quer fugir-te ardilosamente, e tu não lhe deixas um passo livre, nem um dito espirituoso a outro, nem um lançar de olhos para as máscaras, que a fixam como quem sabe que está ali uma rainha, envolta naquele manto negro. Por fim, a tua perseguição é tal que a desconhecida Desdêmona finge assustar-se, e sai contigo ao salão do teatro para levantar a máscara. Arfa-te o coração na ansiedade de uma esperança: sentes o júbilo do cego de nascimento, que vai ver o sol; estremeces como a criança a quem vão dar um bonito, que ela não viu ainda, mas imagina ser quanto o seu coração infantil ambiciona neste mundo... Ergue-se a máscara!... Horror!... Vês um nariz... Um nariz-pleonasmo, um nariz homérico, um nariz Maio que o do duque de Choiseul, onde cabiam três jesuítas a cavalo! Recuas! Sentes despregar-se-te o coração das entranhas, coras de vergonha e foges desabridamente...

— Tudo isso é muito natural.

—  Pois não há nada mais artificial, meu caro senhor. Eu lhe conto o resto, que é o mais interessante para o mancebo que faz do nariz de uma mulher o termômetro de avaliar-lhe a temperatura do coração. Imagina, meu jovem Carlos, que saíste do teatro depois, e entraste na Águia de Ouro a comer ostras, segundo o costume dos elegantes do Porto. E quando pensavas, ainda aterrado, na aventura do nariz, te aparecia o fatídico dominó, e se assentava ao teu lado, silencioso e imóvel, como a larva das tuas asneiras, cuja memória procuravas delir na imaginação com os vapores do vinho... Perturba-se-te a digestão, e sentes contrações no estômago, que te ameaçam com o vômito. A massa enorme daquele nariz figura-se-te no prato em que tens a ostra, e já não podes levar à boca um bocado do teu apetitoso manjar sem um fragmento daquele fatal nariz à mistura. Queres transigir com o silêncio do dominó; mas não podes. A inexorável mulher aproxima-se de ti, e tu, com um sorriso cruelmente sarcástico, pedes-lhe que te não entorne com o nariz o copo de vinho. Achas isto natural, Carlos?

— Há aí crueldade demais... O poeta devia ser mais generoso com a desgraça, porque a missão do poeta é a indulgência não só para as grandes afrontas, mas até para os grandes narizes.

— Será; mais o poeta, que transgrediu a sublime missão de generosidade para com as mulheres feias, vai ser punido. Imagina que aquela mulher, pungida pelo sarcasmo, levanta a máscara. O poeta ergue-se, e vai fugir com grande escândalo do dono da casa, que naturalmente tem a sorte do boticário de Nicolau Tolentino. Mas... Vingança do céu!... aquela mulher ao levantar a máscara arranca do rosto um nariz postiço, e deixa ver a mais famosa cara que o céu iluminar há seis mil anos! O espanhol que ajoelhar àquela dulcíssima visão de um sonho, mas a nobre andaluza repele-o com um gesto, onde o desprezo está associado à dignidade mais senhoril.

***

Carlos cismava na aplicação da anedota, quando o dominó disse-lhe, adivinhando-lhe o pensamento:

— Não creias que eu seja mulher de nariz de cera, nem me suponhas capaz de assombrar-te com a minha fealdade. A minha modéstia não vai tão longe... Mas, meu pacientíssimo amigo, há em mim um defeito pior que um nariz enorme: não é físico nem moral; é um defeito repulsivo e repelente: é uma coisa que eu não sei exprimir-te com a linguagem do inferno, que é a única e mais eloquente que eu sei falar, quando me lembro que sou assim defeituosa!

— És uma enigma!... — atalhou Carlos, embaraçado, e convencido de que encontrara um tipo maior que os moldes tacanhos da vida romanesca em Portugal.

— Sou, sou! — acudiu ela com rapidez — sou aos meus próprios olhos um dominó, um continuado carnaval de lágrimas... Está bom! Não quero tristezas... Se me tocas na tecla do sentimentalismo, deixo-te. Eu não vim aqui fazer papel de dama dolorida. Soube que estavas aqui, procurei-te, esperei-te mesmo com ansiedade, porque sei que és espirituoso, e podias, sem prejuízo da tua dignidade, ajudar-me a passar algumas horas de ilusão. Fora daqui, tu ficas sendo Carlos, e eu serei sempre uma incógnita muito grata ao seu companheiro. Agora acompanha-me: vamos ao camarote 10 da segunda ordem. Conheces aquela família?

— Não.

— É uma gente da província. Não digas tu nada; deixa-me falar a mim, e verás que não passas mal... É muito orgulho, não achas?

— Não acho, não, minha querida; mas eu antes queria não desperdiçar estas horas porque fogem. Tu vais falar, mas não é comigo. Sabes que tenho ciúmes de ti?

— Sei que tens ciúmes de mim... Sabes tu que eu tenho um profundo conhecimento do coração humano? Já vês que não sou a mulher que imaginas, ou quererias que eu fosse. Não comeces a desvanecer-te com uma conquista esperançosa. Faz calar o teu amor-próprio, e emprega a tua vaidade em bloquear com ternuras calculadas uma inocente a quem possas fazer feliz, enquanto a enganas...

— Julgas, portanto, que te minto!...

— Não julgo, não. Se mentes a alguém é a ti próprio: bem vês que não te creio... Tempo perdido! Anda, vem comigo, senão...

— Senão... O quê?

— Senão... Olha.

E a melindrosa desconhecida largou-lhe o braço com delicadeza, e retirara-se, apertando-lhe a mão.

Carlos, sinceramente comovido, apertou aquela mão, com o frenesi apaixonado de um homem que quer suster a fuga da mulher por quem se mataria.

— Não — exclamou ele com entusiasmo — não me fujas, porque me levas a esperança mais bela que o meu coração concebeu. Deixa-me adorar-te, sem te conhecer!... Não levantes nunca esse véu... Mais deixa-me ver a face da tua alma, que deve ser a realidade de um sonho de vinte e sete anos...

— Estás dramático, meu poeta! Eu sinto realmente a minha pobreza de palavras garrafais... Queria ser uma vestal de estilo fervente para sustentar o fogo sagrado do diálogo... O monólogo dever cansar-te, e a tragédia desde Sófocles até nós não pode dispensar uma segunda pessoa...

— És um prodígio...

— De literatura grega, não é verdade? ainda sei muitas outras coisas da Grécia. A Laís também era muito versada, e repetia as rapsódias gregas com um garbo sublime; mas a Laís era... Sabes tu o que ela era?... E serei eu o mesmo? Já vês que a literatura não é sintoma de virtudes dignas da tua afeição...

Tinham chegado ao camarote na segunda ordem. O dominó-veludo bateu, e a porta foi, como devia ser, aberta.

A família que ocupava o camarote compunha-se de muitas pessoas, sem tipo, vulgaríssimas, e prosaicas demais para captarem a atenção de um leitor avesso a trivialidades. Todavia, estava aí uma mulher que valia um mundo, ou coisa maio que o mundo — o coração de um poeta.

As rosas purpurinas dos vinte anos tinham-lhe sido crestadas pelo hálito abrasado dos salões. A placidez extemporânea de uma vida agitada via-se-lhe no rosto protestando não contra os prazeres, mas contra a debilidade de um sexo que não pode acompanhar com a matéria as evoluções desenfreadas do espírito. Mas que olhos! Mas que vida! Que eletricidade no frenesi daquelas feições! Que projeção de uma sombra azulada lhe descia das pálpebras! Era uma mulher em cujo rosto transluzia a soberba, talvez demasiada, da sua superioridade.

O dominó-veludo estendeu-lhe a mão, e chamou-lhe Laura.

Seria Laura? É certo que ela estremeceu, e recuou a mão repentinamente como se uma víbora lha tivesse mordido.

Aquela palavra simbolizava um mistério dilacerante: era a senha de uma grande luta em que a pobre senhora devia sair escorrendo sangue.

— Laura — repetiu o dominó — não me apertas a mão? Deixa-me ao menos sentar-me perto... Muito perto de ti... Sim?

O homem que mais próximo estava de Laura afastou-se urbanamente para deixa aproximar uma máscara, que denunciara o sexo pela voz, e a distinção pela mão.

E Carlos nunca mas despregou os olhos daquela mulher, que revelava a cada instante um pensamento na variadas fisionomias com que queria disfarçar a sua angústia íntima.

A desconhecida fez sinal a Carlos para que se aproximasse. Carlos, enleado nos embaraços naturais daquela situação toda para ele enigmática, recusava cumprir as imperiosas determinações de uma mulher que parecia calcar todos os melindres. Os quatro ou cinco homens, que pareciam familiares de Laura, não deram muita importância aos dominós. Conjeturaram, primeiro, e quando supuseram que tinham conhecido as visitas, deixaram em plena liberdade as duas mulheres, que se falavam de perto como duas amigas íntimas. O cavalheiro passou por um tal Eduardo, e a desconhecida tiveram-na por uma D. Antônia.

Laura umedecia os lábios com a língua. As surpresas pungentes produzem uma febre, e aquecem o mais belo calculado sangue-frio. A incógnita, profundamente conhecedora da situação da sua vítima, falou ao ouvido de Carlos:

— Estuda-me aquela fisionomia. Eu não estou em circunstâncias de ser Max... Sofro demasiado para contar as pulsações deste coração. Se te sentires condoído desta mulher, tem compaixão de mim, que sou mais desgraçada que ela.

E voltando-se para Laura:

— Procuro, há quatro anos, uma ocasião de prestar homenagem à tua conquista. Deus, que é Deus, não despreza os incensos do verme da terra, nem esconde à vista dos homens a sua cara majestosa num manto de estrelas. Tu, Laura, que és mulher, embora os homens te chamem anjo, não desprezarás vaidosa a homenagem de uma pobre criatura, que vem depor aos teus pés o óbolo sincero da sua adoração.

Laura não levantava os olhos do leque; mas a mão, que o sustinha, tremia; e os olhos, que o contemplavam, pareciam absortos num quadro aflitivo.

E o dominó continuou:

— Foste muito feliz, minha cara amiga! Eras digna do ser. Colheste o fruto abençoado da abençoada semente que o Senhor fecundou no teu coração de pomba! Olha, Laura, deves dar muitas graças à Providência, que velou os teus passos no caminho do crime. Quando devias resvalar no abismo da prostituição, subiste, radiante de virtudes, ao trono das virgens. O teu anjo da guarda foi-te leal! És uma exceção a milhares de desgraçadas, que nasceram em estofos de damasco, cresceram em perfumes de opulência. E, quanto mais, minha ditosa Laura, tu nasceste nas palhas da miséria, cresceste nos andrajos da indigência, ainda viste com os olhos da razão a desgraça sentada à cabeceira do teu leito... e, contudo, eis-te aí rica, honrada, formosa, e soberba de encantos, com que podes insultar toda essa turba de mulheres, que te admiram! Há tanta mulher infeliz! Queres saber a história de uma?

Laura, contorcendo-se como se fosse de espinhos a cadeira em que estava, não tinha ainda balbuciado um monossílabo; mas a urgente pergunta, duas vezes repetida, do dominó, obrigou-a a responder afirmativamente com um gesto.

— Pois bem, Laura, conversemos amigavelmente.

Um dos indivíduos, que estava presente, e ouvira pronunciar Laura, perguntou à mulher que assim era chamada:

— Elisa, ela chama-te Laura?

— Não, meu pai... — respondeu Elisa, titubeando.

— Chamo Laura, chamo... e que tem lá isso, Sr. Visconde? — atalhou a incógnita, com afabilidade, erguendo o falsete para ser bem ouvida. — É um nome de Carnaval, que passa com os dominós. Quarta-feira de cinza torna a filha de vossa excelência a chamar-se Elisa.

O visconde sorriu-se, e o dominó continuou, abaixando a voz, e falando naturalmente:

***

— Henriqueta...

Esta palavra foi um abalo que fez vibrar todas a fibras de Elisa. O rosto incendiou-se-lhe daquele encarnado do pudor ou da raiva. Esta sensação violenta não podia ser desapercebida. O visconde, que parecia estranho à conversação íntima daquelas supostas amigas, não o pôde ser à agitação febril da sua filha.

— Que tens, Elisa?! — perguntou ele sobressaltado.

— Nada, meu pai... Foi um ligeiro incômodo... Estou quase boa...

— Se queres respirar vamos ao salão, ou vamos para casa...

— Antes para casa — respondeu Elisa.

— Eu vou mandar buscar a sege — disse o visconde; e retirou-se.

— Não vás, Elisa... — disse o dominó, com uma voz imperiosa, semelhante a uma ameaça inexorável. — Não vás... Porque, se vais, contarei a todo o mundo uma história que só tu hás-de-saber. Este outro dominó, que tu não conheces, é um cavalheiro: não temas a menor imprudência.

— Não me martirizes! — disse Elisa. — Eu sou infeliz demais, para ser flagelada com a tua vingança... Tu és Henriqueta, não és?

— Que te importa a ti saber quem eu sou?!...

—  Importa muito... Sei que és desgraçada!... Não sabia que vivias no Porto; mas palpitou-me o coração que eras tu, apenas me chamaste Laura.

O visconde entrou afadigado, dizendo que a sege não podia tardar, e convidando a filha para dar alguns passeios no salão do teatro. Elisa satisfez a carinhosa ansiedade do pai, dizendo que se sentia boa, e pedindo-lhe que se demorasse até mais tarde.

— Onde julgavas tu que eu existia? No cemitério, não é assim? — perguntou Henriqueta.

— Não: sabia que vivias, e profetizava que devia encontrar-te... Que história me queres tu contar?... A tua? Essa já eu sei... Imagino-a... Tens sido muito infeliz... Olha, Henriqueta... Deixa-me dar-te esse tratamento afetuoso com que nos conhecemos, com que fomos tão amigas, alguns fugitivos dias, no tempo em que o destino nos marcava com o mesmo estigma de infortúnio...

— O mesmo... Não!... — atalhou Henriqueta.

— O mesmo, sim, o mesmo... E se me forças a contradizer-te, direi que invejo a tua sorte, seja ela qual for...

Elisa chorava, e Henriqueta emudecera. Carlos estava impaciente pelo desfecho desta aventura, e desejava, ao mesmo tempo, reconciliar estas duas mulheres, e fazê-las amigas, sem saber a razão porque eram inimigas. A beleza impõe-se à compaixão. Elisa era bela, e Carlos era de uma sensibilidade extremosa. A máscara poderia ser, mas a outra era um anjo de simpatia e formosura. O espírito gosta do mistério que esconde o belo; mas decide-se pela beleza real, sem mistério.

Henriqueta, depois de alguns minutos de silêncio, durante os quais não era possível avaliar-lhe o coração pela exterioridade da fisionomia, exclamou com ímpeto, como se despertasse de um sonho, daqueles íntimos sonhos de dor, em que a alma se reconcentra:

— Teu marido?

— Está em Londres.

— Há quanto tempo o não visite?

— Há dois anos.

— Abandonou-te?

— Abandonou-me.

— E tu?... Abandonaste-o?

— Não concebo a pergunta...

— Ainda o amas?

— Ainda...

— Com paixão?

— Com delírio...

— Escreves-lhe?

— Não me responde... 

— Despreza-me, e chama-me Laura.

— Elisa! — disse Henriqueta, com a voz trêmula, e apertando-lhe a mão com entusiasmo nervoso — Elisa! Perdoo-te... És bem mais desgraçada que eu, porque tens um homem que pôde chamar-te Laura, e eu não tenho senão um nome... Sou Henriqueta! Adeus.

Carlos pasmou do desenlace cada vez mais embrulhado daquele prólogo de um romance. Henriqueta tomo-lhe o braço com precipitação, e saiu do camarote abaixando levemente a cabeça aos cavalheiros, que se davam tratos por adivinhar o segredo daquela conversa.

— Não pronuncies o meu nome em voz alta, Carlos. Sou Henriqueta; mas não me atraiçoes, se queres a minha amizade.

— Como hei de eu atraiçoar-te, se não sei quem és? Podes chamar-te Júlia em vez de Henriqueta, que, nem por isso te fico conhecendo mais. Tudo mistérios! — Tens-me, há mais de uma hora, num estado de tortura! Eu não sirvo para estas emboscadas... Diz-me quem é aquela mulher...

— Não viste que é D. Elisa Pimentel, filha do visconde do Prado?

— Não a conhecia...

— Então que mais queres que eu te diga?

— Muitas outras coisas, minha ingrata. Quero que me digas quantos nomes tem aquela Laura, que se chama Elisa. Fala-me do marido daquela mulher...

— Eu te digo... O marido daquela mulher chama-se Vasco de Seabra... Estás satisfeito?

— Não... Quero saber que relações tens tu com esse Vasco ou com aquela Laura?

— Não saberás mais nada, se fores impaciente. Imponho-te mesmo um profundo silêncio a respeito do que ouviste. A menor pergunta que me faças, deixo-te ralado por essa curiosidade indiscreta, que te faz parecer uma mulher de soalheiro. Eu contraí contigo a obrigação de te contar a minha vida?

— Não; mas contraístes com a minha alma a obrigação de eu me interessar na tua vida e nos teus infortúnios desde este momento.

— Obrigado, cavalheiro! — Juro-te uma sincera amizade. — Hás de ser o meu confidente.

Estava, outra vez, na plateia. Henriqueta aproximou-se ao quarto camarote da primeira ordem, firmou o pé de fada na frisa, segurou-se ao peitoril do camarote, e travou conversação com a família que o ocupava. Carlos acompanhou-a em todos esses movimentos, e preparou-se para um novo enigma.

Segundo o costume, as mãos de Henriqueta passaram por uma análise rigorosa. Não era possível, porém, fazê-la tirar a luva da mão esquerda.

— Dominó, porque não deixas ver este anel? — perguntava uma senhora de olhos negros, e vestida de negro, como uma viúva rigorosamente enlutada.

— Que te importa o anel, minha querida Sofia!?... Falemos de ti, aqui em segredo. Ainda vives melancólica, como a Dido da fábula? Fica-te bem essa cor de esquifes, mas não sustentas o caráter artístico com perfeição. A tua tristeza é fingida, não é verdade?

— Não me ofendas, dominó, que eu não te mereço essa injúria... A desgraça nunca se finge...

— Disseste uma verdade, que é a tua condenação. Eu, se tivesse sido abandonada por um amante, não vinha aqui dar-me em espetáculo a um baile de máscaras. A desgraça não se finge, é verdade; mas a saudade esconde-se para chorar, e a vergonha não se ostenta radiosa desse sorriso que te brinca nos lábios. Olha, minha amiga, há umas mulheres que nasceram para esta época, e para estes homens. Há outras que a Providência caprichosa atirou a esta geração corrompida como os imperadores romanos atiravam os cristãos ao anfiteatro dos leões. Felizmente que tu não és das segundas, e sabes harmonizar com o teu gênio folgazão e desleixado uma hipocrisia que te vai bem num sofá de penas, onde tu recostas com um perfeito conhecimento das atitudes lânguidas das mulheres cansadas do Balzac. Eu, se fosse homem, amava-te por desfastio!... És a única mulher para quem este país é pequeno. Devias conhecer o Regente, e Richelieu, e os Abades de Versalhes, e as filhas do Regente, e as Heloísas desenvoltas dos Abades, e as aias da duquesa do Maine... et cetera. Isto por cá é pequeníssimo para as Frineias. Uma mulher da tua índole morre asfixiada neste ambiente pesado em que o coração, nas suas expansões românticas, encontra, quase sempre, a mão burguesa das conveniências a tapar-lhe os respiradouros. Parece que te enfadas de mim?

— Não te enganas, dominó... Obsequeias-me se me não deres o incômodo de te mandar retirar.

— És muito delicada, minha nobre Sofia! Já agora, porém, deixa-me dar-te uma ideia mais precisa desta mulher que te enfada, e que, apesar das tuas injustiças, se interessa na tua sorte. Diz-me cá... Tens uma sincera paixão, uma saudade pungente por aquele belo capitão de cavalaria que te deixou, tão sozinha, com as tuas agonias de amante?

— Que te importa?...

— És cruel! Pois não ouves o tom sentimental com que te faço esta pergunta?... Quantos anos tens?...

— Metade e outros tantos...

— A resposta não me parece tua... Aprendeste essa vulgaridade com a filha do teu sapateiro?... Ora olha: tu tens 38 anos, a não ser mentiroso o assento de batismo, que se lê no cartório da freguesia dos Mártires em Lisboa.

Aos vinte anos amavas com ternura um tal Pedro Sepúlveda. Aos vinte e cinco, amavas com paixão, um tal Jorge Albuquerque. Aos 30, amavas com delírio, um tal Sebastião de Meireles. Aos 35, amavas, em Londres, com frenesi um tal... Como se chamava... Não me recordo... Diz-me, por piedade, o nome desse homem, que, senão, fica o meu discurso sem o efeito do drama... Não dizes, má?... Ai!... Eu tenho aqui a mnemônica...

Henriqueta tirou a luva da mão esquerda, e deixou ver um anel. Sofia estremeceu, e corou até às orelhas.

— Já te recordas?... Não cores, minha querida amiga. Que não fica bem ao teu caráter de mulher que conhece o mundo pela face positiva. Deixa-me agora arredondar o período, como dizem os literatos. Ora tu, que amaste desenfreadamente cinco antes do sexto homem, como queres fingir, debaixo desse vestido negro, um coração varado de saudades e órfão de consolações?. Adeus, minha bela hipócrita.

Henriqueta desceu elegantemente do seu poleiro, e deu o braço a Carlos.

***

Eram três horas.

Henriqueta disse que se retirava, depois de vitimar com os seus ligeiros, mas pungentes gracejos, alguns daqueles muito que provocam o sarcasmo só com a presença, só com o vulto corporal, só com a sensaboria de um remoque parvo e pretensioso. O Carnaval é uma exposição anual destes infelizes.

Carlos, ao ver que Henriqueta se retirava com um segredo que tanto irritara a sua curiosidade, instou com delicadeza, com meiguice, e até com ressentimento, pela realidade de uma esperança, que fizera a sua felicidade de algumas horas.

— Eu não me arrependo — disse ele — de ter sido a voluntária testemunha dos teus desforços... Ainda mesmo que me tivessem conhecido, e tu fosses uma mulher licenciosa e depravada, não me arrependeria... Ouvi-te, iludi-me na esperança vaidosa de conhecer-te, tive orgulho de ser o escolhido para sentir de perto as pulsações vertiginosas do teu coração... Estou recompensado demais... Ainda assim, Henriqueta, eu não tenho pejo de abrir-te a minha alma, confessando-te um desejo de conhecer-te que não posso iludir... Este desejo vais-mo tu convertendo numa dor; e será logo uma saudade insuportável, que te faria compaixão se soubesses avaliar o que é na minha alma um desejo impossível. Se tu mo não dizes, que me dirá o teu nome?

— Não sabes que sou Henriqueta?

—  Que importa? E serás tu Henriqueta?”

—  Sou... Juro-te que sou...

— Não basta isto... Ora diz-me... 

— Não sentes a precisão de ser-me grata?”

— A quê, meu cavalheiro?

— Grata ao melindre com que te tenho tratado, grata à delicadeza com que te peço uma revelação da tua vida, e grata a este impulso invencível que me manda ajoelhar-te... Será nobre zombar de um amor que involuntariamente fizeste nascer?

— Não te iludas, Carlos — replicou Henriqueta num tom de seriedade, semelhante ao de uma mãe que aconselha seu filho. O amor não é isso que pica a tua curiosidade. As mulheres são fáceis de transigir de boa fé com a mentira, e, pobres mulheres! Sucumbem muitas vezes à eloquência artificiosa de um conquistador. Os homens, fartos de estudarem as paixões na sua origem, e enfadados das rápidas ilusões que eles choram todos os dias, estão prontos sempre a declararem-se afetados de cólera-paixão, e nunca apresentam carta limpa de céticos. De maneira que o sexo frágil das quimeras sois vós, criancinhas de toda a vida, que brincais aos trinta anos com a mulher como aos seis brincáveis com os cavalinhos de pau, e os fradinhos de sabugo! Olha, Carlos, eu não sou ingrata... Vou-me despedir de ti, mas hei de conversar contigo ainda. Não instes; abandona-te à minha generosidade, e verás que alguma coisa lucraste em me encontrar e em me não conhecer. Adeus.

Carlos acompanhou-a com os olhos, e permaneceu alguns minutos numa espécie de idiotismo, quando a viu desaparecer à saída do teatro. O seu primeiro pensamento foi segui-la; mas a prudência lembrou-lhe que era uma indignidade. O segundo foi empregar a intriga astuciosa até roubar alguma revelação àquela Sofia da primeira ordem ou à Laura da segunda. Não lhe lembraram recursos, nem eu sei quais eles poderiam ser. Laura e Sofia, para dissiparem completamente a esperança ansiosa de Carlos, tinham-se retirado. Era necessário esperar, era necessário confiar naquela mulher extraordinária, cujas promessas o alvoroçado poeta traduzia em mil versões.

Carlos retirou-se, e esqueceu não sei quantas mulheres, que ainda, na noite anterior, lhe povoaram os sonhos. Ao amanhecer, ergueu-se, e escreveu as reminiscências vivas da cena, quase fabulosa, que lhe transtornava o plano de vida.

Não houve nunca um coração tão ambicioso de futuro, tão fervente de poesia, e tão fantástico de conjeturas! Carlos adorava seriamente aquela mulher! Como estas adorações se afervoram com tão pouco, não sei eu: mas que o amor é assim, vou eu jurá-lo, e espero que os meus amigos me não deixem mentir.

Imaginem, portanto, a inquietação daquele grande espiritualista, quando viu passarem, vagarosos e enfadonhos, oito dias, sem que o mais ligeiro indício lhe viesse confirmar a existência de Henriqueta! Não direi que o desesperado amante apelou para o supremo tribunal das paixões impossíveis. O suicídio não lhe passou nunca pela imaginação; e muito sinto que esta verdade diminua as simpatias que o meu herói poderia granjear. A verdade, porém, é que o apaixonado mancebo vivia sombrio, isolava-se contra os seus hábitos socialmente galhofeiros, abominava as impertinências da sua mãe que o consolava com anedotas trágicas a respeito de rapazes cegos de amor, e, enfim, sofrera a ponta tal que resolvera abandonar Portugal, se, no fim de quinze dias, a fatídica mulher continuasse a ludibriar a sua esperança.

Diga-se, porém, em honra e louvor da astúcia humana: Carlos, resolvido a partir, lembrou-se de pedir a um seu amigo, que, na gazetilha do Nacional, dissesse, por exemplo, o seguinte:

O Sr. Carlos de Almeida vai, no próximo paquete, para Inglaterra. Sua senhoria tenciona observar de perto a civilização das primeiras capitais da Europa. O Sr. Carlos de Almeida é uma inteligência, que, enriquecida pela instrução prática da sua visita aos focos da civilização, há de voltar à sua pátria com fecundo cabedal de conhecimentos em todos os ramos das ciências humanas. Fazemos votos porque sua senhoria se recolha em breve ao seio dos seus numerosos amigos.

Esta local bem podia ser que chegasse às mãos de Henriqueta. Henriqueta bem podia ser que conjeturasse o imperioso motivo que obrigava o infeliz a buscar distrações longe da pátria, onde a sua paixão era invencível. E, depois, nada mais fácil que uma carta, uma palavra, um raio de esperança, que lhe transtornasse os seus planos.

Era esta a infalível tenção de Carlos, quando ao décimo quarto dia lhe foi entregue a seguinte carta:

***

Carlos,

Sem ofender as leis da civilidade, continuo a dar-te o tratamento do dominó, por que, em boa verdade, eu continuo a ser para ti um dominó moral, não é assim?

Passaram-se catorze dias, depois que tiveste o mau encontro de uma mulher, que te privou de algumas horas de deliciosa intriga. Vítima da tua delicadeza, levaste o sacrifício a ponto de te mostrares interessado na sorte dessa célebre desconhecida que te mortificou. Não serei eu, generoso Carlos, ingrata a essa manifestação cavalheirosa, embora ela será um rasgo de artista, e não um desejo espontâneo.

Queres saber por que tenho demorado catorze dias este grande sacrifício que vou fazer? É porque ainda hoje me levanto de uma febre incessante, que me insultou naquele camarote da segunda ordem, e que, neste momento, parece declinar.

Permita Deus que seja longo o intervalo para ser longa a carta: mas eu sinto-me tão pequena para os sacrifícios grandes! Não te quero responsabilizar pela minha saúde; mas, se o meu silêncio de longos tempos suceder a esta carta, conjetura, meu amigo, que Henriqueta caiu no leito, donde há de erguer-se, se não é graça que os mortos hão de erguer-se um dia.

Queres apontamentos para um romance que terá o mérito de ser português? Vou dar-tos.

Henriqueta nasceu em Lisboa. Os seus pais tinham o lustre dos brasões, mas não brilhavam nada pelo ouro. Viviam sem fausto, sem história contemporânea, sem bailes e sem bilhetes de boas-festas. As visitas que Henriqueta conhecia eram, no sexo feminino, quatro velhas suas tias, e, no masculino, quatro caseiros que vinham anualmente pagar as rendas, com que o seu pai regulava economicamente uma nobre independência.

O irmão de Henriqueta era um jovem de talento, que granjeara uma instrução, enriquecida sempre pelos desvelos com que afagava a sua paixão única. Isolado de todo o mundo, o irmão de Henriqueta confiou a sua irmã os segredos do seu muito saber, e formou-lhe um espírito varonil, e inspirou-lhe uma ambição faminta de ciência.

Bem sabes, Carlos, que falo de mim, e não posso, nesta parte, engrinaldar-me de flores imodestas, se bem que não me faltariam depois espinhos que me desculpassem as vaidosas flores...

Eu cheguei a ser o eco fiel dos talentos do meu irmão. Os nossos pais não compreendiam as práticas literárias com que aligeirávamos as noites de Inverno; e, mesmo assim, folgavam de nos ouvir, e via-se-lhes nos olhos aquele rir de bondoso orgulho, que tanto inflama as vaidades da inteligência.

Aos dezoito anos achei pequeno o horizonte da minha vida, e enfastiei-me da leitura, que mo fazia cada vez amesquinhar-se mais. Só com a experiência se conhece o quanto a literatura modifica a organização de uma mulher. Eu creio que a mulher, apurada na ciência das coisas pensa de um modo extraordinário na ciência das pessoas. O prisma das suas vistas penetrantes é belo, mas as lindas cambiantes do seu prisma são como as cores variegadas do arco-íris, que anuncia tempestade.

Meu irmão lia-me os segredos do coração! Não é fácil mentir ao talento com as hipocrisias do talento. Compreendeu-me, teve dó de mim.

Meu pai morreu, e a minha mãe pediu à alma do meu pai que lhe alcançasse do Senhor uma vida longa para meu amparo. Ouviu-a Deus, porque eu vi um milagre na rápida convalescença com que a minha mãe saiu de uma enfermidade de quatro anos.

Eu vi um dia um homem no quarto do meu irmão, onde entrei como entrava sempre sem receio de encontrar um desconhecido. Quis retirar-me, e o meu irmão chamou-me para me apresentar, pela primeira vez na sua vida, um homem.

Este homem chama-se Vasco de Seabra.

Não sei se por orgulho, se por acaso, o meu irmão chamou a conversa ao campo da literatura. Falava-se em romances, em dramas, em estilos, em escolas, e não sei que outros assuntos ligeiros e graciosos que me cativaram o coração e a cabeça.

Vasco falava bem, e revelava coisas que me não eram novas com estilo novo. Naquele homem, via-se o gênero aformoseado pela arte que só na sociedade se adquire. No meu irmão faltava-lhe o relevo de estilo, que se lapida ao trato dos maus e dos bons. Bem sabes Carlos, que te digo uma verdade, sem pretensões de bas-bleu, que é de todas as misérias a mais lastimosa miséria das mulheres cultivadas.

Vasco retirou-se, e eu quisera antes que ele se não retirasse.

Disse-me o meu irmão que aquele rapaz era uma inteligência superior, mas depravada pelos maus costumes. A razão porque ele viera a nossa casa era muito simples; encarregara-o o seu pai de falar com o meu irmão a respeito da remissão de uns foros.

Vasco passou nesse dia por debaixo das minhas janelas: fixou-me, cortejou-me, corei, e não me atrevi a segui-lo com os olhos, mas segui-o com o coração. Que suprema miséria, Carlos! Que renúncia tão impensada faz uma mulher da sua tranquilidade.

Voltou um quarto de hora depois: retirei-me, sem querer mostrar-lhe que o percebia; fiz-me distraída, por entre as cortinas, a contemplar a marcha das nuvens, e das nuvens descia um olhar precipitado sobre aquele indiferente que me fazia corar e sofrer. Viu-me, adivinhou-me, talvez, e cortejou-me ainda. Eu vi o gesto da cortesia, mas fingi-me e não lhe correspondi. Foi isto um heroísmo, não é verdade? Seria; mas eu tive remorsos, apenas ele desaparecera, do tratar tão grosseiramente.

Demorei-me nestas puerilidades, meu amigo, porque não há nada mais grato para nós que a recordação dos últimos instantes de ventura a que se prendem os primeiros instantes da desgraça.

Aquelas linhas fastidiosas são a história da minha transfiguração. Aí começa a longa noite da minha vida.

Nos dias imediatos, a horas certas, vi sempre este homem. Concebi os perigos da minha fraqueza, e quis ser forte. Resolvi não vê-lo mais: revesti-me de um orgulho digno da minha imodesta superioridade às outras mulheres: sustentei este caráter dois dias; e, ao terceiro, era fraca como todas as outras.

Eu já não podia divorciar-me da imagem daquele homem, daquelas núpcias infelizes que o meu coração contraíra. O meu instinto não era mau; porque a educação tinha sido boa; e, não obstante a humildade constante com que sempre sujeitei a minha mãe os meus inocentíssimos desejos, senti-me então, com mágoa minha, rebelde, e capaz de conspirar contra a minha família.

A frequente repetição dos passeios de Vasco não podia ser indiferente ao meu irmão. Fui suavemente interrogada por a minha mãe a tal respeito, respondi-lhe com respeito, mas sem temor. O meu irmão pressentiu a necessidade de matar aquela inclinação nascente, e expôs-me um quadro feio dos costumes péssimos de Vasco, e o conceito público em que era tido o primeiro homem a quem eu tão francamente me oferecia em namoro. Fui altiva com o meu irmão, e adverti-lhe que os nossos corações não tinham contraído a obrigação de se consultarem.

Meu irmão sofreu; eu também sofri; e, passado o momento da exaltação, quis cerrar a ferida que abrira naquele coração, desde a infância identificado com as minhas vontades.

Este sentimento era nobre; mas o do amor não era inferior. Se eu pudesse reconciliá-los ambos! Não podia, nem sabia fazê-lo! Uma mulher, quando começa a sua dolorosa tarefa do amor, não sabe mentir com aparências, nem calcula os prejuízos que pode evitar com um pouco de impostura. Eu fui assim. Deixe-me ir abandonada à correnteza da minha inclinação; e, quando forcejei por me tornar tranquila, à isenção da minha alma, não pude vencer a corrente.

Vasco de Seabra perseguia-me: as cartas eram incessantes, e a grande paixão que elas exprimiam não era ainda igual à paixão que me faziam.

Meu irmão quis tirar-me de Lisboa, e a minha mãe instava pela saída, ou pela minha entrada a toda a pressa nas Salésias. Informei Vasco das intenções da minha família.

No mesmo dia, este homem, que me pareceu um cavalheiro digno de outra sociedade, entrou na minha casa, pediu-me urbanamente a minha mãe, e foi urbanamente repelido. Eu soube-o, e torturei-me! Não sei do que seria então capaz a minha alma ofendida! Sei que foi capaz de tudo que pode caber em forças de uma mulher, contrariada nas ambições que nutrira, sozinha consigo, e conjurada a perder-se por elas.

Vasco, irritado num nobre estímulo, escreveu-me, como quem me pedia a mim a satisfação dos desprezos da minha família. Respondi-lhe que lha dava plena, como ele a exigisse. Disse-me que fugisse de casa, pela porta da desonra, e muito cedo entraria nela com a minha honra ilibada. Que desgraça! Naquele tempo até as pompas de estilo me seduziam! Respondi que sim, e cumpri.

Meu amigo Carlos. Vai longa a carta, e a paciência é curta. Até ao correio que vem.

Henriqueta.

***

Carlos relera, com sôfrega ansiedade, a singela expansão de uma alma que, talvez, nunca se abrira, se a não rasgasse o espinho de um martírio surdo. Henriqueta não escrevia assim uma carta a um homem, que pudesse consolá-la. Afeita a gemer no silêncio, e na solidão, tornava-se como egoísta das suas dores, e supunha que divulgá-las era esfolhar a mais bela flor da sua coroa de mártir. Escreveu, porque a sua carta era um mito de segredo e publicidade; porque a sua aflição não rastejava pelos queixumes lamuriantes e triviais de um grande número de mulheres, que não choram nunca a viuvez do coração, e lastimam sempre a demora das segundas núpcias; escreveu enfim, porque a sua dor, sem desonrar-se com uma publicidade estéril, interessava um coração, esposava uma simpatia, um sofrimento simultâneo, e, quem sabe mesmo, se uma nobre admiração! Há mulheres vaidosas — deixem-me assim dizer — da fidalguia do seu sofrer. Risonhas para o mundo, é muito sublime aquela angústia represada que só pode extravasar os sobejos do seu fel num a carta anônima. Lagrimosas para si, e fechadas no círculo estreito que a sociedade lhes traça como o compasso inexorável das conveniências, essas sim, são duas vezes anjos despenhados!

Quem pudesse receber na taça das suas lágrimas algumas que aí se choram, e que a opulência material não enxuga, experimentaria consolações de um sabor novo. O padecimento que se esconde impõe o respeito religioso do augusto mistério desta religião universal, simbolizada pelo sofrimento comum. O homem que pudesse verter uma gota de orvalho na aridez de algum coração, seria o sacerdote providencial no tabernáculo de um espírito superior, que velasse a vida da terra para que tamanhas agonias não fossem estéreis na vida do céu. Não há na terra mais gloriosa missão.

Carlos, portanto, sentiu-se feliz deste orgulho santo que enobrece a consciência do homem que recebe o privilégio de uma confidência. Esta mulher, dizia ele, é para mim um ente quase fantástico. Alívios quais são os que eu posso dar-lhe?. Nem ao menos escrever-lhe! E ela. Em que fará consistir o seu prazer?! Deus o sabe! Quem pode explicar, e mesmo explicar-se a singularidade de um proceder, às vezes, inconcebível?

No correio próximo, recebeu Carlos a segunda carta de Henriqueta:

Que imaginaste, Carlos, depois da leitura da minha carta? Adivinhaste o resto, com presteza natural. Recordaste mil aventuras deste gênero, e amoldaste a minha história às legítimas consequências de todas as aventuras. Julgaste-me abandonada pelo homem com quem fugira, e chamaste a isto, talvez, uma dedução contida nos princípios.

Pensaste bem, amigo, a lógica da desgraça é essa, e o contrário dos teus juízos é o que se chama sofisma, porque eu estou em pensar que a virtude é o absurdo da lógica dos fatos, é a heresia da religião das sociedades, é a aberração monstruosa das leis, que regem o destino do mundo. Achas-me metafísica demais? Não te impacientes. A dor refugia-se nas abstrações, e encontra melhor pábulo na Loucura de Erasmo, que nas sisudas deduções de Montesquieu.

Minha mãe estava reservada para uma grande provação! Amparou-a Deus naquele golpe, e permitiu-lhe uma energia que não era de esperar. Vasco de Seabra bateu às portas de todas as igrejas de Lisboa, para me apresentar, como sua mulher, ao cura da freguesia, e achou-as fechadas. Éramos perseguidos, e Vasco não contava com a sua superioridade sobre o meu irmão, que lhe fizera certa e infalível a morte, onde quer que a fortuna lho deparasse.

Fugimos de Lisboa para Espanha. Um dia entrou Vasco, alvoroçado, pálido e febril daquela febre de medo, que, realmente, era, até então, a única face prosaica do meu amante. Emalamos a toda a pressa, e partimos para Londres. É que Vasco de Seabra vira o meu irmão em Madrid.

Vivemos num bairro retirado de Londres. Vasco tranquilizou-se, porque lhe afiançaram de Lisboa a volta do meu irmão, que perdera as esperanças de encontrar-me.

Se me perguntas como era a vida íntima destes dois fugitivos, aos quais não faltava condição alguma das aventuras românticas de um rapto, dir-ta-ei em poucas linhas.

O primeiro mês das nossas núpcias de emboscada foi um sonho, uma febre, uma anarquia de sensações que, levadas ao extremo do gozo, pareciam tocar as raias do sofrimento. Vasco parecia-me um Deus, com as sedutoras fraquezas de um homem; queimava-me com o seu fogo, divinizava-me com o seu espírito; levava-me de mundo em mundo à região dos anjos onde a vida deve ser o êxtase, o arroubamento, a alienação com que a minha alma se derramava nas sensações ardentíssimas daquele homem.

No segundo mês, Vasco de Seabra disse-me pela primeira vez “que era muito meu amigo”. O coração pulsava-lhe vagaroso, os olhos não faiscavam eletricidade, os sorrisos eram frios... Os meus beijos já os não aqueciam naqueles lábios! Sinto por ti uma sincera estima. Quanto isto se diz, depois de um amor vertiginoso, que não sabe as frases triviais, a paixão está morta. E estava...

Depois, Carlos, falávamos em literatura, analisávamos as óperas, discutíamos os méritos dos romances, e vivíamos em academia permanente, quando Vasco me não deixava quatro, cinco e seis horas entregue às minhas inocentes recreações científicas.

Vasco cansara-se de mim. A consciência afirmou-me esta verdade atroz. Sufoquei a indignação, as lágrimas e os gemidos. Sofri sem limites. Abrasou-se-me na alma um inferno que me coava fogo nas veias. Não houve nunca mulher assim desgraçada!

E vivemos assim dezoito meses. A palavra “casamento” foi banida das nossas curtas conversações... Vasco desquitava-se de compromissos, que ele chamava parvos. Eu mesma, de bom grado, o remia de ser o meu escravo, como ele intitulava o néscio que se deixava algemar às obscuras superstições do sétimo sacramento... Foi aí que Vasco de Seabra encontrou a Sofia que te apresentei no Real Teatro de São João, na primeira ordem.

Comecei então a pensar na minha mãe, no meu irmão, na minha honra, na minha infância, na memória deslustrada do meu pai, na tranquilidade da minha vida até ao momento em que me atirei à lama e salpiquei com ela a face da minha família.

Peguei na pena para escrever a minha mãe. Escrevera a primeira palavra, quando compreendi o vexame, a degradação e a vilania com que ousava apresentar-me àquela virtuosa senhora, com a face manchada de nódoas, contagiosas. Repeli com nobreza esta tentação, e desejei, naquele instante, que a minha mãe me julgasse morta.

Em Londres vivíamos numa hospedaria, depois que Vasco perdeu o medo ao meu irmão. Viera aí hospedar-se uma família portuguesa. Era o visconde do Prado, e a sua mulher, e uma filha. O visconde relacionou-se com Vasco, e a Viscondessa e a sua filha visitaram-me, tratando-me como irmã de Vasco.

Agora, Carlos, esquece-te de mim, e satisfaz a tua curiosidade na história desta gente, que já conheceste no camarote da segunda ordem.

Mas não posso agora dispor de mim... Saberás, alguma vez, a razão porque não pude continuar esta carta. Adeus, até outro dia.

Henriqueta.

***

Cumpro religiosamente as minhas promessas. Tu não avalias o sacrifício que faço. Não importa. Como não quero cativar a tua gratidão, nem, mesmo ainda, mover a tua piedade, basta-me a consciência do que sou para ti, que é (medita bem) o mais que posso ser...

A história... não é assim? Começa agora.

Antônio Alves era um pobre amanuense do escritório de um tabelião de Lisboa. O tabelião morreu, e Antônio Alves, privado dos escassos lucros de amanuense, lutou com a fome. A mulher por um lado com a filhinha ao colo, e ele pelo outro com as lágrimas da indigência, conseguiram algumas moedas, e com elas a passagem do pobre marido para o Rio de Janeiro.

Foi, e deixou entregues à Providência a mulher e a filha.

Josefa esperava todos os dias carta do seu marido. Nem carta, nem um indício da sua existência. Julgou-se viúva, vestiu-se de preto e viveu de esmolas, pedidas à noite na Praça do Rossio.

A filha chamava-se Laura, e crescera bela, não obstante as angústias da fome, que transformam a formosura do berço.

Aos quinze anos de Laura, já a sua mãe não mendigava. A desonra proporcionara-lhe abundância que uma honrosa mendicidade lhe não dera.

Laura era amante de um rico, que cumpria fielmente com a mãe as condicionais estipuladas na escritura de venda da filha.

Um ano depois, Laura explorava outra mina. Josefa não sofria com as vicissitudes da filha, e continuava a gozar os fins da vida à sombra de tão fecunda árvore.

A indigência e a sociedade fizeram-lhe compreender que só há desonra na fome e na nudez.

Outro ano depois, a radiosa Laura declarou-se o prêmio do cavaleiro que mais airoso entrasse no torneio.

Concorreram muitos gladiadores, e parece que todos foram premiados, porque todos esgrimiam galhardamente.

Desgraça foi para Laura, quando os melhores campeões se retiraram fatigados da liça. Os que vieram depois eram bisonhos no jogo das armas, e viram que a dama das justas já não valia a pena de perigosos botes de lança e de arreios muito custosos de pedraria e ouro.

Pobre Laura, apeada do seu pedestal, olhou-se a um espelho, viu-se ainda bela com vinte e cinco anos, e perguntou à sua consciência a baixa do preço com que corria no leilão de mulheres. A consciência respondeu-lhe que descesse da altura das suas ambições, que viesse para onde a chamava a lógica da sua vida, e continuaria a ser rainha num reino de segunda ordem, já que a exautoravam de um trono que tivera na primeira.

Laura desceu, e encontrou uma sociedade nova. Aclamaram-na soberana, reuniu-se uma corte tumultuosa na antecâmara desta odalisca fácil, e não houve grande nem pequeno a quem se baixassem os reposteiros do trono.

Laura viu-se um dia abandonada. Viera uma outra disputar-lhe a sua legitimidade. Os cortesãos voltaram-se para o sol nascente, e apedrejaram, como os Incas, o astro que se escondia para iluminar os antípodas de um outro mundo.

Os antípodas de um outro mundo eram uma sociedade inculta, sem a inteligência da arte, sem o culto à formosura, sem as opulências que o ouro cria nas altas regiões da civilização, e, finalmente, sem algum dos atributos que Laura amara tanto nos mundos onde fora soberana duas vezes.

A infeliz tinha descido ao derradeiro grau de aviltamento; mas era bela ainda a sua mãe, enferma num hospital, pedia a Deus, como esmola, a sua morte. A desgraçada foi punida.

No hospital, viu passar sua filha diante do seu leito; pediu que a deitassem ao pé de si; o enfermeiro riu-se, e entrou com ela noutra enfermaria, onde o anjo do pudor e das lágrimas cobriam o rosto na presença da úlcera mais esquálida e mas lastimosa do gênero humano.

Laura começava a sondar a profundidade do abismo em que caíra.

Sua mãe recordava as fomes de outro tempo, quando sua filha, virgem ainda, chorava e suplicava, com ela, uma esmola ao passageiro.

As privações de então eram semelhantes às privações de agora, com a diferença, porém, que a Laura de hoje, desonrada e repelida, não podia já prometer o futuro da Laura de então.

Agora, Carlos, vejamos o que é o mundo, e pasmemos diante das evoluções ginásticas dos acontecimentos.

Aparece em Lisboa um capitalista, que chama a atenção dos capitalistas, a consideração do Governo, e, por via de regra, desafia inimizades políticas e invejas, que procuram o seu princípio de vida para denegrir-lhe o luzimento da sua afrontosa opulência.

Este homem compra uma quinta na província do Minho, e, mais barato ainda, compra o título de visconde do Prado.

Um jornal de Lisboa, que traz entre os dentes venenosos da política o pobre visconde, escreve um dia um artigo, onde se acham, entre muitas, as seguintes alusões:

O Sr. Visconde do Prado adscreveu à imoralidade do Governo a imoralidade da sua fortuna. Como ela foi adquirida, di-lo-iam as costas de África se os sertões contassem os horrorosos dramas da escravatura, em que o Sr. Visconde foi herói.

O Sr. Visconde do Prado era Antônio Alves há 26 anos, e a pobre mulher que deixou em Portugal, com uma tenra filhinha ao colo, ninguém dirá em que rua morreu de fome sobre as lajes, ou em que água-furtada curtiam ambas as agonias da fome, enquanto o Sr. Visconde medrava cinicamente na hidropisia do ouro, com que hoje vem arrotar moralidades no teatro das suas infâmias de esposo e de pai.

Melhor fora que o Sr. Visconde indagasse onde repousam os ossos da sua mulher e da sua filha, e nos pusesse aí um padrão de mármore, que possa atestar ao menos o remorso de um infame contrito...

Este insulto direto, e fundamentado, ao visconde do Prado, fez ruído em Lisboa. As edições do jornal espalharam-se, e leram-se e comentaram-se com frenética maldade.

Às mãos de Laura chegou este jornal, a sua mãe, ouvindo lê-lo, delirou. A filha pensou que sonhava; e a situação de ambas perderia muito se eu tentasse roubar-lhe as cores vigorosas da tua imaginação.

No dia seguinte, Josefa e Laura entravam no palacete do visconde do Prado. O porteiro respondeu que sua excelência não estava ainda a pé. Esperaram. As 11 horas saía o visconde, e, ao saltar para a carruagem, viu duas mulheres que se aproximavam. Meteu a mão ao bolso do colete, e tirou doze vinténs que lançava na mão de uma das duas mulheres. Olhou admirado para elas, quando viu que a esmola lhe era recusada.

— Que querem — interrompeu ele, com soberba indignação.

— Quero ver o meu marido que não vejo há 26 anos... — respondeu Josefa.

O visconde estacou ferido de um raio. O suor gotejava-lhe na testa em bagas frias. Laura aproximou-se, em atitude de beijar-lhe a mão...

— Pois quê?... — interpelou o visconde.

— Sou sua filha... — respondeu Laura com humildoso respeito.

O visconde, aturdido e parvo, voltou as costas à carruagem, e mandou às duas mulheres que o seguissem.

O resto no correio seguinte. Adeus, Carlos.

Henriqueta.

***

Carlos, tenho quase tocado a extrema desta minha peregrinação. A minha Ilíada está no último canto. Quero dizer-te que é esta a minha penúltima carta.

Não sou tão independente como pensava. A não serem os poetas, ninguém gosta de contar as suas mágoas ao vento. É belo dizer-se que um gemido nas asas da brisa vai da terra em dorido suspirar até ao coro dos anjos. É bonito conversar com a fonte suspirosa, e contar à avezinha gemedora os segredos do nosso pensar. Tudo isto é delicioso de uma puerilidade inofensiva; mas eu, Carlos, não tenho alma para estas coisas, nem engenho para estes artifícios.

Vou contando as minhas penas a um homem que não pode zombar das minhas lágrimas, sem trair a generosidade do seu coração, e a sensibilidade do talento. Sabes qual é o meu egoísmo, o meu estipêndio neste trabalho, nesta franqueza de alma, que ninguém te pode disputar como único em merecê-la? Eu te digo. Quero uma carta tua, dirigida a Angélica Micaela. Diz-me o que a tua alma te disse; não tenhas pejo em denunciá-la; associa-te um momento à minha dor, e diz-me o que farias se tivesses sido Henriqueta.

Aqui tens o prólogo desta carta; agora vamos espreitar o lance extraordinário daquele encontro, em que deixamos o visconde e a... Como hei de chamar-lhe?... A Viscondessa, e a sua excelentíssima filha D. Laura.

— Pois é possível existires? — perguntava o visconde, sinceramente admirado, a sua mulher.

— Pois não me conheces, Antônio? — respondia ela com estúpida naturalidade.

— Tinham-me dito que morreras... — disse ele com desasada hipocrisia. — Tinham-me dito, há dezessete anos, que tu e a nossa filha tínheis sido vítimas da cólera-morbo...

— Felizmente que lhe mentiram  — interrompeu Laura com afetada meiguice. — Não é que lhe tínhamos rezado por alma, e nunca deixamos de pronunciar o seu nome em saudosas lágrimas.

— Como tendes vivido? — perguntou o visconde.

— Pobre, mas honradamente — respondeu Josefa, dando-se uns ares austeros, e pondo os olhos em branco, como quem invoca o céu por testemunha.

— Ainda bem! — disse o visconde — mas que modo de vida tem sido o vosso?

— O trabalho, meu querido Antônio, o trabalho da nossa filha tem sido o amparo da sua honra e da minha velhice. Tu abandonastes-nos com tamanha crueldade! Que mal te fizemo-nos?

— Nenhum, mas não vos disse eu que vos considerava mortas? — respondeu o visconde a sua mulher, que tivera a habilidade de arrancara duas volumosas lágrimas, tanto a propósito.

— O passado, passado — disse Laura, afagando carinhosamente as mãos paternas, e dando-se uns ares de inocência capazes de iludir São Simão Estilista. — Quer o pai saber (prosseguiu ela com sentimento) qual tem sido a minha vida? Olhe, meu pai, não se envergonhe da posição social em que encontra sua filha... Tenho sido modista, tenho trabalhado incessantemente...

— Tenho lutado com as tentações da penúria, e tenho feito consistir nas minhas lágrimas o meu triunfo...

— Bem, minha filha — interrompeu o visconde com sincera contrição — esqueçamos o passado... De hora em diante será a abundância o prêmio da tua virtude... Ora diz-me: o mundo sabe que tu és minha filha?... Disseste a alguém que era teu marido, Josefa?

— Não, meu pai.  — Não, meu Antoninho. — responderam ambas, como se tivessem previsto e calculado as perguntas e as respostas.

— Pois bem, — continuou o visconde — vamos a conciliar com o mundo as nossas posições presentes, passadas e futuras. De hora avante, Laura, és minha filha, és filha do visconde do Prado, e não podes chamar-te Laura. Serás Elisa, compreendes-me? É necessário que te chames Elisa...

— Sim, meu pai... Eu serei Elisa — atalhou a inocente modista com impetuosa alegria.

— É necessário abandonar Lisboa — prosseguiu o visconde.

— Sim, sim, meu pai... Vivamos num sertão... Quero gozar, sozinha, na presença de Deus a felicidade de ter pai...

— Não iremos para um sertão... Vamos para Londres; mas... atendam-me... é preciso que ninguém as veja, nestes primeiros anos, principalmente em Lisboa. A minha posição atual é muito melindrosa. Tenho muitos inimigos, muitos invejosos, muitos infames, que procuram perder-me no conceito que pude comprar com o meu dinheiro. Estou farto de Lisboa; partiremos nos primeiro paquete... Josefa, repara em ti, e vê que és Viscondessa do Prado. Elisa, a tua educação foi desgraçadamente mesquinha para te poderes mostrar qual eu quero que sejas na alta sociedade. Voltaremos um dia, e terás então suprido com a educação prática a rudeza que indispensavelmente tens.

Não progrido, neste diálogo, Carlos. O programa do visconde foi rigorosamente cumprido.

Aqui tens os precedentes que prepararam o meu encontro, em Londres, com esta família. Vasco de Seabra, quando viu, pela primeira vez, a filha do visconde atravessar um corredor do hotel, fixou-a com pasmo, e veio dizer-me que acabava de ver, elegantemente trajada, uma mulher que conhecera em Lisboa, chamada Laura.

Acrescentou várias circunstâncias da vida desta mulher, e acabou por mostrar vivos desejos de saber o tolo opulento a quem tal mulher estava associada.

Vasco pediu a lista dos hóspedes, e viu que os únicos portugueses eram Vasco de Seabra e a sua irmã, e o visconde do Prado, a sua mulher, e a sua filha D. Elisa Pimentel.

Redobrou o seu pasmo, e chegou a convencer-se de uma ilusão.

No seguinte dia, o visconde encontrou-se com Vasco, e alegrou-se de ter encontrado um patrício, que lhe explicasse aqueles gritos bárbaros dos serventes do hotel, que lhe davam água por vinho. Vasco não duvidou em ser intérprete do visconde, contanto que as suas luzes em língua inglesa pudessem chegar ao esconderijo donde nunca mas vira sair a suposta Laura.

Correram as coisas à medida do seu desejo. Na noite desse dia, fomos convidados para tomar chá, na saleta do visconde. Eu hesitei, sem saber ainda se Laura seria familiar do visconde. Vasco, porém, despreveniu-me deste temor, afiançando-me que se tinha iludido com a semelhança das duas mulheres.

Fui. Elisa pareceu-me uma menina bem educada. Nunca o artifício tirou maior partido das maneiras adquiridas em hábitos libertinos. Elisa era uma mulher de corte, com os ademanes fascinadores dos salões, onde a imoralidade do coração passeia de braço dado com a ilustração do espírito. O som da palavra, a escolha da frase, a compostura airosa da mímica, o tom sublime em que as suas ideias eram voluptuosamente lançadas na torrente de uma conversação animada, tudo isto me fez crer que Laura era a primeira mulher que eu tinha encontrado, talhada à feição do meu espírito.

Quando agora pergunto à minha consciência como estas transições se fazem, descreio da educação, lamento os anos consumidos no cultivo da inteligência, e chego a persuadir-me que a escola da devassidão é a antecâmara por onde mais fácil se entra no mundo da graça e da civilização.

Perdoa-me o absurdo, Carlos; mas há mistérios na vida que só pelo absurdo se explicam.

Henriqueta.

***

Li a tua carta, Carlos, com os olhos cheios de lágrimas, e o coração de reconhecimento. Não esperava tanto da tua sensibilidade. Fiz-te a injustiça de te julgar infeccionado deste marasmo de egoísmo que entorpece o espírito, e calcina o coração. E, demais, supunha-te insensível pelo fato de seres inteligente. Eis aqui um disparate, que eu não ousaria balbuciar na presença do mundo. O que vale é que as minhas cartas não serão lidas pelas mediocridades, que se acham em concílio permanente para condenar, em nome de não sei que tolas conveniências, as heresias do gênio.

Deixa-me dizer-te francamente o juízo que eu formo do homem transcendente em gênio, em estro, em fogo, em originalidade, finalmente em tudo isso que se inveja, que se ama, e que se detesta, muitas vezes.

O homem de talento é sempre um mau homem. Alguns conheço eu que o mundo proclama virtuosos e sábios. Deixá-los proclamar. O talento não é sabedoria. Sabedoria é o trabalho incessante do espírito sobra a ciência. O talento é a vibração convulsiva de espírito, a originalidade inventiva e rebelde à autoridade, a viagem extática pelas regiões incógnitas da ideia. Agostinho, Fénelon, Madame de Stael e Bentham são sabedorias. Lutero, Ninon de Lenclos, Voltaire e Byron são talentos. Compara as vicissitudes dessas duas mulheres e os serviços prestados à humanidade por esses homens, e terás encontrado o antagonismo social em que lutem o talento com a sabedoria.

Por que é mau o homem de talento? Essa bela flor porque tem no seio um espinho envenenado? Essa esplêndida taça de brilhantes e ouro porque é que contém o fel, que abrasa os lábios de quem a toca?

Aqui tens um tema para trabalhos superiores à cabeça de uma mulher, ainda mesmo reforçada por duas dúzias de cabeças acadêmicas!

Lembra-me ouvir dizer a um doido que sofria por ter talento. Pedi-lhe as circunstâncias do seu martírio sublime, e respondeu-me o seguinte com a mais profunda convicção, e a mais tocante solenidade filosófica: os talentos são raros, e os estúpidos são muitos. Os estúpidos guerreiam barbaramente o talento: são os vândalos do mundo espiritual. O talento não tem partido nesta peleja desigual. Foge, dispara na retirada um tiroteio de sarcasmos pungentes, e, por fim, isola-se, segrega-se do contato do mundo, e curte em silêncio aquele fel de vingança, que, mais cedo ou mais tarde, cospe na cara de algum inimigo, que encontra desviado do corpo do exército.

Ai tem, — acrescentou ele — a razão porque o homem de talento é perigoso na sociedade. O ódio inspira-lhe e eloquência da tração. A mulher que lhe ouve o astucioso hino das suas apaixonadas lamúrias, acredita-o, abandona-se, perde-se, e retira-se, por fim, gritando contra o seu algoz, e pedindo à sociedade que grite com ela.

Agora, diz-me tu, Carlos, até que ponto devemos acreditar este doido. Eu por mim não me satisfaço com o seu sistema, todavia sinto-me propensa a aperfeiçoar o prisma do doido, até encontrar as cores inalteráveis do juízo.

Seja o que for, eu creio que és uma exceção e não sofra com isto a tua modéstia. A tua carta fez-me chorar, e acredito que sofrias, escrevendo-a. Hás de continuar a visitar-me espiritualmente na minha Tebaida, sem cilícios, sim?

Agora conclua-se a história, que leva seus visos de folhetim filosófico, moral, social, e não sei que mais por aí se diz, que não vale nada.

Contraí amizade com a filha do visconde do Prado. Não era ela, porém, tão íntima que me levasse a declarar-lhe que Vasco de Seabra não era meu irmão. Por ele me fora imposto, como preceito, o segredo das nossas relações. Bem longe estava eu de compreender este zelo de virtuosa honestidade, quando a mão de um demônio me tirou a venda dos olhos.

Vasco amava Laura!! Eu pus dois pontos de admiração, mas acredita que foi uma urgência retórica, uma composição artística, que me obrigou a admirar-me, escrevendo, de coisas que me não admiram, pensando.

Que é o que levou tão depressa este homem a aborrecer-me, pobre mulher, que desprezei o mundo, e me desprezei a mim própria para satisfazer-lhe o capricho de alguns meses? Foi uma miséria que ainda hoje me envergonha, suposto que esta vergonha devesse ser um reflexo das faces dele... Vasco amava a filha do visconde do Prado, a Laura de alguns meses antes, porque a Elisa de hoje era a herdeira de não sei quantos centos de contos de réis.

Devo envergonhar-me de ter amado este homem, não é verdade, Carlos? Não devo sofrer um instante a perda de um miserável, que eu vejo daqui com uma grilheta de ouro algemada a uma perna, tapando em vão os ouvidos para não ouvir-lhe o ruído... a sentença do forçado que o segue até ao fim de uma existência farta de opróbrio, e célebre de infâmias!

E não sofro, Carlos! Tenho aqui no seio uma úlcera que não tem cura... Choro, porque é intensa a dor que ela me causa... Mas, olha, não tenho lágrimas que não sejam remorsos... Não tenho remorsos que não sejam picados pela afronta que fiz à minha mãe, e ao meu irmão... Não me dói o meu próprio aviltamento, não! Se na minha alma cabe algum entusiasmo, algum desejo, é o entusiasmo da penitência, é o desejo de torturar-me...

Fugi tanto da história, meu Deus! Desculpa estes desvios, meu paciente amigo! Eu queria correr muito sobre o que falta, e hei de consegui-lo, porque não posso parar, e temo de me converter em estátua, como a mulher de Ló, quando olho com atenção para o meu passado...

O visconde do Prado convidou Vasco de Seabra a ser seu genro. Vasco não sei como recebeu o convite; o que eu sei é que os vínculos destas relações estreitaram-se muito, e Elisa, desde esse dia, expandiu-se comigo em intimidades do seu passado, todas mentirosas. Estas intimidades eram o prólogo de outra que tu avaliarás. Foi ela a própria que me disse que esperava ainda poder chamar-me irmã! Isto é uma atrocidade sublime, Carlos! Diante dessa dor calam-se todas as agonias possíveis! O insulto não podia ser mais despedaçador! O punhal não podia entrar mais dentro no virtuoso coração da pobre amante de Vasco de Seabra! Agora, sim, que eu quero a tua admiração, meu amigo! Tenho direito à tua compaixão, se não podes estremecer de entusiasmo diante do heroísmo de uma mártir! Ouvi este anúncio dilacerante!... Senti fugir-me o entendimento... Aquela mulher sufocou-me a voz na garganta... Horrorizei-me não sei se dela, se dele, se de mim... Nem uma lágrima!... Acreditei-me doida... Senti-me estúpida daquele idiotismo pungente que faz chorar os estranhos, que nos veem nos lábios um sorriso de imbecilidade.

Elisa parece que recuou aterrada da expressão da minha fisionomia... Fez-me não sei que perguntas... Não me lembro mesmo se aquela mulher permaneceu diante de mim... Basta!... Não posso prolongar esta situação...

Na tarde desse mesmo dia, chamei uma criada da hospedaria. Pedi-lhe que me vendesse algumas joias de pouco valor que eu possuía; eram minhas; minhas não... Eram um roubo que eu fiz a minha mãe.

Na manhã do dia seguinte, quando Vasco, depois do almoço, visitava o visconde do Prado, escrevi estas linhas:

Vasco de Seabra não pode gloriar-se de ter desonrado Henriqueta de Lencastre. Esta mulher sentia-se digna de uma coroa de virgem, virgem do coração, virgem na sua honra, quando abandonava um vilão, que não pôde infetar da sua infâmia o coração da mulher que arrastou ao abismo da sua lama, sem lhe salpicar a cara. Foi a Providência que a salvou!

Deixei este escrito sobre as luvas de Vasco, e fui à estação dos caminhos de ferro.

Dois dias depois entrava um paquete.

Ao ver a minha pátria, cobri o rosto com as mãos, e chorei... Era a vergonha e o remorso. Diante do Porto senti uma inspiração do céu. Saltei numa catraia, e pouco depois achava-me nesta terra, sem um conhecimento, sem o apoio e sem subsistência para muitos dias.

Entrei em casa de uma modista, e pedi obra. Não ma negou. Aluguei uma água-furtada, onde trabalho há quatro anos; onde, há quatro anos, comprimo bem aos rins, segundo a linguagem antiga, os cilícios do meu remorso.

A minha mãe e o meu irmão vivem. Julgam-me morta, e eu peço a Deus que não haja um indício da minha vida. Sê-me tu fiel, meu generoso amigo, não me denuncies, pela tua honra e pela sorte da tuas irmãs.

Tu sabes o resto. Ouviste, no teatro, Elisa. Foi ela a que me disse que o seu marido a abandonara, chamando-lhe Laura. Aquela está punida...

Sofia... (lembras-te de Sofia?) Essa é uma pequena aventura, que aproveitei para tornar menos insípidas aquelas horas em que me acompanhaste... Foi uma rival que não honra ninguém... Uma Laura com os respeitos públicos, e as considerações que se barateiam a corpos ulcerosos, contando que se vistam de veludos matizados. Ainda eu era feliz, quando o infame amante dessa mulher me dava aquele anel, que viste, como oblação de sacrifício que me fazia de um rival.

Escreve-me.

Hás de ouvir-me no próximo Carnaval.

Por último, Carlos, deixa-me fazer-ta uma pergunta: Não me achas mais defeituosa que o nariz daquela andaluza da história que te contei?

Henriqueta.

***

É natural a exaltação de Carlos, depois de erguido o véu, em que se escondiam os mistérios de Henriqueta. Alma apaixonada pela poesia do belo e pela poesia da desgraça, Carlos não teve nunca impressão na vida que mais lhe incendiasse uma paixão.

As cartas a Ângela Micaela eram o desafogo do seu amor sem esperança. Os mais ferventes êxtases da sua alma de poeta, imprimiu-os naquelas cartas escritas debaixo de uma impressão que lhe roubava a tranquilidade do sono, e o refúgio de outros afetos.

Henriqueta respondera concisamente às explosões de um delírio que nem sequer a fazia tremer pelo seu futuro. Henriqueta não podia amar. Arrancaram-lhe pela raiz a flor do coração. Esterilizaram-lhe a árvore dos belos frutos, e envenenaram-lhe de sarcasmo e ironia os instintos do carinho brando, que acompanham a mulher até a sepultura.

Carlos não podia suportar uma repulsa nobre. Persuadira-se que havia um escalão moral para todas. Confiava no seu ascendente em não sei que mulheres, entre as quais lhe não fora penoso nunca fixar o dia do seu triunfo.

Homens assim, quando encontram um estorvo, apaixonam-se seriamente. O amor-próprio, angustiado nos apertos de uma impossibilidade invencível, adquire uma nova feição, e converte-se em paixão, como as paixões primeiras, que nos sopram a tempestade no límpido lago da adolescência.

Carlos, em último recurso, precisava saber onde morava Henriqueta. No lance extremo de um desafogo, iria ele, audacioso, humilhar-se aos pés daquela mulher, que a não poder amá-lo, choraria com ele ao menos.

Estas preciosas futilidades escaldavam-lhe a imaginação, quando lhe ocorreu a astuciosa lembrança de surpreender a morada de Henriqueta surpreendendo a pessoa que no correio lhe tirava as cartas, subscritas a Ângela Micaela.

Conseguiu o comprometimento de um empregado do correio, Carlos empregou nesta missão um vigia insuspeito.

No dia do correio, uma velha, mal trajada, pediu a carta n° 628. O que a entregou fez um sinal a um homem que passeava no corredor, e este homem seguiu de longe a velha até ao campo de Santo Ovídio. Feliz das vantagens que lucrara em tal comissão, correu a encontrar-se com Carlos. É ocioso descrever a precipitação com que o enamorado mancebo, espiritualizado por algumas libras, correu à indicada casa. Em honra de Carlos, é necessário dizer que aquelas libras representavam a eloquência com que ele tentaria mover a velha no seu favor, por isso que, à vista das informações que tivera da pobreza da casa, concluiu que não era ali a residência de Henriqueta.

Acertou.

A confidente de Henriqueta fechava a porta da sua baiuca, quando Carlos se aproximou, e muito urbanamente lhe pediu licença para dizer-lhe duas palavras.

A velha, que não podia recear alguma agressão traiçoeira aos seus virtuosos oitenta anos, franqueou os umbrais da sua pocilga, e prestou ao seu hóspede a cadeira única do seu camarim de teto de vigas e pavimento de lajes.

Carlos começou como devia o seu ataque. Lembrado da chave com que Bernardes manda fechar os sonetos, aplicou-a à abertura da prosa, e conheceu de pronto as vantagens de ser clássico, quando convém. A velha, quando viu cair no regaço duas libras, sentiu o que nunca sentira a mais carinhosa das mães, com dois filhinhos no colo. Luziram-lhe os olhos, e dançaram-lhe os nervos em todas as evoluções dos seus vinte e cinco anos.

Feito isto, Carlos precisou a sua missão nos seguintes termos:

Esse pequeno donativo, que lhe faço, há de ser repetido, se vossemecê me fizer um grande serviço, que pode fazer-me. Vossemecê recebeu, há pouco, uma carta, e vai entregá-la a uma pessoa, cuja felicidade está nas minhas mãos. Estou certo que vossemecê não há de querer ocultar-me a morada dessa senhora, e privá-la de ser feliz. O serviço que tenho a pedir-lhe, e a pagar-lhe bem, é este; pode fazer-mo?

A frágil mulher, que não se sentia bastante heroína para ir de encontro à legenda que D. João V fez gravar nos cruzados, deixou-se vencer, com mais algumas reflexões e denunciou o santo asilo das lágrimas de Henriqueta, segunda vez atraiçoada por uma mulher, frágil à tentação de ouro, que lhe roubara um amante, e vem agora devassar-lhe o seu sagrado refúgio.

Poucas horas depois, Carlos entrava num a casa da Rua dos Pelames, subia a um terceiro andar, e batia a uma porta, que lhe não foi aberta. Esperou. Momentos depois, subia um rapaz com uma caixa de chapéu de senhora: bateu; perguntaram de dentro quem era, o rapaz falou, e a porta foi imediatamente aberta.

Henriqueta estava sem dominó na presença de Carlos.

Foi sublime esta aparição. A mulher que Carlos viu, não saberemos nós pintá-la. Era o original dessas esplêndidas iluminuras que o pincel do século XVI fazia saltar da tela, e consagrava a Deus, denominando-as Madalena, Maria Egipcíaca e Margarida de Cortona.

O homem é fraco, e sente-se mesquinho perante a majestade da beleza! Carlos sentiu-se dobrar nos joelhos; e a primeira palavra que balbuciou foi “Perdão”!

Henriqueta não pôde receber com a firmeza que devia supor-se-lhe uma tal surpresa. Sentou-se e limpou o suor que lhe correra de improviso todo o corpo.

A coragem de Carlos desmereceu do muito em que ele a tinha. Sucumbiu, e nem ao menos lhe deixou o dom dos lugares-comuns. Silenciosos, olhavam-se com uma simplicidade infantil, indigna de ambos. Henriqueta revolvia no pensamento a indústria com que o seu segredo fora violado. Carlos invocava ao coração palavras que o salvassem daquela crise, que o materializava por ter tocado o extremo do espiritualismo.

Não nos faremos cargo de satisfazer as despóticas exigências do leitor, que pede contas das interjeições e das reticências de um diálogo.

O que podemos garantir-lhe, debaixo da nossa palavra de folhetinista, é que a musa das lamentações desceu à invocação de Carlos, que, por fim, desenvolveu toda a eloquência da paixão. Henriqueta ouviu-o com a seriedade com que uma rainha absoluta escuta um ministro da fazenda, que lhe conta os chatíssimos e maçudos negócios das finanças.

Sorria-se, às vezes, e respondia com um ressaibo de mágoa e de ressentimento, que matava, no nascedouro, os transportes do seu infeliz amante.

As suas últimas palavras, essas sim, são signas de se arquivarem para escarmento daqueles que se julgam herdeiros dos raios de Júpiter Olímpico, quando se empavonam de fulminar as mulheres que tiveram a desventura de se queimarem, como as mariposas, no lume elétrico dos seus olhos. Foram estas as suas palavras:

Sr. Carlos! Até hoje os nossos espíritos viveram ligados por umas núpcias que eu pensei não perturbarem a nossa cara tranquilidade, nem escandalizarem a caprichosa opinião pública. De ora em diante, um solene divórcio entre os nossos espíritos. Estou punida demais. Fui fraca e talvez má, em prender-lhe a sua atenção num baile mascarado. Perdoe-me, que sou, por isso, mais desgraçada do que pensa. Seja meu amigo. Não me envenene esta santa obscuridade, este círculo estreito da minha vida, em que a mão de Deus tem derramado algumas flores. Se não pode avaliar o travo das minhas lágrimas, respeite cavalheiramente uma mulher que lhe pede com as mãos erguidas o favor, a piedade da deixar sozinha com o segredo da sua desonra, que eu prometo nunca mais alargar a minha alma nestas revelações, que morreriam comigo, se eu pudesse suspeitar que atraía com elas a minha desgraça...

Henriqueta continuava, quando Carlos, com lágrimas de uma dor sincera, lhe pedia ao menos a sua estima, e lhe entregava as suas cartas, debaixo do sagrado juramento de nunca mais a procurar.

Henriqueta, entusiasmada pelo patético desta nobre rogativa, apertou ansiosamente a mão de Carlos, e despediram-se.

E nunca mais se viram.

Mas o leitor tem o direito a saber mais alguma coisa.

Carlos, um mês depois, partiu para Lisboa, colheu as necessárias informações, e entrou em casa da mãe de Henriqueta. Uma senhora, vestida de luto, e encostada a duas criadas, veio encontrá-lo numa sala.

— Não tenho a honra de conhecer... — disse a mãe de Henriqueta.

— Sou um amigo...

— De meu filho?!... — interrompeu ela. — Vem-me dar parte do triste acontecimento?... Eu já o sei!... O meu filho é um assassino!...

E prorrompeu num choro, que a não deixava articular palavras.

— O filho de vossa excelência assassino!... — interpelou Carlos.

— Sim... Sim... Pois não sabe que ele matou em Londres o sedutor da minha desgraçada filha?!... da minha filha... assassinada por ele...

— Assassinada, sim, mas só na sua honra — atalhou Carlos.

— Pois minha filha vive!... Henriqueta vive!... Oh meu Deus, meu Deus, eu vos agradeço!...

A pobre senhora ajoelhou, as criadas ajoelharam com ela, e Carlos sentiu um calafrio nervoso, e uma exaltação religiosa, que quase o fizeram ajoelhar com aquele grupo de mulheres, cobertas de lágrimas.

Dias depois, Henriqueta era procurada no seu terceiro andar, pelo seu irmão, e choravam ambos abraçados com toda a expansão de uma dor represada.

Houve aí um drama de agonias grandiosas, que a linguagem do homem não saberá descrever nunca.

Henriqueta abraçou a sua mãe, e entrou num convento onde pede incessantemente a Deus a salvação de Vasco de Seabra.

Carlos é o íntimo amigo desta família, e conta este lance da sua vida como um heroísmo digno de outras épocas.

Laura, viúva de quatro meses, contrai segundas núpcias, e vive feliz com o seu segundo marido, digno dela.

Acabou o conto.

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