Coisas que só eu sei
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
Na última noite do Carnaval, que foi justamente aos 8 dias do mês de fevereiro, do corrente ano, pelas 9 horas e meia da noite entrava no Teatro de São João, desta heroica e muito nobre e sempre leal cidade, um dominó de cetim.
Dera ele os dois primeiros passos no
pavimento da plateia, quando um outro dominó de veludo preto veio
colocar-se-lhe frente a frente, numa contemplação imóvel.
O primeiro demorou-se um pouco a medir
as alturas do seu admirador, e virou-lhe as costas com indiferença natural.
O segundo, momentos depois, aparecia ao
lado do primeiro, com a mesma atenção, com a mesma penetração de vista.
Desta vez o dominó-cetim aventurou uma
pergunta naquele desgracioso falsete, que todos nós conhecemos:
— Não quer mais do que isso?
— Do que isso!...— respondeu uma máscara que passava por casualidade,
esganiçando-se numa risada que raspava o tímpano. — Olha do que isso!... Já vejo que és pulha!...
E retirou-se repetindo — Do que isso...
do que isso...
Mas o dominó-cetim não sofreu, ao que
parecia, a menor contrariedade com esta charivari. E o dominó-veludo nem sequer
acompanhou com os olhos o imprudente que viera embaraçar-lhe uma resposta digna
da pergunta, fosse ela qual fosse.
O cetim
(fique assim conhecido para evitarmos palavras e tempo, que é um preciosíssimo
cabedal), o cetim, desta vez, encarou
com mais alguma reflexão o veludo.
Conjeturou suposições fugitivas, que se destruíam mutuamente. O veludo era forçosamente uma mulher. A
pequenez do corpo, cuja flexibilidade o dominó não encobria; a delicadeza da
mão, que protestava contra o ardil mentiroso de uma luva larga; a ponta de
verniz, que um descuido, no lançar do pé, denunciara debaixo da fímbria do
veludo, este complexo de atributos, quase nunca reunidos num homem, captaram as
sérias atenções do outro, que, incontestavelmente, era um homem.
— Quem quer que sejas — disse o cetim —
não te gabo o gosto! Tomara eu saber o que vês em mim, que tanta impressão te
faz!
— Nada — respondeu o veludo.
— Então, deixa — me, ou diz-me alguma
coisa ainda que seja uma sensaboria, mais eloquente que o teu silêncio.
— Não te quero embrutecer. Sei que tens
muito espírito, e seria um crime de lesa— Carnaval se te dissesse alguma dessas
graças salobras, capazes de fazer calar para todo o sempre um Demóstenes de
dominó.
O cetim
mudou de opinião a respeito do seu perseguidor. E não admira que o recebesse
com rudeza no princípio, porque, em Portugal, um dominó em corpo de mulher, que
passeia “sozinha” num teatro, permite umas suspeitas que não abonam as virtudes
do dominó, nem lisonjeiam a vaidade de quem lhe recebe o conhecimento. Mas a
mulher em quem recai semelhante hipótese não conhece Demóstenes, nem diz leso-carnaval, nem aguça a frase com o
adjetivo salobras.
O cetim
arrependeu-se da aspereza com que recebera os atenciosos olhares daquela
incógnita, que começava a fazer-se valer como tudo aquilo que apenas se conhece
por uma face boa. O cetim juraria,
pelo menos, que aquela mulher não era estúpida. E, seja dito sem tenção
ofensiva, já não era insignificante a descoberta, porque é mais fácil descobrir
um mundo novo que uma mulher ilustrada. É mais fácil ser Cristóvão Colombo que
Emílio Girardin.
O cetim,
ouvida a resposta do veludo,
ofereceu-lhe o braço, e gostou da boa vontade com que lhe foi recebido.
— Conheço — diz ele — que o teu contato
me espiritualiza, belo dominó...
— Belo,
me chamas tu!... É realmente uma leviandade que te não faz honra!... Se eu
levantasse esta sanefa de seda, que me faz bonita, ficavas como aquele poeta
espanhol que soltou uma exclamação de terror na presença de um nariz... que
nariz não seria, santo Deus!... Não sabes essa história?
— Não, meu anjo!
— Meu
anjo!... Que graça! Pois eu ta conto. Como o poeta se chama não sei, nem
importa. Imagina tu que és um poeta, fantástico como Lamartine, vulcânico como
Byron, sonhador como Mac-Pherson e voluptuoso como Voltaire aos 60 anos.
Imagina que o tédio desta vida chilra que se vive no Porto te obrigou a deixar
no teu quarto a pitonisa descabelada das tuas inspirações, e vieste por aqui
dentro a procurar um passatempo nestes passatempos alvares de um baile de
Carnaval. Imagina que encontravas uma mulher extraordinária de espírito, um
anjo de eloquência, um demônio de epigrama, enfim, uma destas criações
miraculosas que fazem rebentar uma chama improvisa no coração mais de gelo, e
de lama, e de toucinho sem nervo. Ris? Achas nova a expressão, não é assim? Um
coração de toucinho parece-te uma ofensa ao bom senso anatômico, não é verdade?
Pois, meu caro dominó, há corações de toucinho estreme. São os corações, que
resumam óleo em certas caras estúpidas... Por exemplo... Olha este homem
redondo, que aqui está, com as pálpebras em quatro refegos, com os olhos
vermelhos como os de um coelho morto, com o queixo inferior pendente, e o lábio
escarlate e vidrado como o bordo de uma pingadeira, orvalhada de banha de
porco... Esta cara não te parece um grande rijão? Não crês que este baboso
tenha um coração de toucinho?
— Creio, creio; mas fala mais baixo que
o desgraçado está gemer debaixo do teu escalpelo...
— És tolo, meu cavalheiro! Ele entende
me lá! É verdade, aí vai a história do espanhol, que tenho que fazer...
— Então queres deixar-me?
— E tu?. Queres que eu te deixe?
— Palavra de honra que não! Se me
deixas, retiro-me...
— És muito amável, meu querido
Carlos...
— Conheces-me?!
— Essa pergunta é ociosa. Não és tu Carlos!
— Já falaste comigo na tua voz natural?
— Não; mas começo a falar agora.
E com efeito falou. Carlos ouviu um som
de voz sonora, metálica e insinuante. Cada palavra daqueles lábios misteriosos
saía vibrante e afinada como a nota de uma tecla. Tinha aquele não-sei-quê que
só escuta nas salas onde falam mulheres distintas, mulheres que obrigam a gente
a prestar fé aos privilégios, às prerrogativas, aos dons muito peculiares da
aristocracia do sangue. Todavia, Carlos não se recordava de ter ouvido
semelhante voz, nem semelhante linguagem.
Uma aventura de romance! dizia ele lá
consigo, enquanto o dominó-veludo, conjeturando o enleio em que pusera o seu
entusiasta companheiro, continuava a fazer gala do mistério, que é de todas as
alfaias aquela que mais alinda a mulher! Se elas pudessem andar sempre de
dominó! Quantas mediocridades em inteligência rivalizariam com Jorge Sand!
Quantas fisionomias infelizes viveriam com a fama da mulher de Abdel-Kader!
— Então quem sou eu?— prosseguiu ela. —
Não me dirás?... Não dizes... Pois então, tu és Carlos, e eu sou Carlota...
Fiquemos nisto, sim?
— Enquanto eu não souber o teu nome,
deixa-me chamar-te de “anjo”.
— Como quiseres; mas sinto dizer-te que
não és nada original! Anjo! É um
apelido tão safado como Ferreira, Silva,
Sousa, Costa... et cetera. Não vale a pena questionarmos: batiza-me à tua
vontade. Ficarei sendo o teu “anjo de Entrudo”. E a história?... Imagina que te
possuías de um amor impetuoso por essa mulher, que fantasiaste linda, e
insensivelmente lhe curvaste o joelho, pedindo-lhe uma esperança, um sorriso
afetuoso através da máscara, um aperto convulsivo de mão, uma promessa, ao
menos, de se mostrar um, dois, três anos depois. E essa mulher, cada vez mais
sublime, cada vez mais literata, cada vez mais radiosa, protesta eloquentemente
contra as tuas instâncias, declarando-se muito feia, indecentíssima de nariz,
horrível até, e, como tal, pesa-lhe na consciência matar as tuas cândidas
ilusões, levantando a máscara. Tu que a não crês, instas, súplicas, abrasas-te
num ideal que toca as extremas do ridículo, e estás capaz de lhe dizer que te
abolas o crânio com um tiro de pistola, se ela não levanta a cortina daquele
mistério que te dilacera uma por uma as fibras do coração. Chamas-lhe Beatriz,
Laura, Fornarina, Natércia, e ela diz-te que se chama Custódia, ou Genoveva
para te aguar a poesia desses nomes, que, na minha humilde opinião, são
completamente fabulosos. O dominó quer fugir-te ardilosamente, e tu não lhe
deixas um passo livre, nem um dito espirituoso a outro, nem um lançar de olhos
para as máscaras, que a fixam como quem sabe que está ali uma rainha, envolta
naquele manto negro. Por fim, a tua perseguição é tal que a desconhecida
Desdêmona finge assustar-se, e sai contigo ao salão do teatro para levantar a
máscara. Arfa-te o coração na ansiedade de uma esperança: sentes o júbilo do
cego de nascimento, que vai ver o sol; estremeces como a criança a quem vão dar
um bonito, que ela não viu ainda, mas imagina ser quanto o seu coração infantil
ambiciona neste mundo... Ergue-se a máscara!... Horror!... Vês um nariz... Um
nariz-pleonasmo, um nariz homérico, um nariz Maio que o do duque de Choiseul,
onde cabiam três jesuítas a cavalo! Recuas! Sentes despregar-se-te o coração
das entranhas, coras de vergonha e foges desabridamente...
— Tudo isso é muito natural.
— Pois não há nada mais
artificial, meu caro senhor. Eu lhe conto o resto, que é o mais interessante para
o mancebo que faz do nariz de uma mulher o termômetro de avaliar-lhe a
temperatura do coração. Imagina, meu jovem Carlos, que saíste do teatro depois,
e entraste na Águia de Ouro a comer
ostras, segundo o costume dos elegantes do Porto. E quando pensavas, ainda
aterrado, na aventura do nariz, te aparecia o fatídico dominó, e se assentava
ao teu lado, silencioso e imóvel, como a larva das tuas asneiras, cuja memória
procuravas delir na imaginação com os vapores do vinho... Perturba-se-te a
digestão, e sentes contrações no estômago, que te ameaçam com o vômito. A massa
enorme daquele nariz figura-se-te no prato em que tens a ostra, e já não podes
levar à boca um bocado do teu apetitoso manjar sem um fragmento daquele fatal
nariz à mistura. Queres transigir com o silêncio do dominó; mas não podes. A
inexorável mulher aproxima-se de ti, e tu, com um sorriso cruelmente
sarcástico, pedes-lhe que te não entorne com o nariz o copo de vinho. Achas
isto natural, Carlos?
— Há aí crueldade demais... O poeta
devia ser mais generoso com a desgraça, porque a missão do poeta é a
indulgência não só para as grandes afrontas, mas até para os grandes narizes.
— Será; mais o poeta, que transgrediu a
sublime missão de generosidade para com as mulheres feias, vai ser punido. Imagina
que aquela mulher, pungida pelo sarcasmo, levanta a máscara. O poeta ergue-se,
e vai fugir com grande escândalo do dono da casa, que naturalmente tem a sorte
do boticário de Nicolau Tolentino. Mas... Vingança do céu!... aquela mulher ao
levantar a máscara arranca do rosto um nariz postiço, e deixa ver a mais famosa
cara que o céu iluminar há seis mil anos! O espanhol que ajoelhar àquela
dulcíssima visão de um sonho, mas a nobre andaluza repele-o com um gesto, onde
o desprezo está associado à dignidade mais senhoril.
***
Carlos cismava na aplicação da anedota,
quando o dominó disse-lhe, adivinhando-lhe o pensamento:
— Não creias que eu seja mulher de
nariz de cera, nem me suponhas capaz de assombrar-te com a minha fealdade. A
minha modéstia não vai tão longe... Mas, meu pacientíssimo amigo, há em mim um
defeito pior que um nariz enorme: não é físico nem moral; é um defeito
repulsivo e repelente: é uma coisa que eu não sei exprimir-te com a linguagem
do inferno, que é a única e mais eloquente que eu sei falar, quando me lembro
que sou assim defeituosa!
— És uma enigma!... — atalhou Carlos,
embaraçado, e convencido de que encontrara um tipo maior que os moldes tacanhos
da vida romanesca em Portugal.
— Sou, sou! — acudiu ela com rapidez —
sou aos meus próprios olhos um dominó, um continuado carnaval de lágrimas...
Está bom! Não quero tristezas... Se me tocas na tecla do sentimentalismo,
deixo-te. Eu não vim aqui fazer papel de dama dolorida. Soube que estavas aqui,
procurei-te, esperei-te mesmo com ansiedade, porque sei que és espirituoso, e
podias, sem prejuízo da tua dignidade, ajudar-me a passar algumas horas de
ilusão. Fora daqui, tu ficas sendo Carlos, e eu serei sempre uma incógnita
muito grata ao seu companheiro. Agora acompanha-me: vamos ao camarote 10 da
segunda ordem. Conheces aquela família?
— Não.
— É uma gente da província. Não digas
tu nada; deixa-me falar a mim, e verás que não passas mal... É muito orgulho,
não achas?
— Não acho, não, minha querida; mas eu
antes queria não desperdiçar estas horas porque fogem. Tu vais falar, mas não é
comigo. Sabes que tenho ciúmes de ti?
— Sei que tens ciúmes de mim... Sabes
tu que eu tenho um profundo conhecimento do coração humano? Já vês que não sou
a mulher que imaginas, ou quererias que eu fosse. Não comeces a desvanecer-te
com uma conquista esperançosa. Faz calar o teu amor-próprio, e emprega a tua
vaidade em bloquear com ternuras calculadas uma inocente a quem possas fazer
feliz, enquanto a enganas...
— Julgas, portanto, que te minto!...
— Não julgo, não. Se mentes a alguém é
a ti próprio: bem vês que não te creio... Tempo perdido! Anda, vem comigo,
senão...
— Senão... O quê?
— Senão... Olha.
E a melindrosa desconhecida largou-lhe
o braço com delicadeza, e retirara-se, apertando-lhe a mão.
Carlos, sinceramente comovido, apertou
aquela mão, com o frenesi apaixonado de um homem que quer suster a fuga da
mulher por quem se mataria.
— Não — exclamou ele com entusiasmo —
não me fujas, porque me levas a esperança mais bela que o meu coração concebeu.
Deixa-me adorar-te, sem te conhecer!... Não levantes nunca esse véu... Mais
deixa-me ver a face da tua alma, que deve ser a realidade de um sonho de vinte
e sete anos...
— Estás dramático, meu poeta! Eu sinto
realmente a minha pobreza de palavras garrafais... Queria ser uma vestal de
estilo fervente para sustentar o fogo sagrado do diálogo... O monólogo dever
cansar-te, e a tragédia desde Sófocles até nós não pode dispensar uma segunda
pessoa...
— És um prodígio...
— De literatura grega, não é verdade?
ainda sei muitas outras coisas da Grécia. A Laís também era muito versada, e
repetia as rapsódias gregas com um garbo sublime; mas a Laís era... Sabes tu o
que ela era?... E serei eu o mesmo? Já vês que a literatura não é sintoma de
virtudes dignas da tua afeição...
Tinham chegado ao camarote na segunda
ordem. O dominó-veludo bateu, e a porta foi, como devia ser, aberta.
A família que ocupava o camarote
compunha-se de muitas pessoas, sem tipo, vulgaríssimas, e prosaicas demais para
captarem a atenção de um leitor avesso a trivialidades. Todavia, estava aí uma
mulher que valia um mundo, ou coisa maio que o mundo — o coração de um poeta.
As rosas purpurinas dos vinte anos
tinham-lhe sido crestadas pelo hálito abrasado dos salões. A placidez
extemporânea de uma vida agitada via-se-lhe no rosto protestando não contra os
prazeres, mas contra a debilidade de um sexo que não pode acompanhar com a
matéria as evoluções desenfreadas do espírito. Mas que olhos! Mas que vida! Que
eletricidade no frenesi daquelas feições! Que projeção de uma sombra azulada
lhe descia das pálpebras! Era uma mulher em cujo rosto transluzia a soberba,
talvez demasiada, da sua superioridade.
O dominó-veludo estendeu-lhe a mão, e
chamou-lhe Laura.
Seria Laura? É certo que ela estremeceu,
e recuou a mão repentinamente como se uma víbora lha tivesse mordido.
Aquela palavra simbolizava um mistério
dilacerante: era a senha de uma grande luta em que a pobre senhora devia sair
escorrendo sangue.
— Laura — repetiu o dominó — não me
apertas a mão? Deixa-me ao menos sentar-me perto... Muito perto de ti... Sim?
O homem que mais próximo estava de
Laura afastou-se urbanamente para deixa aproximar uma máscara, que denunciara o
sexo pela voz, e a distinção pela mão.
E Carlos nunca mas despregou os olhos
daquela mulher, que revelava a cada instante um pensamento na variadas
fisionomias com que queria disfarçar a sua angústia íntima.
A desconhecida fez sinal a Carlos para
que se aproximasse. Carlos, enleado nos embaraços naturais daquela situação toda
para ele enigmática, recusava cumprir as imperiosas determinações de uma mulher
que parecia calcar todos os melindres. Os quatro ou cinco homens, que pareciam
familiares de Laura, não deram muita importância aos dominós. Conjeturaram,
primeiro, e quando supuseram que tinham conhecido as visitas, deixaram em plena
liberdade as duas mulheres, que se falavam de perto como duas amigas íntimas. O
cavalheiro passou por um tal Eduardo, e a desconhecida tiveram-na por uma D.
Antônia.
Laura umedecia os lábios com a língua.
As surpresas pungentes produzem uma febre, e aquecem o mais belo calculado
sangue-frio. A incógnita, profundamente conhecedora da situação da sua vítima,
falou ao ouvido de Carlos:
— Estuda-me aquela fisionomia. Eu não
estou em circunstâncias de ser Max... Sofro demasiado para contar as pulsações
deste coração. Se te sentires condoído desta mulher, tem compaixão de mim, que
sou mais desgraçada que ela.
E voltando-se para Laura:
— Procuro, há quatro anos, uma ocasião
de prestar homenagem à tua conquista. Deus, que é Deus, não despreza os
incensos do verme da terra, nem esconde à vista dos homens a sua cara majestosa
num manto de estrelas. Tu, Laura, que és mulher, embora os homens te chamem
anjo, não desprezarás vaidosa a homenagem de uma pobre criatura, que vem depor
aos teus pés o óbolo sincero da sua adoração.
Laura não levantava os olhos do leque;
mas a mão, que o sustinha, tremia; e os olhos, que o contemplavam, pareciam
absortos num quadro aflitivo.
E o dominó continuou:
— Foste muito feliz, minha cara amiga!
Eras digna do ser. Colheste o fruto abençoado da abençoada semente que o Senhor
fecundou no teu coração de pomba! Olha, Laura, deves dar muitas graças à
Providência, que velou os teus passos no caminho do crime. Quando devias resvalar
no abismo da prostituição, subiste, radiante de virtudes, ao trono das virgens.
O teu anjo da guarda foi-te leal! És uma exceção a milhares de desgraçadas, que
nasceram em estofos de damasco, cresceram em perfumes de opulência. E, quanto
mais, minha ditosa Laura, tu nasceste nas palhas da miséria, cresceste nos
andrajos da indigência, ainda viste com os olhos da razão a desgraça sentada à
cabeceira do teu leito... e, contudo, eis-te aí rica, honrada, formosa, e
soberba de encantos, com que podes insultar toda essa turba de mulheres, que te
admiram! Há tanta mulher infeliz! Queres saber a história de uma?
Laura, contorcendo-se como se fosse de
espinhos a cadeira em que estava, não tinha ainda balbuciado um monossílabo;
mas a urgente pergunta, duas vezes repetida, do dominó, obrigou-a a responder
afirmativamente com um gesto.
— Pois bem, Laura, conversemos
amigavelmente.
Um dos indivíduos, que estava presente,
e ouvira pronunciar Laura, perguntou
à mulher que assim era chamada:
— Elisa, ela chama-te Laura?
— Não, meu pai... — respondeu Elisa,
titubeando.
— Chamo Laura, chamo... e que tem lá
isso, Sr. Visconde? — atalhou a incógnita, com afabilidade, erguendo o falsete
para ser bem ouvida. — É um nome de Carnaval, que passa com os dominós.
Quarta-feira de cinza torna a filha de vossa excelência a chamar-se Elisa.
O visconde sorriu-se, e o dominó
continuou, abaixando a voz, e falando naturalmente:
***
— Henriqueta...
Esta palavra foi um abalo que fez
vibrar todas a fibras de Elisa. O rosto incendiou-se-lhe daquele encarnado do
pudor ou da raiva. Esta sensação violenta não podia ser desapercebida. O
visconde, que parecia estranho à conversação íntima daquelas supostas amigas,
não o pôde ser à agitação febril da sua filha.
— Que tens, Elisa?! — perguntou ele
sobressaltado.
— Nada, meu pai... Foi um ligeiro
incômodo... Estou quase boa...
— Se queres respirar vamos ao salão, ou
vamos para casa...
— Antes para casa — respondeu Elisa.
— Eu vou mandar buscar a sege — disse o
visconde; e retirou-se.
— Não vás, Elisa... — disse o dominó,
com uma voz imperiosa, semelhante a uma ameaça inexorável. — Não vás... Porque,
se vais, contarei a todo o mundo uma história que só tu hás-de-saber. Este
outro dominó, que tu não conheces, é um cavalheiro: não temas a menor
imprudência.
— Não me martirizes! — disse Elisa. —
Eu sou infeliz demais, para ser flagelada com a tua vingança... Tu és
Henriqueta, não és?
— Que te importa a ti saber quem eu
sou?!...
— Importa muito... Sei que és
desgraçada!... Não sabia que vivias no Porto; mas palpitou-me o coração que
eras tu, apenas me chamaste Laura.
O visconde entrou afadigado, dizendo
que a sege não podia tardar, e convidando a filha para dar alguns passeios no
salão do teatro. Elisa satisfez a carinhosa ansiedade do pai, dizendo que se
sentia boa, e pedindo-lhe que se demorasse até mais tarde.
— Onde julgavas tu que eu existia? No
cemitério, não é assim? — perguntou Henriqueta.
— Não: sabia que vivias, e profetizava
que devia encontrar-te... Que história me queres tu contar?... A tua? Essa já
eu sei... Imagino-a... Tens sido muito infeliz... Olha, Henriqueta... Deixa-me
dar-te esse tratamento afetuoso com que nos conhecemos, com que fomos tão
amigas, alguns fugitivos dias, no tempo em que o destino nos marcava com o
mesmo estigma de infortúnio...
— O mesmo... Não!... — atalhou
Henriqueta.
— O mesmo, sim, o mesmo... E se me
forças a contradizer-te, direi que invejo a tua sorte, seja ela qual for...
Elisa chorava, e Henriqueta emudecera.
Carlos estava impaciente pelo desfecho desta aventura, e desejava, ao mesmo
tempo, reconciliar estas duas mulheres, e fazê-las amigas, sem saber a razão
porque eram inimigas. A beleza impõe-se à compaixão. Elisa era bela, e Carlos
era de uma sensibilidade extremosa. A máscara poderia ser, mas a outra era
um anjo de simpatia e formosura. O espírito gosta do mistério que esconde o
belo; mas decide-se pela beleza real, sem mistério.
Henriqueta, depois de alguns minutos de
silêncio, durante os quais não era possível avaliar-lhe o coração pela exterioridade
da fisionomia, exclamou com ímpeto, como se despertasse de um sonho, daqueles
íntimos sonhos de dor, em que a alma se reconcentra:
— Teu marido?
— Está em Londres.
— Há quanto tempo o não visite?
— Há dois anos.
— Abandonou-te?
— Abandonou-me.
— E tu?... Abandonaste-o?
— Não concebo a pergunta...
— Ainda o amas?
— Ainda...
— Com paixão?
— Com delírio...
— Escreves-lhe?
— Não me responde...
— Despreza-me, e chama-me Laura.
— Elisa! — disse Henriqueta, com a voz
trêmula, e apertando-lhe a mão com entusiasmo nervoso — Elisa! Perdoo-te... És
bem mais desgraçada que eu, porque tens um homem que pôde chamar-te Laura, e eu
não tenho senão um nome... Sou Henriqueta! Adeus.
Carlos pasmou do desenlace cada vez
mais embrulhado daquele prólogo de um romance. Henriqueta tomo-lhe o braço com
precipitação, e saiu do camarote abaixando levemente a cabeça aos cavalheiros,
que se davam tratos por adivinhar o segredo daquela conversa.
— Não pronuncies o meu nome em voz
alta, Carlos. Sou Henriqueta; mas não me atraiçoes, se queres a minha amizade.
— Como hei de eu atraiçoar-te, se não
sei quem és? Podes chamar-te Júlia em vez de Henriqueta, que, nem por isso te
fico conhecendo mais. Tudo mistérios! — Tens-me, há mais de uma hora, num
estado de tortura! Eu não sirvo para estas emboscadas... Diz-me quem é aquela
mulher...
— Não viste que é D. Elisa Pimentel,
filha do visconde do Prado?
— Não a conhecia...
— Então que mais queres que eu te diga?
— Muitas outras coisas, minha ingrata.
Quero que me digas quantos nomes tem aquela Laura, que se chama Elisa. Fala-me
do marido daquela mulher...
— Eu te digo... O marido daquela mulher
chama-se Vasco de Seabra... Estás satisfeito?
— Não... Quero saber que relações tens
tu com esse Vasco ou com aquela Laura?
— Não saberás mais nada, se fores
impaciente. Imponho-te mesmo um profundo silêncio a respeito do que ouviste. A
menor pergunta que me faças, deixo-te ralado por essa curiosidade indiscreta,
que te faz parecer uma mulher de soalheiro. Eu contraí contigo a obrigação de
te contar a minha vida?
— Não; mas contraístes com a minha alma
a obrigação de eu me interessar na tua vida e nos teus infortúnios desde este
momento.
— Obrigado, cavalheiro! — Juro-te uma
sincera amizade. — Hás de ser o meu confidente.
Estava, outra vez, na plateia.
Henriqueta aproximou-se ao quarto camarote da primeira ordem, firmou o pé de
fada na frisa, segurou-se ao peitoril do camarote, e travou conversação com a
família que o ocupava. Carlos acompanhou-a em todos esses movimentos, e
preparou-se para um novo enigma.
Segundo o costume, as mãos de
Henriqueta passaram por uma análise rigorosa. Não era possível, porém, fazê-la
tirar a luva da mão esquerda.
— Dominó, porque não deixas ver este
anel? — perguntava uma senhora de olhos negros, e vestida de negro, como uma
viúva rigorosamente enlutada.
— Que te importa o anel, minha querida
Sofia!?... Falemos de ti, aqui em segredo. Ainda vives melancólica, como a Dido
da fábula? Fica-te bem essa cor de esquifes, mas não sustentas o caráter
artístico com perfeição. A tua tristeza é fingida, não é verdade?
— Não me ofendas, dominó, que eu não te
mereço essa injúria... A desgraça nunca se finge...
— Disseste uma verdade, que é a tua
condenação. Eu, se tivesse sido abandonada por um amante, não vinha aqui dar-me
em espetáculo a um baile de máscaras. A desgraça não se finge, é verdade; mas a
saudade esconde-se para chorar, e a vergonha não se ostenta radiosa desse
sorriso que te brinca nos lábios. Olha, minha amiga, há umas mulheres que nasceram
para esta época, e para estes homens. Há outras que a Providência caprichosa
atirou a esta geração corrompida como os imperadores romanos atiravam os
cristãos ao anfiteatro dos leões. Felizmente que tu não és das segundas, e
sabes harmonizar com o teu gênio folgazão e desleixado uma hipocrisia que te
vai bem num sofá de penas, onde tu recostas com um perfeito conhecimento das
atitudes lânguidas das mulheres cansadas do Balzac. Eu, se fosse homem,
amava-te por desfastio!... És a única mulher para quem este país é pequeno.
Devias conhecer o Regente, e Richelieu, e os Abades de Versalhes, e as filhas
do Regente, e as Heloísas desenvoltas dos Abades, e as aias da duquesa do
Maine... et cetera. Isto por cá é pequeníssimo para as Frineias. Uma mulher da
tua índole morre asfixiada neste ambiente pesado em que o coração, nas suas
expansões românticas, encontra, quase sempre, a mão burguesa das conveniências
a tapar-lhe os respiradouros. Parece que te enfadas de mim?
— Não te enganas, dominó...
Obsequeias-me se me não deres o incômodo de te mandar retirar.
— És muito delicada, minha nobre Sofia!
Já agora, porém, deixa-me dar-te uma ideia mais precisa desta mulher que te
enfada, e que, apesar das tuas injustiças, se interessa na tua sorte. Diz-me
cá... Tens uma sincera paixão, uma saudade pungente por aquele belo capitão de
cavalaria que te deixou, tão sozinha, com as tuas agonias de amante?
— Que te importa?...
— És cruel! Pois não ouves o tom
sentimental com que te faço esta pergunta?... Quantos anos tens?...
— Metade e outros tantos...
— A resposta não me parece tua...
Aprendeste essa vulgaridade com a filha do teu sapateiro?... Ora olha: tu tens
38 anos, a não ser mentiroso o assento de batismo, que se lê no cartório da
freguesia dos Mártires em Lisboa.
Aos vinte anos amavas com ternura um
tal Pedro Sepúlveda. Aos vinte e cinco, amavas com paixão, um tal Jorge
Albuquerque. Aos 30, amavas com delírio, um tal Sebastião de Meireles. Aos 35,
amavas, em Londres, com frenesi um tal... Como se chamava... Não me recordo...
Diz-me, por piedade, o nome desse homem, que, senão, fica o meu discurso sem o
efeito do drama... Não dizes, má?... Ai!... Eu tenho aqui a mnemônica...
Henriqueta tirou a luva da mão
esquerda, e deixou ver um anel. Sofia estremeceu, e corou até às orelhas.
— Já te recordas?... Não cores, minha
querida amiga. Que não fica bem ao teu caráter de mulher que conhece o mundo
pela face positiva. Deixa-me agora arredondar o período, como dizem os
literatos. Ora tu, que amaste desenfreadamente cinco antes do sexto homem, como
queres fingir, debaixo desse vestido negro, um coração varado de saudades e
órfão de consolações?. Adeus, minha bela hipócrita.
Henriqueta desceu elegantemente do seu
poleiro, e deu o braço a Carlos.
***
Eram três horas.
Henriqueta disse que se retirava,
depois de vitimar com os seus ligeiros, mas pungentes gracejos, alguns daqueles
muito que provocam o sarcasmo só com a presença, só com o vulto corporal, só
com a sensaboria de um remoque parvo e pretensioso. O Carnaval é uma exposição
anual destes infelizes.
Carlos, ao ver que Henriqueta se
retirava com um segredo que tanto irritara a sua curiosidade, instou com
delicadeza, com meiguice, e até com ressentimento, pela realidade de uma
esperança, que fizera a sua felicidade de algumas horas.
— Eu não me arrependo — disse ele — de
ter sido a voluntária testemunha dos teus desforços... Ainda mesmo que me
tivessem conhecido, e tu fosses uma mulher licenciosa e depravada, não me
arrependeria... Ouvi-te, iludi-me na esperança vaidosa de conhecer-te, tive
orgulho de ser o escolhido para sentir de perto as pulsações vertiginosas do
teu coração... Estou recompensado demais... Ainda assim, Henriqueta, eu não
tenho pejo de abrir-te a minha alma, confessando-te um desejo de conhecer-te que
não posso iludir... Este desejo vais-mo tu convertendo numa dor; e será logo
uma saudade insuportável, que te faria compaixão se soubesses avaliar o que é
na minha alma um desejo impossível.
Se tu mo não dizes, que me dirá o teu nome?
— Não sabes que sou Henriqueta?
— Que importa? E serás tu
Henriqueta?”
— Sou... Juro-te que sou...
— Não basta isto... Ora diz-me...
— Não sentes a precisão de ser-me
grata?”
— A quê, meu cavalheiro?
— Grata ao melindre com que te tenho
tratado, grata à delicadeza com que te peço uma revelação da tua vida, e grata
a este impulso invencível que me manda ajoelhar-te... Será nobre zombar de um
amor que involuntariamente fizeste nascer?
— Não te iludas, Carlos — replicou
Henriqueta num tom de seriedade, semelhante ao de uma mãe que aconselha seu
filho. O amor não é isso que pica a tua curiosidade. As mulheres são fáceis de
transigir de boa fé com a mentira, e, pobres mulheres! Sucumbem muitas vezes à
eloquência artificiosa de um conquistador. Os homens, fartos de estudarem as
paixões na sua origem, e enfadados das rápidas ilusões que eles choram todos os
dias, estão prontos sempre a declararem-se afetados de cólera-paixão, e nunca
apresentam carta limpa de céticos. De
maneira que o sexo frágil das quimeras sois vós, criancinhas de toda a vida,
que brincais aos trinta anos com a mulher como aos seis brincáveis com os
cavalinhos de pau, e os fradinhos de sabugo! Olha, Carlos, eu não sou
ingrata... Vou-me despedir de ti, mas hei de conversar contigo ainda. Não
instes; abandona-te à minha generosidade, e verás que alguma coisa lucraste em
me encontrar e em me não conhecer. Adeus.
Carlos acompanhou-a com os olhos, e
permaneceu alguns minutos numa espécie de idiotismo, quando a viu desaparecer à
saída do teatro. O seu primeiro pensamento foi segui-la; mas a prudência
lembrou-lhe que era uma indignidade. O segundo foi empregar a intriga astuciosa
até roubar alguma revelação àquela Sofia da primeira ordem ou à Laura da
segunda. Não lhe lembraram recursos, nem eu sei quais eles poderiam ser. Laura
e Sofia, para dissiparem completamente a esperança ansiosa de Carlos, tinham-se
retirado. Era necessário esperar, era necessário confiar naquela mulher
extraordinária, cujas promessas o alvoroçado poeta traduzia em mil versões.
Carlos retirou-se, e esqueceu não sei
quantas mulheres, que ainda, na noite anterior, lhe povoaram os sonhos. Ao
amanhecer, ergueu-se, e escreveu as reminiscências vivas da cena, quase
fabulosa, que lhe transtornava o plano de vida.
Não houve nunca um coração tão ambicioso
de futuro, tão fervente de poesia, e tão fantástico de conjeturas! Carlos
adorava seriamente aquela mulher! Como estas adorações se afervoram com tão
pouco, não sei eu: mas que o amor é assim, vou eu jurá-lo, e espero que os meus
amigos me não deixem mentir.
Imaginem, portanto, a inquietação
daquele grande espiritualista, quando viu passarem, vagarosos e enfadonhos,
oito dias, sem que o mais ligeiro indício lhe viesse confirmar a existência de
Henriqueta! Não direi que o desesperado amante apelou para o supremo tribunal
das paixões impossíveis. O suicídio não lhe passou nunca pela imaginação; e
muito sinto que esta verdade diminua as simpatias que o meu herói poderia
granjear. A verdade, porém, é que o apaixonado mancebo vivia sombrio,
isolava-se contra os seus hábitos socialmente galhofeiros, abominava as
impertinências da sua mãe que o consolava com anedotas trágicas a respeito de
rapazes cegos de amor, e, enfim, sofrera a ponta tal que resolvera abandonar
Portugal, se, no fim de quinze dias, a fatídica mulher continuasse a ludibriar
a sua esperança.
Diga-se, porém, em honra e louvor da
astúcia humana: Carlos, resolvido a partir, lembrou-se de pedir a um seu amigo,
que, na gazetilha do Nacional,
dissesse, por exemplo, o seguinte:
O Sr. Carlos de Almeida vai, no próximo
paquete, para Inglaterra. Sua senhoria tenciona observar de perto a civilização
das primeiras capitais da Europa. O Sr. Carlos de Almeida é uma inteligência,
que, enriquecida pela instrução prática da sua visita aos focos da civilização,
há de voltar à sua pátria com fecundo cabedal de conhecimentos em todos os
ramos das ciências humanas. Fazemos votos porque sua senhoria se recolha em
breve ao seio dos seus numerosos amigos.
Esta local bem podia ser que chegasse
às mãos de Henriqueta. Henriqueta bem podia ser que conjeturasse o imperioso
motivo que obrigava o infeliz a buscar distrações longe da pátria, onde a sua
paixão era invencível. E, depois, nada mais fácil que uma carta, uma palavra,
um raio de esperança, que lhe transtornasse os seus planos.
Era esta a infalível tenção de Carlos,
quando ao décimo quarto dia lhe foi entregue a seguinte carta:
***
Carlos,
Sem ofender as leis da civilidade,
continuo a dar-te o tratamento do dominó, por que, em boa verdade, eu continuo
a ser para ti um dominó moral, não é assim?
Passaram-se catorze dias, depois que
tiveste o mau encontro de uma mulher, que te privou de algumas horas de
deliciosa intriga. Vítima da tua delicadeza, levaste o sacrifício a ponto de te
mostrares interessado na sorte dessa célebre desconhecida que te mortificou.
Não serei eu, generoso Carlos, ingrata a essa manifestação cavalheirosa, embora
ela será um rasgo de artista, e não um desejo espontâneo.
Queres saber por que tenho demorado
catorze dias este grande sacrifício que vou fazer? É porque ainda hoje me
levanto de uma febre incessante, que me insultou naquele camarote da segunda
ordem, e que, neste momento, parece declinar.
Permita Deus que seja longo o intervalo
para ser longa a carta: mas eu sinto-me tão pequena para os sacrifícios
grandes! Não te quero responsabilizar pela minha saúde; mas, se o meu silêncio
de longos tempos suceder a esta carta, conjetura, meu amigo, que Henriqueta
caiu no leito, donde há de erguer-se, se não é graça que os mortos hão de
erguer-se um dia.
Queres apontamentos para um romance que
terá o mérito de ser português? Vou dar-tos.
Henriqueta nasceu em Lisboa. Os seus
pais tinham o lustre dos brasões, mas não brilhavam nada pelo ouro. Viviam sem
fausto, sem história contemporânea, sem bailes e sem bilhetes de boas-festas.
As visitas que Henriqueta conhecia eram, no sexo feminino, quatro velhas suas
tias, e, no masculino, quatro caseiros que vinham anualmente pagar as rendas,
com que o seu pai regulava economicamente uma nobre independência.
O irmão de Henriqueta era um jovem de
talento, que granjeara uma instrução, enriquecida sempre pelos desvelos com que
afagava a sua paixão única. Isolado de todo o mundo, o irmão de Henriqueta
confiou a sua irmã os segredos do seu muito saber, e formou-lhe um espírito
varonil, e inspirou-lhe uma ambição faminta de ciência.
Bem sabes, Carlos, que falo de mim, e
não posso, nesta parte, engrinaldar-me de flores imodestas, se bem que não me
faltariam depois espinhos que me desculpassem as vaidosas flores...
Eu cheguei a ser o eco fiel dos
talentos do meu irmão. Os nossos pais não compreendiam as práticas literárias
com que aligeirávamos as noites de Inverno; e, mesmo assim, folgavam de nos
ouvir, e via-se-lhes nos olhos aquele rir de bondoso orgulho, que tanto inflama
as vaidades da inteligência.
Aos dezoito anos achei pequeno o
horizonte da minha vida, e enfastiei-me da leitura, que mo fazia cada vez
amesquinhar-se mais. Só com a experiência se conhece o quanto a literatura
modifica a organização de uma mulher. Eu creio que a mulher, apurada na ciência
das coisas pensa de um modo extraordinário na ciência das pessoas. O prisma das
suas vistas penetrantes é belo, mas as lindas cambiantes do seu prisma são como
as cores variegadas do arco-íris, que anuncia tempestade.
Meu irmão lia-me os segredos do
coração! Não é fácil mentir ao talento com as hipocrisias do talento.
Compreendeu-me, teve dó de mim.
Meu pai morreu, e a minha mãe pediu à
alma do meu pai que lhe alcançasse do Senhor uma vida longa para meu amparo.
Ouviu-a Deus, porque eu vi um milagre na rápida convalescença com que a minha
mãe saiu de uma enfermidade de quatro anos.
Eu vi um dia um homem no quarto do meu
irmão, onde entrei como entrava sempre sem receio de encontrar um desconhecido.
Quis retirar-me, e o meu irmão chamou-me para me apresentar, pela primeira vez
na sua vida, um homem.
Este homem chama-se Vasco de Seabra.
Não sei se por orgulho, se por acaso, o
meu irmão chamou a conversa ao campo da literatura. Falava-se em romances, em
dramas, em estilos, em escolas, e não sei que outros assuntos ligeiros e
graciosos que me cativaram o coração e a cabeça.
Vasco falava bem, e revelava coisas que
me não eram novas com estilo novo. Naquele homem, via-se o gênero aformoseado
pela arte que só na sociedade se adquire. No meu irmão faltava-lhe o relevo de
estilo, que se lapida ao trato dos maus e dos bons. Bem sabes Carlos, que te
digo uma verdade, sem pretensões de bas-bleu, que é de todas as misérias a mais
lastimosa miséria das mulheres cultivadas.
Vasco retirou-se, e eu quisera antes
que ele se não retirasse.
Disse-me o meu irmão que aquele rapaz
era uma inteligência superior, mas depravada pelos maus costumes. A razão
porque ele viera a nossa casa era muito simples; encarregara-o o seu pai de
falar com o meu irmão a respeito da remissão de uns foros.
Vasco passou nesse dia por debaixo das
minhas janelas: fixou-me, cortejou-me, corei, e não me atrevi a segui-lo com os
olhos, mas segui-o com o coração. Que suprema miséria, Carlos! Que renúncia tão
impensada faz uma mulher da sua tranquilidade.
Voltou um quarto de hora depois:
retirei-me, sem querer mostrar-lhe que o percebia; fiz-me distraída, por entre
as cortinas, a contemplar a marcha das nuvens, e das nuvens descia um olhar
precipitado sobre aquele indiferente
que me fazia corar e sofrer. Viu-me, adivinhou-me, talvez, e cortejou-me ainda.
Eu vi o gesto da cortesia, mas fingi-me e não lhe correspondi. Foi isto um
heroísmo, não é verdade? Seria; mas eu tive remorsos, apenas ele desaparecera,
do tratar tão grosseiramente.
Demorei-me nestas puerilidades, meu
amigo, porque não há nada mais grato para nós que a recordação dos últimos
instantes de ventura a que se prendem os primeiros instantes da desgraça.
Aquelas linhas fastidiosas são a
história da minha transfiguração. Aí começa a longa noite da minha vida.
Nos dias imediatos, a horas certas, vi
sempre este homem. Concebi os perigos da minha fraqueza, e quis ser forte.
Resolvi não vê-lo mais: revesti-me de um orgulho digno da minha imodesta
superioridade às outras mulheres: sustentei este caráter dois dias; e, ao
terceiro, era fraca como todas as outras.
Eu já não podia divorciar-me da imagem
daquele homem, daquelas núpcias infelizes que o meu coração contraíra. O meu
instinto não era mau; porque a educação tinha sido boa; e, não obstante a
humildade constante com que sempre sujeitei a minha mãe os meus inocentíssimos
desejos, senti-me então, com mágoa minha, rebelde, e capaz de conspirar contra
a minha família.
A frequente repetição dos passeios de
Vasco não podia ser indiferente ao meu irmão. Fui suavemente interrogada por a
minha mãe a tal respeito, respondi-lhe com respeito, mas sem temor. O meu irmão
pressentiu a necessidade de matar aquela inclinação nascente, e expôs-me um quadro
feio dos costumes péssimos de Vasco, e o conceito público em que era tido o
primeiro homem a quem eu tão francamente me oferecia em namoro. Fui altiva com
o meu irmão, e adverti-lhe que os nossos corações não tinham contraído a
obrigação de se consultarem.
Meu irmão sofreu; eu também sofri; e,
passado o momento da exaltação, quis cerrar a ferida que abrira naquele
coração, desde a infância identificado com as minhas vontades.
Este sentimento era nobre; mas o do
amor não era inferior. Se eu pudesse reconciliá-los ambos! Não podia, nem sabia
fazê-lo! Uma mulher, quando começa a sua dolorosa tarefa do amor, não sabe
mentir com aparências, nem calcula os prejuízos que pode evitar com um pouco de
impostura. Eu fui assim. Deixe-me ir abandonada à correnteza da minha
inclinação; e, quando forcejei por me tornar tranquila, à isenção da minha
alma, não pude vencer a corrente.
Vasco de Seabra perseguia-me: as cartas
eram incessantes, e a grande paixão que elas exprimiam não era ainda igual à
paixão que me faziam.
Meu irmão quis tirar-me de Lisboa, e a
minha mãe instava pela saída, ou pela minha entrada a toda a pressa nas
Salésias. Informei Vasco das intenções da minha família.
No mesmo dia, este homem, que me
pareceu um cavalheiro digno de outra sociedade, entrou na minha casa, pediu-me
urbanamente a minha mãe, e foi urbanamente repelido. Eu soube-o, e torturei-me!
Não sei do que seria então capaz a minha alma ofendida! Sei que foi capaz de
tudo que pode caber em forças de uma mulher, contrariada nas ambições que
nutrira, sozinha consigo, e conjurada a perder-se por elas.
Vasco, irritado num nobre estímulo,
escreveu-me, como quem me pedia a mim a satisfação dos desprezos da minha
família. Respondi-lhe que lha dava plena, como ele a exigisse. Disse-me que
fugisse de casa, pela porta da desonra, e muito cedo entraria nela com a minha
honra ilibada. Que desgraça! Naquele tempo até as pompas de estilo me seduziam!
Respondi que sim, e cumpri.
Meu amigo Carlos. Vai longa a carta, e
a paciência é curta. Até ao correio que vem.
Henriqueta.
***
Carlos relera, com sôfrega ansiedade, a
singela expansão de uma alma que, talvez, nunca se abrira, se a não rasgasse o
espinho de um martírio surdo. Henriqueta não escrevia assim uma carta a um
homem, que pudesse consolá-la. Afeita a gemer no silêncio, e na solidão,
tornava-se como egoísta das suas dores, e supunha que divulgá-las era esfolhar
a mais bela flor da sua coroa de mártir. Escreveu, porque a sua carta era um
mito de segredo e publicidade; porque a sua aflição não rastejava pelos
queixumes lamuriantes e triviais de um grande número de mulheres, que não
choram nunca a viuvez do coração, e lastimam sempre a demora das segundas
núpcias; escreveu enfim, porque a sua dor, sem desonrar-se com uma publicidade
estéril, interessava um coração, esposava uma simpatia, um sofrimento
simultâneo, e, quem sabe mesmo, se uma nobre admiração! Há mulheres vaidosas —
deixem-me assim dizer — da fidalguia do seu sofrer. Risonhas para o mundo, é
muito sublime aquela angústia represada que só pode extravasar os sobejos do
seu fel num a carta anônima. Lagrimosas para si, e fechadas no círculo estreito
que a sociedade lhes traça como o compasso inexorável das conveniências, essas
sim, são duas vezes anjos despenhados!
Quem pudesse receber na taça das suas
lágrimas algumas que aí se choram, e que a opulência material não enxuga,
experimentaria consolações de um sabor novo. O padecimento que se esconde impõe
o respeito religioso do augusto mistério desta religião universal, simbolizada
pelo sofrimento comum. O homem que pudesse verter uma gota de orvalho na aridez
de algum coração, seria o sacerdote providencial no tabernáculo de um espírito
superior, que velasse a vida da terra para que tamanhas agonias não fossem
estéreis na vida do céu. Não há na terra mais gloriosa missão.
Carlos, portanto, sentiu-se feliz deste
orgulho santo que enobrece a consciência do homem que recebe o privilégio de
uma confidência. Esta mulher, dizia ele, é para mim um ente quase fantástico.
Alívios quais são os que eu posso dar-lhe?. Nem ao menos escrever-lhe! E ela.
Em que fará consistir o seu prazer?! Deus o sabe! Quem pode explicar, e mesmo
explicar-se a singularidade de um proceder, às vezes, inconcebível?
No correio próximo, recebeu Carlos a
segunda carta de Henriqueta:
Que imaginaste, Carlos, depois da
leitura da minha carta? Adivinhaste o resto, com presteza natural. Recordaste
mil aventuras deste gênero, e amoldaste a minha história às legítimas
consequências de todas as aventuras. Julgaste-me abandonada pelo homem com quem
fugira, e chamaste a isto, talvez, uma dedução contida nos princípios.
Pensaste bem, amigo, a lógica da
desgraça é essa, e o contrário dos teus juízos é o que se chama sofisma, porque
eu estou em pensar que a virtude é o absurdo da lógica dos fatos, é a heresia
da religião das sociedades, é a aberração monstruosa das leis, que regem o
destino do mundo. Achas-me metafísica demais? Não te impacientes. A dor
refugia-se nas abstrações, e encontra melhor pábulo na Loucura de Erasmo, que
nas sisudas deduções de Montesquieu.
Minha mãe estava reservada para uma
grande provação! Amparou-a Deus naquele golpe, e permitiu-lhe uma energia que
não era de esperar. Vasco de Seabra bateu às portas de todas as igrejas de
Lisboa, para me apresentar, como sua mulher, ao cura da freguesia, e achou-as
fechadas. Éramos perseguidos, e Vasco não contava com a sua superioridade sobre
o meu irmão, que lhe fizera certa e infalível a morte, onde quer que a fortuna
lho deparasse.
Fugimos de Lisboa para Espanha. Um dia entrou
Vasco, alvoroçado, pálido e febril daquela febre de medo, que, realmente, era,
até então, a única face prosaica do meu amante. Emalamos a toda a pressa, e
partimos para Londres. É que Vasco de Seabra vira o meu irmão em Madrid.
Vivemos num bairro retirado de Londres.
Vasco tranquilizou-se, porque lhe afiançaram de Lisboa a volta do meu irmão,
que perdera as esperanças de encontrar-me.
Se me perguntas como era a vida íntima
destes dois fugitivos, aos quais não faltava condição alguma das aventuras românticas
de um rapto, dir-ta-ei em poucas linhas.
O primeiro mês das nossas núpcias de
emboscada foi um sonho, uma febre, uma anarquia de sensações que, levadas ao
extremo do gozo, pareciam tocar as raias do sofrimento. Vasco parecia-me um
Deus, com as sedutoras fraquezas de um homem; queimava-me com o seu fogo,
divinizava-me com o seu espírito; levava-me de mundo em mundo à região dos
anjos onde a vida deve ser o êxtase, o arroubamento, a alienação com que a
minha alma se derramava nas sensações ardentíssimas daquele homem.
No segundo mês, Vasco de Seabra
disse-me pela primeira vez “que era muito meu amigo”. O coração pulsava-lhe
vagaroso, os olhos não faiscavam eletricidade, os sorrisos eram frios... Os
meus beijos já os não aqueciam naqueles lábios! Sinto por ti uma sincera
estima. Quanto isto se diz, depois de um amor vertiginoso, que não sabe as
frases triviais, a paixão está morta. E estava...
Depois, Carlos, falávamos em
literatura, analisávamos as óperas, discutíamos os méritos dos romances, e vivíamos
em academia permanente, quando Vasco me não deixava quatro, cinco e seis horas
entregue às minhas inocentes recreações científicas.
Vasco cansara-se de mim. A consciência
afirmou-me esta verdade atroz. Sufoquei a indignação, as lágrimas e os gemidos.
Sofri sem limites. Abrasou-se-me na alma um inferno que me coava fogo nas
veias. Não houve nunca mulher assim desgraçada!
E vivemos assim dezoito meses. A
palavra “casamento” foi banida das nossas curtas conversações... Vasco
desquitava-se de compromissos, que ele chamava parvos. Eu mesma, de bom grado,
o remia de ser o meu escravo, como ele intitulava o néscio que se deixava
algemar às obscuras superstições do sétimo sacramento... Foi aí que Vasco de
Seabra encontrou a Sofia que te apresentei no Real Teatro de São João, na
primeira ordem.
Comecei então a pensar na minha mãe, no
meu irmão, na minha honra, na minha infância, na memória deslustrada do meu
pai, na tranquilidade da minha vida até ao momento em que me atirei à lama e
salpiquei com ela a face da minha família.
Peguei na pena para escrever a minha
mãe. Escrevera a primeira palavra, quando compreendi o vexame, a degradação e a
vilania com que ousava apresentar-me àquela virtuosa senhora, com a face
manchada de nódoas, contagiosas. Repeli com nobreza esta tentação, e desejei,
naquele instante, que a minha mãe me julgasse morta.
Em Londres vivíamos numa hospedaria,
depois que Vasco perdeu o medo ao meu irmão. Viera aí hospedar-se uma família
portuguesa. Era o visconde do Prado, e a sua mulher, e uma filha. O visconde
relacionou-se com Vasco, e a Viscondessa e a sua filha visitaram-me,
tratando-me como irmã de Vasco.
Agora, Carlos, esquece-te de mim, e
satisfaz a tua curiosidade na história desta gente, que já conheceste no
camarote da segunda ordem.
Mas não posso agora dispor de mim...
Saberás, alguma vez, a razão porque não pude continuar esta carta. Adeus, até
outro dia.
Henriqueta.
***
Cumpro religiosamente as minhas
promessas. Tu não avalias o sacrifício que faço. Não importa. Como não quero
cativar a tua gratidão, nem, mesmo ainda, mover a tua piedade, basta-me a
consciência do que sou para ti, que é (medita bem) o mais que posso ser...
A história... não é assim? Começa
agora.
Antônio Alves era um pobre amanuense do
escritório de um tabelião de Lisboa. O tabelião morreu, e Antônio Alves,
privado dos escassos lucros de amanuense, lutou com a fome. A mulher por um
lado com a filhinha ao colo, e ele pelo outro com as lágrimas da indigência,
conseguiram algumas moedas, e com elas a passagem do pobre marido para o Rio de
Janeiro.
Foi, e deixou entregues à Providência a
mulher e a filha.
Josefa esperava todos os dias carta do
seu marido. Nem carta, nem um indício da sua existência. Julgou-se viúva,
vestiu-se de preto e viveu de esmolas, pedidas à noite na Praça do Rossio.
A filha chamava-se Laura, e crescera
bela, não obstante as angústias da fome, que transformam a formosura do berço.
Aos quinze anos de Laura, já a sua mãe
não mendigava. A desonra proporcionara-lhe abundância que uma honrosa
mendicidade lhe não dera.
Laura era amante de um rico, que
cumpria fielmente com a mãe as condicionais estipuladas na escritura de venda
da filha.
Um ano depois, Laura explorava outra
mina. Josefa não sofria com as vicissitudes da filha, e continuava a gozar os
fins da vida à sombra de tão fecunda árvore.
A indigência e a sociedade fizeram-lhe
compreender que só há desonra na fome e na nudez.
Outro ano depois, a radiosa Laura
declarou-se o prêmio do cavaleiro que mais airoso entrasse no torneio.
Concorreram muitos gladiadores, e
parece que todos foram premiados, porque todos esgrimiam galhardamente.
Desgraça foi para Laura, quando os
melhores campeões se retiraram fatigados da liça. Os que vieram depois eram
bisonhos no jogo das armas, e viram que a dama das justas já não valia a pena
de perigosos botes de lança e de arreios muito custosos de pedraria e ouro.
Pobre Laura, apeada do seu pedestal,
olhou-se a um espelho, viu-se ainda bela com vinte e cinco anos, e perguntou à
sua consciência a baixa do preço com que corria no leilão de mulheres. A
consciência respondeu-lhe que descesse da altura das suas ambições, que viesse
para onde a chamava a lógica da sua vida, e continuaria a ser rainha num reino
de segunda ordem, já que a exautoravam de um trono que tivera na primeira.
Laura desceu, e encontrou uma sociedade
nova. Aclamaram-na soberana, reuniu-se uma corte tumultuosa na antecâmara desta
odalisca fácil, e não houve grande nem pequeno a quem se baixassem os
reposteiros do trono.
Laura viu-se um dia abandonada. Viera
uma outra disputar-lhe a sua legitimidade. Os cortesãos voltaram-se para o sol
nascente, e apedrejaram, como os Incas, o astro que se escondia para iluminar
os antípodas de um outro mundo.
Os antípodas de um outro mundo eram uma
sociedade inculta, sem a inteligência da arte, sem o culto à formosura, sem as
opulências que o ouro cria nas altas regiões da civilização, e, finalmente, sem
algum dos atributos que Laura amara tanto nos mundos onde fora soberana duas
vezes.
A infeliz tinha descido ao derradeiro
grau de aviltamento; mas era bela ainda a sua mãe, enferma num hospital, pedia
a Deus, como esmola, a sua morte. A desgraçada foi punida.
No hospital, viu passar sua filha
diante do seu leito; pediu que a deitassem ao pé de si; o enfermeiro riu-se, e
entrou com ela noutra enfermaria, onde o anjo do pudor e das lágrimas cobriam o
rosto na presença da úlcera mais esquálida e mas lastimosa do gênero humano.
Laura começava a sondar a profundidade
do abismo em que caíra.
Sua mãe recordava as fomes de outro
tempo, quando sua filha, virgem ainda, chorava e suplicava, com ela, uma esmola
ao passageiro.
As privações de então eram semelhantes
às privações de agora, com a diferença, porém, que a Laura de hoje, desonrada e
repelida, não podia já prometer o futuro da Laura de então.
Agora, Carlos, vejamos o que é o mundo,
e pasmemos diante das evoluções ginásticas dos acontecimentos.
Aparece em Lisboa um capitalista, que
chama a atenção dos capitalistas, a consideração do Governo, e, por via de
regra, desafia inimizades políticas e invejas, que procuram o seu princípio de
vida para denegrir-lhe o luzimento da sua afrontosa opulência.
Este homem compra uma quinta na
província do Minho, e, mais barato ainda, compra o título de visconde do Prado.
Um jornal de Lisboa, que traz entre os
dentes venenosos da política o pobre visconde, escreve um dia um artigo, onde
se acham, entre muitas, as seguintes alusões:
O Sr. Visconde do Prado adscreveu à
imoralidade do Governo a imoralidade da sua fortuna. Como ela foi adquirida,
di-lo-iam as costas de África se os sertões contassem os horrorosos dramas da
escravatura, em que o Sr. Visconde foi herói.
O Sr. Visconde do Prado era Antônio
Alves há 26 anos, e a pobre mulher que deixou em Portugal, com uma tenra
filhinha ao colo, ninguém dirá em que rua morreu de fome sobre as lajes, ou em
que água-furtada curtiam ambas as agonias da fome, enquanto o Sr. Visconde
medrava cinicamente na hidropisia do ouro, com que hoje vem arrotar moralidades
no teatro das suas infâmias de esposo e de pai.
Melhor fora que o Sr. Visconde
indagasse onde repousam os ossos da sua mulher e da sua filha, e nos pusesse aí
um padrão de mármore, que possa atestar ao menos o remorso de um infame
contrito...
Este insulto direto, e fundamentado, ao
visconde do Prado, fez ruído em Lisboa. As edições do jornal espalharam-se, e
leram-se e comentaram-se com frenética maldade.
Às mãos de Laura chegou este jornal, a
sua mãe, ouvindo lê-lo, delirou. A filha pensou que sonhava; e a situação de
ambas perderia muito se eu tentasse roubar-lhe as cores vigorosas da tua
imaginação.
No dia seguinte, Josefa e Laura
entravam no palacete do visconde do Prado. O porteiro respondeu que sua
excelência não estava ainda a pé. Esperaram. As 11 horas saía o visconde, e, ao
saltar para a carruagem, viu duas mulheres que se aproximavam. Meteu a mão ao
bolso do colete, e tirou doze vinténs que lançava na mão de uma das duas
mulheres. Olhou admirado para elas, quando viu que a esmola lhe era recusada.
— Que querem — interrompeu ele, com
soberba indignação.
— Quero ver o meu marido que não vejo
há 26 anos... — respondeu Josefa.
O visconde estacou ferido de um raio. O
suor gotejava-lhe na testa em bagas frias. Laura aproximou-se, em atitude de
beijar-lhe a mão...
— Pois quê?... — interpelou o visconde.
— Sou sua filha... — respondeu Laura
com humildoso respeito.
O visconde, aturdido e parvo, voltou as
costas à carruagem, e mandou às duas mulheres que o seguissem.
O resto no correio seguinte. Adeus,
Carlos.
Henriqueta.
***
Carlos, tenho quase tocado a extrema
desta minha peregrinação. A minha Ilíada está no último canto. Quero dizer-te
que é esta a minha penúltima carta.
Não sou tão independente como pensava.
A não serem os poetas, ninguém gosta de contar as suas mágoas ao vento. É belo
dizer-se que um gemido nas asas da brisa vai da terra em dorido suspirar até ao
coro dos anjos. É bonito conversar com a fonte suspirosa, e contar à avezinha
gemedora os segredos do nosso pensar. Tudo isto é delicioso de uma puerilidade
inofensiva; mas eu, Carlos, não tenho alma para estas coisas, nem engenho para
estes artifícios.
Vou contando as minhas penas a um homem
que não pode zombar das minhas lágrimas, sem trair a generosidade do seu
coração, e a sensibilidade do talento. Sabes qual é o meu egoísmo, o meu
estipêndio neste trabalho, nesta franqueza de alma, que ninguém te pode
disputar como único em merecê-la? Eu te digo. Quero uma carta tua, dirigida a
Angélica Micaela. Diz-me o que a tua alma te disse; não tenhas pejo em
denunciá-la; associa-te um momento à minha dor, e diz-me o que farias se
tivesses sido Henriqueta.
Aqui tens o prólogo desta carta; agora
vamos espreitar o lance extraordinário daquele encontro, em que deixamos o
visconde e a... Como hei de chamar-lhe?... A Viscondessa, e a sua
excelentíssima filha D. Laura.
— Pois é possível existires? —
perguntava o visconde, sinceramente admirado, a sua mulher.
— Pois não me conheces, Antônio? —
respondia ela com estúpida naturalidade.
— Tinham-me dito que morreras... —
disse ele com desasada hipocrisia. — Tinham-me dito, há dezessete anos, que tu
e a nossa filha tínheis sido vítimas da cólera-morbo...
— Felizmente que lhe mentiram —
interrompeu Laura com afetada meiguice. — Não é que lhe tínhamos rezado por
alma, e nunca deixamos de pronunciar o seu nome em saudosas lágrimas.
— Como tendes vivido? — perguntou o
visconde.
— Pobre, mas honradamente — respondeu
Josefa, dando-se uns ares austeros, e pondo os olhos em branco, como quem
invoca o céu por testemunha.
— Ainda bem! — disse o visconde — mas
que modo de vida tem sido o vosso?
— O trabalho, meu querido Antônio, o
trabalho da nossa filha tem sido o amparo da sua honra e da minha velhice. Tu
abandonastes-nos com tamanha crueldade! Que mal te fizemo-nos?
— Nenhum, mas não vos disse eu que vos
considerava mortas? — respondeu o visconde a sua mulher, que tivera a
habilidade de arrancara duas volumosas lágrimas, tanto a propósito.
— O passado, passado — disse Laura,
afagando carinhosamente as mãos paternas, e dando-se uns ares de inocência
capazes de iludir São Simão Estilista. — Quer o pai saber (prosseguiu ela com
sentimento) qual tem sido a minha vida? Olhe, meu pai, não se envergonhe da
posição social em que encontra sua filha... Tenho sido modista, tenho
trabalhado incessantemente...
— Tenho lutado com as tentações da
penúria, e tenho feito consistir nas minhas lágrimas o meu triunfo...
— Bem, minha filha — interrompeu o
visconde com sincera contrição — esqueçamos o passado... De hora em diante será
a abundância o prêmio da tua virtude... Ora diz-me: o mundo sabe que tu és
minha filha?... Disseste a alguém que era teu marido, Josefa?
— Não, meu pai. — Não, meu
Antoninho. — responderam ambas, como se tivessem previsto e calculado as
perguntas e as respostas.
— Pois bem, — continuou o visconde —
vamos a conciliar com o mundo as nossas posições presentes, passadas e futuras.
De hora avante, Laura, és minha filha, és filha do visconde do Prado, e não
podes chamar-te Laura. Serás Elisa, compreendes-me? É necessário que te chames
Elisa...
— Sim, meu pai... Eu serei Elisa —
atalhou a inocente modista com
impetuosa alegria.
— É necessário abandonar Lisboa —
prosseguiu o visconde.
— Sim, sim, meu pai... Vivamos num
sertão... Quero gozar, sozinha, na presença de Deus a felicidade de ter pai...
— Não iremos para um sertão... Vamos
para Londres; mas... atendam-me... é preciso que ninguém as veja, nestes
primeiros anos, principalmente em Lisboa. A minha posição atual é muito
melindrosa. Tenho muitos inimigos, muitos invejosos, muitos infames, que
procuram perder-me no conceito que pude comprar com o meu dinheiro. Estou farto
de Lisboa; partiremos nos primeiro paquete... Josefa, repara em ti, e vê que és
Viscondessa do Prado. Elisa, a tua educação foi desgraçadamente mesquinha para
te poderes mostrar qual eu quero que sejas na alta sociedade. Voltaremos um
dia, e terás então suprido com a educação prática a rudeza que
indispensavelmente tens.
Não progrido, neste diálogo, Carlos. O
programa do visconde foi rigorosamente cumprido.
Aqui tens os precedentes que prepararam
o meu encontro, em Londres, com esta família. Vasco de Seabra, quando viu, pela
primeira vez, a filha do visconde atravessar um corredor do hotel, fixou-a com
pasmo, e veio dizer-me que acabava de ver, elegantemente trajada, uma mulher
que conhecera em Lisboa, chamada Laura.
Acrescentou várias circunstâncias da
vida desta mulher, e acabou por mostrar vivos desejos de saber o tolo opulento
a quem tal mulher estava associada.
Vasco pediu a lista dos hóspedes, e viu
que os únicos portugueses eram Vasco de Seabra e a sua irmã, e o visconde do Prado, a sua mulher, e a sua filha D.
Elisa Pimentel.
Redobrou o seu pasmo, e chegou a
convencer-se de uma ilusão.
No seguinte dia, o visconde
encontrou-se com Vasco, e alegrou-se de ter encontrado um patrício, que lhe
explicasse aqueles gritos bárbaros dos serventes do hotel, que lhe davam água
por vinho. Vasco não duvidou em ser intérprete do visconde, contanto que as
suas luzes em língua inglesa pudessem chegar ao esconderijo donde nunca mas
vira sair a suposta Laura.
Correram as coisas à medida do seu
desejo. Na noite desse dia, fomos convidados para tomar chá, na saleta do
visconde. Eu hesitei, sem saber ainda se Laura seria familiar do visconde.
Vasco, porém, despreveniu-me deste temor, afiançando-me que se tinha iludido
com a semelhança das duas mulheres.
Fui. Elisa pareceu-me uma menina bem
educada. Nunca o artifício tirou maior partido das maneiras adquiridas em
hábitos libertinos. Elisa era uma mulher de corte, com os ademanes fascinadores
dos salões, onde a imoralidade do coração passeia de braço dado com a
ilustração do espírito. O som da palavra, a escolha da frase, a compostura
airosa da mímica, o tom sublime em que as suas ideias eram voluptuosamente
lançadas na torrente de uma conversação animada, tudo isto me fez crer que
Laura era a primeira mulher que eu tinha encontrado, talhada à feição do meu
espírito.
Quando agora pergunto à minha
consciência como estas transições se fazem, descreio da educação, lamento os
anos consumidos no cultivo da inteligência, e chego a persuadir-me que a escola
da devassidão é a antecâmara por onde mais fácil se entra no mundo da graça e
da civilização.
Perdoa-me o absurdo, Carlos; mas há
mistérios na vida que só pelo absurdo se explicam.
Henriqueta.
***
Li a tua carta, Carlos, com os olhos cheios de lágrimas, e o coração de reconhecimento. Não esperava tanto da tua sensibilidade. Fiz-te a injustiça de te julgar infeccionado deste marasmo de egoísmo que entorpece o espírito, e calcina o coração. E, demais, supunha-te insensível pelo fato de seres inteligente. Eis aqui um disparate, que eu não ousaria balbuciar na presença do mundo. O que vale é que as minhas cartas não serão lidas pelas mediocridades, que se acham em concílio permanente para condenar, em nome de não sei que tolas conveniências, as heresias do gênio.
Deixa-me dizer-te francamente o juízo
que eu formo do homem transcendente em gênio, em estro, em fogo, em
originalidade, finalmente em tudo isso que se inveja, que se ama, e que se
detesta, muitas vezes.
O homem de talento é sempre um mau
homem. Alguns conheço eu que o mundo proclama virtuosos e sábios. Deixá-los
proclamar. O talento não é sabedoria. Sabedoria é o trabalho incessante do
espírito sobra a ciência. O talento é a vibração convulsiva de espírito, a
originalidade inventiva e rebelde à autoridade, a viagem extática pelas regiões
incógnitas da ideia. Agostinho, Fénelon, Madame de Stael e Bentham são
sabedorias. Lutero, Ninon de Lenclos, Voltaire e Byron são talentos. Compara as
vicissitudes dessas duas mulheres e os serviços prestados à humanidade por
esses homens, e terás encontrado o antagonismo social em que lutem o talento
com a sabedoria.
Por que é mau o homem de talento? Essa
bela flor porque tem no seio um espinho envenenado? Essa esplêndida taça de
brilhantes e ouro porque é que contém o fel, que abrasa os lábios de quem a
toca?
Aqui tens um tema para trabalhos
superiores à cabeça de uma mulher, ainda mesmo reforçada por duas dúzias de
cabeças acadêmicas!
Lembra-me ouvir dizer a um doido que
sofria por ter talento. Pedi-lhe as circunstâncias do seu martírio sublime, e
respondeu-me o seguinte com a mais profunda convicção, e a mais tocante
solenidade filosófica: os talentos são raros, e os estúpidos são muitos. Os
estúpidos guerreiam barbaramente o talento: são os vândalos do mundo
espiritual. O talento não tem partido nesta peleja desigual. Foge, dispara na
retirada um tiroteio de sarcasmos pungentes, e, por fim, isola-se, segrega-se
do contato do mundo, e curte em silêncio aquele fel de vingança, que, mais cedo
ou mais tarde, cospe na cara de algum inimigo, que encontra desviado do corpo
do exército.
Ai tem, — acrescentou ele — a razão
porque o homem de talento é perigoso na sociedade. O ódio inspira-lhe e
eloquência da tração. A mulher que lhe ouve o astucioso hino das suas
apaixonadas lamúrias, acredita-o, abandona-se, perde-se, e retira-se, por fim,
gritando contra o seu algoz, e pedindo à sociedade que grite com ela.
Agora, diz-me tu, Carlos, até que ponto
devemos acreditar este doido. Eu por mim não me satisfaço com o seu sistema,
todavia sinto-me propensa a aperfeiçoar o prisma do doido, até encontrar as
cores inalteráveis do juízo.
Seja o que for, eu creio que és uma
exceção e não sofra com isto a tua modéstia. A tua carta fez-me chorar, e
acredito que sofrias, escrevendo-a. Hás de continuar a visitar-me
espiritualmente na minha Tebaida, sem cilícios, sim?
Agora conclua-se a história, que leva
seus visos de folhetim filosófico, moral, social, e não sei que mais por aí se
diz, que não vale nada.
Contraí amizade com a filha do visconde
do Prado. Não era ela, porém, tão íntima que me levasse a declarar-lhe que
Vasco de Seabra não era meu irmão. Por ele me fora imposto, como preceito, o
segredo das nossas relações. Bem longe estava eu de compreender este zelo de
virtuosa honestidade, quando a mão de um demônio me tirou a venda dos olhos.
Vasco amava Laura!! Eu pus dois pontos
de admiração, mas acredita que foi uma urgência retórica, uma composição
artística, que me obrigou a admirar-me, escrevendo, de coisas que me não
admiram, pensando.
Que é o que levou tão depressa este
homem a aborrecer-me, pobre mulher, que desprezei o mundo, e me desprezei a mim
própria para satisfazer-lhe o capricho de alguns meses? Foi uma miséria que
ainda hoje me envergonha, suposto que esta vergonha devesse ser um reflexo das
faces dele... Vasco amava a filha do visconde do Prado, a Laura de alguns meses antes, porque a Elisa de hoje era a herdeira
de não sei quantos centos de contos de réis.
Devo envergonhar-me de ter amado este
homem, não é verdade, Carlos? Não devo sofrer um instante a perda de um
miserável, que eu vejo daqui com uma grilheta de ouro algemada a uma perna,
tapando em vão os ouvidos para não ouvir-lhe o ruído... a sentença do forçado
que o segue até ao fim de uma existência farta de opróbrio, e célebre de
infâmias!
E não sofro, Carlos! Tenho aqui no seio
uma úlcera que não tem cura... Choro, porque é intensa a dor que ela me
causa... Mas, olha, não tenho lágrimas que não sejam remorsos... Não tenho
remorsos que não sejam picados pela afronta que fiz à minha mãe, e ao meu
irmão... Não me dói o meu próprio aviltamento, não! Se na minha alma cabe algum
entusiasmo, algum desejo, é o entusiasmo da penitência, é o desejo de
torturar-me...
Fugi tanto da história, meu Deus!
Desculpa estes desvios, meu paciente amigo! Eu queria correr muito sobre o que
falta, e hei de consegui-lo, porque não posso parar, e temo de me converter em
estátua, como a mulher de Ló, quando olho com atenção para o meu passado...
O visconde do Prado convidou Vasco de
Seabra a ser seu genro. Vasco não sei como recebeu o convite; o que eu sei é
que os vínculos destas relações estreitaram-se muito, e Elisa, desde esse dia,
expandiu-se comigo em intimidades do seu passado, todas mentirosas. Estas
intimidades eram o prólogo de outra que tu avaliarás. Foi ela a própria que me
disse que esperava ainda poder chamar-me irmã! Isto é uma atrocidade sublime,
Carlos! Diante dessa dor calam-se todas as agonias possíveis! O insulto não
podia ser mais despedaçador! O punhal não podia entrar mais dentro no virtuoso
coração da pobre amante de Vasco de Seabra! Agora, sim, que eu quero a tua
admiração, meu amigo! Tenho direito à tua compaixão, se não podes estremecer de
entusiasmo diante do heroísmo de uma mártir! Ouvi este anúncio dilacerante!...
Senti fugir-me o entendimento... Aquela mulher sufocou-me a voz na garganta...
Horrorizei-me não sei se dela, se dele, se de mim... Nem uma lágrima!...
Acreditei-me doida... Senti-me estúpida daquele idiotismo pungente que faz
chorar os estranhos, que nos veem nos lábios um sorriso de imbecilidade.
Elisa parece que recuou aterrada da
expressão da minha fisionomia... Fez-me não sei que perguntas... Não me lembro
mesmo se aquela mulher permaneceu diante de mim... Basta!... Não posso
prolongar esta situação...
Na tarde desse mesmo dia, chamei uma
criada da hospedaria. Pedi-lhe que me vendesse algumas joias de pouco valor que
eu possuía; eram minhas; minhas não... Eram um roubo que eu fiz a minha mãe.
Na manhã do dia seguinte, quando Vasco,
depois do almoço, visitava o visconde do Prado, escrevi estas linhas:
Vasco de Seabra não pode gloriar-se de
ter desonrado Henriqueta de Lencastre. Esta mulher sentia-se digna de uma coroa
de virgem, virgem do coração, virgem na sua honra, quando abandonava um vilão,
que não pôde infetar da sua infâmia o coração da mulher que arrastou ao abismo
da sua lama, sem lhe salpicar a cara. Foi a Providência que a salvou!
Deixei este escrito sobre as luvas de
Vasco, e fui à estação dos caminhos de ferro.
Dois dias depois entrava um paquete.
Ao ver a minha pátria, cobri o rosto
com as mãos, e chorei... Era a vergonha e o remorso. Diante do Porto senti uma
inspiração do céu. Saltei numa catraia, e pouco depois achava-me nesta terra,
sem um conhecimento, sem o apoio e sem subsistência para muitos dias.
Entrei em casa de uma modista, e pedi
obra. Não ma negou. Aluguei uma água-furtada, onde trabalho há quatro anos;
onde, há quatro anos, comprimo bem aos rins, segundo a linguagem antiga, os
cilícios do meu remorso.
A minha mãe e o meu irmão vivem.
Julgam-me morta, e eu peço a Deus que não haja um indício da minha vida. Sê-me
tu fiel, meu generoso amigo, não me denuncies, pela tua honra e pela sorte da
tuas irmãs.
Tu sabes o resto. Ouviste, no teatro,
Elisa. Foi ela a que me disse que o seu marido a abandonara, chamando-lhe Laura. Aquela está punida...
Sofia... (lembras-te de Sofia?) Essa é
uma pequena aventura, que aproveitei para tornar menos insípidas aquelas horas
em que me acompanhaste... Foi uma rival que não honra ninguém... Uma Laura com os respeitos públicos, e as
considerações que se barateiam a corpos ulcerosos, contando que se vistam de
veludos matizados. Ainda eu era feliz, quando o infame amante dessa mulher me
dava aquele anel, que viste, como oblação de sacrifício que me fazia de um
rival.
Escreve-me.
Hás de ouvir-me no próximo Carnaval.
Por último, Carlos, deixa-me fazer-ta
uma pergunta: Não me achas mais defeituosa que o nariz daquela andaluza da
história que te contei?
Henriqueta.
***
É natural a exaltação de Carlos, depois
de erguido o véu, em que se escondiam os mistérios de Henriqueta. Alma
apaixonada pela poesia do belo e pela poesia da desgraça, Carlos não teve nunca
impressão na vida que mais lhe incendiasse uma paixão.
As cartas a Ângela Micaela eram o
desafogo do seu amor sem esperança. Os mais ferventes êxtases da sua alma de
poeta, imprimiu-os naquelas cartas escritas debaixo de uma impressão que lhe
roubava a tranquilidade do sono, e o refúgio de outros afetos.
Henriqueta respondera concisamente às
explosões de um delírio que nem sequer a fazia tremer pelo seu futuro.
Henriqueta não podia amar. Arrancaram-lhe pela raiz a flor do coração.
Esterilizaram-lhe a árvore dos belos frutos, e envenenaram-lhe de sarcasmo e
ironia os instintos do carinho brando, que acompanham a mulher até a sepultura.
Carlos não podia suportar uma repulsa
nobre. Persuadira-se que havia um escalão moral para todas. Confiava no seu
ascendente em não sei que mulheres, entre as quais lhe não fora penoso nunca
fixar o dia do seu triunfo.
Homens assim, quando encontram um
estorvo, apaixonam-se seriamente. O amor-próprio, angustiado nos apertos de uma
impossibilidade invencível, adquire uma nova feição, e converte-se em paixão,
como as paixões primeiras, que nos sopram a tempestade no límpido lago da
adolescência.
Carlos, em último recurso, precisava
saber onde morava Henriqueta. No lance extremo de um desafogo, iria ele,
audacioso, humilhar-se aos pés daquela mulher, que a não poder amá-lo, choraria
com ele ao menos.
Estas preciosas futilidades
escaldavam-lhe a imaginação, quando lhe ocorreu a astuciosa lembrança de
surpreender a morada de Henriqueta surpreendendo a pessoa que no correio lhe
tirava as cartas, subscritas a Ângela Micaela.
Conseguiu o comprometimento de um
empregado do correio, Carlos empregou nesta missão um vigia insuspeito.
No dia do correio, uma velha, mal
trajada, pediu a carta n° 628. O que a entregou fez um sinal a um homem que
passeava no corredor, e este homem seguiu de longe a velha até ao campo de
Santo Ovídio. Feliz das vantagens que lucrara em tal comissão, correu a
encontrar-se com Carlos. É ocioso descrever a precipitação com que o enamorado
mancebo, espiritualizado por algumas libras, correu à indicada casa. Em honra
de Carlos, é necessário dizer que aquelas libras representavam a eloquência com
que ele tentaria mover a velha no seu favor, por isso que, à vista das
informações que tivera da pobreza da casa, concluiu que não era ali a
residência de Henriqueta.
Acertou.
A confidente de Henriqueta fechava a
porta da sua baiuca, quando Carlos se aproximou, e muito urbanamente lhe pediu
licença para dizer-lhe duas palavras.
A velha, que não podia recear alguma
agressão traiçoeira aos seus virtuosos oitenta anos, franqueou os umbrais da
sua pocilga, e prestou ao seu hóspede a cadeira única do seu camarim de teto de
vigas e pavimento de lajes.
Carlos começou como devia o seu ataque.
Lembrado da chave com que Bernardes manda fechar os sonetos, aplicou-a à
abertura da prosa, e conheceu de pronto as vantagens de ser clássico, quando
convém. A velha, quando viu cair no regaço duas libras, sentiu o que nunca
sentira a mais carinhosa das mães, com dois filhinhos no colo. Luziram-lhe os
olhos, e dançaram-lhe os nervos em todas as evoluções dos seus vinte e cinco
anos.
Feito isto, Carlos precisou a sua
missão nos seguintes termos:
Esse pequeno donativo, que lhe faço, há
de ser repetido, se vossemecê me fizer um grande serviço, que pode fazer-me.
Vossemecê recebeu, há pouco, uma carta, e vai entregá-la a uma pessoa, cuja
felicidade está nas minhas mãos. Estou certo que vossemecê não há de querer
ocultar-me a morada dessa senhora, e privá-la de ser feliz. O serviço que tenho
a pedir-lhe, e a pagar-lhe bem, é este; pode fazer-mo?
A frágil mulher, que não se sentia
bastante heroína para ir de encontro à legenda que D. João V fez gravar nos
cruzados, deixou-se vencer, com mais algumas reflexões e denunciou o santo
asilo das lágrimas de Henriqueta, segunda vez atraiçoada por uma mulher, frágil
à tentação de ouro, que lhe roubara um amante, e vem agora devassar-lhe o seu
sagrado refúgio.
Poucas horas depois, Carlos entrava num
a casa da Rua dos Pelames, subia a um
terceiro andar, e batia a uma porta, que lhe não foi aberta. Esperou. Momentos
depois, subia um rapaz com uma caixa de chapéu de senhora: bateu; perguntaram
de dentro quem era, o rapaz falou, e a porta foi imediatamente aberta.
Henriqueta estava sem dominó na
presença de Carlos.
Foi sublime esta aparição. A mulher que
Carlos viu, não saberemos nós pintá-la. Era o original dessas esplêndidas
iluminuras que o pincel do século XVI fazia saltar da tela, e consagrava a
Deus, denominando-as Madalena, Maria Egipcíaca e Margarida de Cortona.
O homem é fraco, e sente-se mesquinho
perante a majestade da beleza! Carlos sentiu-se dobrar nos joelhos; e a
primeira palavra que balbuciou foi “Perdão”!
Henriqueta não pôde receber com a
firmeza que devia supor-se-lhe uma tal surpresa. Sentou-se e limpou o suor que
lhe correra de improviso todo o corpo.
A coragem de Carlos desmereceu do muito
em que ele a tinha. Sucumbiu, e nem ao menos lhe deixou o dom dos
lugares-comuns. Silenciosos, olhavam-se com uma simplicidade infantil, indigna
de ambos. Henriqueta revolvia no pensamento a indústria com que o seu segredo
fora violado. Carlos invocava ao coração palavras que o salvassem daquela
crise, que o materializava por ter tocado o extremo do espiritualismo.
Não nos faremos cargo de satisfazer as
despóticas exigências do leitor, que pede contas das interjeições e das
reticências de um diálogo.
O que podemos garantir-lhe, debaixo da
nossa palavra de folhetinista, é que a musa das lamentações desceu à invocação
de Carlos, que, por fim, desenvolveu toda a eloquência da paixão. Henriqueta
ouviu-o com a seriedade com que uma rainha absoluta escuta um ministro da
fazenda, que lhe conta os chatíssimos e maçudos negócios das finanças.
Sorria-se, às vezes, e respondia com um
ressaibo de mágoa e de ressentimento, que matava, no nascedouro, os transportes
do seu infeliz amante.
As suas últimas palavras, essas sim,
são signas de se arquivarem para escarmento daqueles que se julgam herdeiros
dos raios de Júpiter Olímpico, quando se empavonam de fulminar as mulheres que
tiveram a desventura de se queimarem, como as mariposas, no lume elétrico dos
seus olhos. Foram estas as suas palavras:
Sr. Carlos! Até hoje os nossos
espíritos viveram ligados por umas núpcias que eu pensei não perturbarem a
nossa cara tranquilidade, nem escandalizarem a caprichosa opinião pública. De
ora em diante, um solene divórcio entre os nossos espíritos. Estou punida
demais. Fui fraca e talvez má, em prender-lhe a sua atenção num baile
mascarado. Perdoe-me, que sou, por isso, mais desgraçada do que pensa. Seja meu
amigo. Não me envenene esta santa obscuridade, este círculo estreito da minha
vida, em que a mão de Deus tem derramado algumas flores. Se não pode avaliar o
travo das minhas lágrimas, respeite cavalheiramente uma mulher que lhe pede com
as mãos erguidas o favor, a piedade da deixar sozinha com o segredo da sua
desonra, que eu prometo nunca mais alargar a minha alma nestas revelações, que
morreriam comigo, se eu pudesse suspeitar que atraía com elas a minha
desgraça...
Henriqueta continuava, quando Carlos,
com lágrimas de uma dor sincera, lhe pedia ao menos a sua estima, e lhe
entregava as suas cartas, debaixo do sagrado juramento de nunca mais a
procurar.
Henriqueta, entusiasmada pelo patético
desta nobre rogativa, apertou ansiosamente a mão de Carlos, e despediram-se.
E nunca mais se viram.
Mas o leitor tem o direito a saber mais
alguma coisa.
Carlos, um mês depois, partiu para
Lisboa, colheu as necessárias informações, e entrou em casa da mãe de Henriqueta.
Uma senhora, vestida de luto, e encostada a duas criadas, veio encontrá-lo numa
sala.
— Não tenho a honra de conhecer... —
disse a mãe de Henriqueta.
— Sou um amigo...
— De meu filho?!... — interrompeu ela.
— Vem-me dar parte do triste acontecimento?... Eu já o sei!... O meu filho é um
assassino!...
E prorrompeu num choro, que a não
deixava articular palavras.
— O filho de vossa excelência
assassino!... — interpelou Carlos.
— Sim... Sim... Pois não sabe que ele
matou em Londres o sedutor da minha desgraçada filha?!... da minha filha...
assassinada por ele...
— Assassinada, sim, mas só na sua honra
— atalhou Carlos.
— Pois minha filha vive!... Henriqueta
vive!... Oh meu Deus, meu Deus, eu vos agradeço!...
A pobre senhora ajoelhou, as criadas ajoelharam
com ela, e Carlos sentiu um calafrio nervoso, e uma exaltação religiosa, que
quase o fizeram ajoelhar com aquele grupo de mulheres, cobertas de lágrimas.
Dias depois, Henriqueta era procurada
no seu terceiro andar, pelo seu irmão, e choravam ambos abraçados com toda a
expansão de uma dor represada.
Houve aí um drama de agonias
grandiosas, que a linguagem do homem não saberá descrever nunca.
Henriqueta abraçou a sua mãe, e entrou
num convento onde pede incessantemente a Deus a salvação de Vasco de Seabra.
Carlos é o íntimo amigo desta família,
e conta este lance da sua vida como um heroísmo digno de outras épocas.
Laura, viúva de quatro meses, contrai
segundas núpcias, e vive feliz com o seu segundo marido, digno dela.
Acabou o conto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...