Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Devia ser já a terceira pessoa
que lhe sentava à mesa.
Não lhe era agradável aquela
sociedade com desconhecidos; mas que fazer naquela segunda-feira de Carnaval,
quando as confeitarias têm todas as mesas ocupadas e as cerimônias dos outros
dias desfazem-se, dissolvem-se?
Se as duas primeiras pessoas eram
desajeitados sujeitos sem atrativos, o terceiro conviva resgatava todo o
desgosto causado pelos outros. Uma mulher formosa e bem tratada é sempre bom
ter-se à vista, embora sendo desconhecida, ou, talvez, por isso mesmo...
Estava ali o velho Maximiliano
esquecido, só moendo cismas, bebendo cerveja, obediente ao seu velho hábito. Se
fosse um dia comum, estaria cercado de amigos; mas, os homens populares, como
ele, nunca o são nas festas populares. São populares a seu jeito, para os
frequentadores das ruas célebres, cafés e confeitarias, nos dias comuns; mas
nunca para a multidão que desce dos arrabaldes, dos subúrbios, das províncias
vizinhas, abafa aqueles e como que os afugenta. Contudo não se sentia
deslocado...
A quinta garrafa já se esvaziara
e a sala continuava a encher-se e a esvaziar-se, a esvaziar-se e a encher-se.
Lá fora, o falsete dos mascarados em trote, as longas cantilenas dos cordões,
os risos e as músicas lascivas enchiam a rua de sons e ruídos desencontrados e,
dela, vinha à sala uma satisfação de viver, um frêmito de vida e de luxúria que
convidava o velho professor a ficar durante mais tempo bebendo, afastando o
momento de entrar em casa.
E esse frêmito de vida e luxúria
que faz estremecer a cidade nos três dias de sua festa clássica, naquele
momento, diminuía-lhe muito as grandes mágoas de sempre e, sobretudo, aquela
teimosia e pequenina de hoje. Ela o pusera assim macambúzio e isolado, embora
mergulhado no turbilhão de riso, de alegria, de rumor, de embriaguez e luxúria
dos outros, em segunda-feira gorda.
O "jacaré" não dera e
muito menos a centena. Esse capricho da sorte tirava-lhe a esperança de um
conto e pouco — doce esperança que se esvaía amargosamente naquele crepúsculo
de galhofa e prazer.
E que trabalho não tivera ele,
doutor Maximiliano, para fazê-la brotar no seu peito, logo nas primeiras horas
do dia! Que chusmas de interpretações, de palpites, de exames cabalísticos! Ele
bem parecia um áugure romano que vem dizer ao cônsul se deve ou não oferecer
batalha...
Logo que ela lhe assomou aos
olhos, como não lhe pareceu certo aquele navegar precavido dentro do nevoento
mar do Mistério, marcando rumo para aquele ponto — o "jacaré" — onde
encontraria sossego, abrigo, durante alguns dias!
E agora, passado o nevoeiro, onde
estava?... Estava ainda em mar alto, já sem provisões quase, e com débeis
energias para levar o barco a salvamento... Como havia de comprar bisnagas,
confetes, serpentinas, alugar automóvel? E — o que era mais grave — como havia
de pagar o vestido de que a filha andava precisada, para se mostrar sábado
próximo, na rua do Ouvidor, em toda a plenitude de sua beleza, feita (e ele não
sabia como) da rija camadura de Itália e de uma forte e exótica exalação
sexual... Como havia de dar-lhe o vestido?
Com aquele seu olhar calmo em que
não havia mais nem espanto, nem reprovação, nem esperança, o velho professor
olhou ainda a sala tão cheia, por aquelas horas, tão povoada e animada de
mocidade, de talento e de beleza. Ele viu alguns poetas conhecidos, quis
chamá-los, mas, pensando melhor, resolveu continuar só.
O velho doutor Maximiliano não
cansou de observar, um por um, aqueles homens e aquelas mulheres, homens e
mulheres cheios de vícios e aleijões morais; e ficou um instante a pensar se a
nossa vida total, geral, seria possível sem os vícios que a estimulavam, embora
a degradem também.
Por esse tempo, então, notou ele
a curiosidade e a inveja com que um grupo, de modestas meninas dos arrabaldes,
examinava a toilette e os ademanes
das mundanas presentes.
Na sua mesa, atraindo-lhes os
olhares, lá estava aquela formosa e famosa Eponina, a mais linda mulher pública
da cidade, produto combinado das imigrações italiana e espanhola,
extraordinariamente estúpida, mas com um olhar de abismo, cheio de atrações, de
promessas e de volúpia.
E o velho lente olhava tudo
aquilo pausadamente, com a sua indulgência de infeliz, quando lhe veio o pensar
na casa, naquele seu lar, onde o luxo era uma agrura, uma dor, amaciada pela
música, pelo canto, pelo riso e pelo álcool.
Pensou, então, em sua filha,
Clôdia — a Clô, em família — em cujo temperamento e feitio de espírito havia
estofo de uma grande hetaira. Lembrou-se com casta admiração de sua carne
veludosa e palpitante, do seu amor às danças lúbricas, do seu culto à toilette e ao perfume, do seu fraco
senso moral, do seu gosto pelos licores fortes; e, de repente e por instantes,
ele a viu coroada de hera, cobrindo mal a sua magnífica nudez, com uma pele
mosqueada, o ramo de tirso erguido, dançando, religiosamente bêbeda, cheia de
fúria sagrada de hacante: "Evoé! Baco!"
E essa visão antiga lhe passou
pelos olhos, quando a Eponina ergueu-se da mesa, tilintando as pulseiras e
berloques caros, chamando muito a atenção de Madame Rego da Silva que, em
companhia do marido e da sua extremosa amiga Dulce, amante de ambos, no dizer
da cidade, tomavam sorvetes, numa mesa ao longe.
O doutor Maximiliano, ao ver
aquelas joias e aquele vestido, voltou a lembrar-se de que o "jacaré"
não dera; e refletiu, talvez com profundeza, mas certo com muita amargura,
sobre a má organização da nossa sociedade. Mas não foi adiante e procurou
decifrar o problema da sua multiplicação em Clô, tão maravilhosa e tão rara.
Como é que ele tinha posto no mundo um exemplar de mulher assaz vicioso e
delicado como era a filha? De que misteriosa célula sua saíra aquela floração
exuberante de fêmea humana? Vinha dele ou da mulher? De ambos? Ou de sua mulher
só, daquela sua carne apaixonada e sedenta que trepidava quando lhe recebia as
lições de piano, na casa dos pais?
Não pôde, porém, resolver o caso.
Aproximava-se o doutor André, com o seu rosto de ídolo peruano, duro, sem
mobilidade alguma na fisionomia, acobreada, onde o ouro do aro do pince-nez
reluzia fortemente e iluminava a barba cerdosa.
Era um homem forte, de largos
ombros, musculoso, tórax saliente, saltando; e, se bem tivesse as pernas
arqueadas, era assim mesmo um belo exemplar da raça humana.
Lamentava-se que ele fosse um
bacharel vulgar e um deputado obscuro. A sua falta de agilidade intelectual, de
maleabilidade, de ductílidade, a sua fraca capacidade de abstração e débil
poder de associar ideias não impediam fosse ele deputado e bacharel. Ele seria
rei, estaria no seu quadro natural, não na câmara, mas remando em ubás ou
igaras nos nossos grandes rios ou distendendo aqueles fortes arcos de íris que
despejam frechas ervadas com curaro.
Era o seu último amigo,
entretanto o mais constante comensal de sua mesa luculesca.
Deputado, como já ficou dito, e
rico, representava, com muita galhardia e liberalidade, uma feitoria mansa do
Norte, nas salas burguesas; e, apesar de casado, a filha do antigo professor, a
lasciva Clô, esperava casar-se com ele, pela religião do Sol, um novo culto
recentemente fundado por um agrimensor ilustrado e sem emprego.
O velho Maximiliano nada de
definitivo pensava sobre tais projetos; não os aprovava, nem os reprovava.
Limitava-se a pequenas reprimendas sem convicção, para que o casamento não
fosse efetuado sem a bênção do sacerdote do Sol ou de outro qualquer.
E se isto fazia, era para não
precipitar as coisas; ele gostava dos desdobramentos naturais e encadeados, das
passagens suaves, das inflexões doces, e detestava os saltos bruscos de um
estado para o outro.
— Então, doutor, ainda por aqui?
fez o rico parlamentar sentando-se.
— É verdade, respondeu-lhe o
velho. Estou fazendo o meu sacrifício, rezando a minha missa... É a quinta...
Que toma, doutor?
— Um "madeira"... Que
tal o Carnaval?
— Como sempre.
E, depois, voltando-se para o
caixeiro:
— Outra cerveja e um
"madeira", aqui, para o doutor. Olha: leva a garrafa.
O caixeiro afastou-se, levando a
garrafa vazia e o doutor André perguntou:
— Dona Isabel não veio?
— Não. Minha mulher não gosta das
segundas-feiras de Carnaval. Acha-as desenxabidas... Ficaram, ela e a Clô, em
casa a se prepararem para o baile à fantasia na casa dos Silvas... Quer ir?
— O senhora vai?
— Não, meu caro senhora; do
Carnaval, eu só gosto dessa barulhada da rua, dessa música selvagem e sincopada
de reco-recos, de pandeiros, de bombos, desse estridulo de fanhosos
instrumentos de metais... Até do bombo gosto, mais nada! Essa barulhada faz-me
bem à alma. Não irei... Agora, se o doutor quer ir... Clô vai de preta mina.
— Deve-lhe ficar muito bem... Não
posso ir; entretanto, irei à sua casa para ver a sua senhora e a sua filha
fantasiadas. O senhora devia também ir...
— Fantasiado?
— Que tinha?
— Ora, doutor! eu ando sempre com
a máscara no rosto.
E sorriu leve com amargura; o
deputado pareceu não compreender e observou:
— Mas, a sua fisionomia não é tão
decrépita assim...
Maximiliano ia objetar qualquer
coisa quando o caixeiro chegou com as bebidas, ao tempo em que Madame Rego da
Silva e o marido levantaram-se com a pequena Dulce, amante de ambos, no dizer
da cidade em peso.
O paramentar olhou-os bastante
com o seu seguro ar de quem tudo pode. Ouviu que ao lado diziam — à passagem
dos três: ménage à trois. A sua
simplicidade provinciana não compreendeu a maldade e logo dirigiu-se ao velho
professor:
—Jantam em casa?
—Jantamos; e o doutor não quer
jantar conosco?
— Obrigado. Não me é possível ir
hoje... Tenho um compromisso sério... Mas fique certo que, antes de saírem, lá
irei tomar um uisquezinho... Se me permite?
— Oh! doutor! O senhora é nosso
melhor amigo. Não imagina como todos lá falam no senhora. Isabel levanta-se a
pensar no doutor André; Clô, essa, nem se fala! Até o Caçula quando o vê, não
late; faz-lhe festas, não é?
— Como isso me cumula de...
— Ainda há dias, Isabel me disse:
Maximiliano, eu nunca bebi um Chambertin como esse que o doutor André nos
mandou... O meu filho, o Fred, sabe até um dos seus discursos de cor; e, de
tanto repeti-lo, creio que sei de memória vários trechos dele.
A face rígida do ídolo, com
grande esforço, abriu-se um pouco; e ele disse, ao jeito de quem quer o
contrário:
— Não vá agora recitá-lo.
— Certo que não. Seria
inconveniente; mas não estou impedido de dizer, aqui, que o senhora tem muita
imaginação, belas imagens e uma forma magnífica.
— Sou principiante ainda, por
isso não me fica mal aceitar o elogio e agradecer a animação.
Fez uma pausa, tomou um pouco de
vinho e continuou em tom conveniente:
— O senhora sabe perfeitamente
que espécie de força me prende aos seus... Um sentimento acima de mim, uma
solicitação, alguma coisa a mais que os senhores puseram na minha vida...
— Pois então, interrompeu cheio
de comoção o doutor Maximiliano: à nossa!
Ergueu o copo e ambos tocaram os
seus, reatando o parlamentar a conversa desta maneira:
— Deu aula hoje?
— Não. Desci para espairecer e
"cavar". É dura esta vida... "cavar"! Como é triste
dizer-se isto! Mas que se há de fazer? Ganha-se uma miséria... Um professor com
oitocentos mil-réis o que é? Tem-se a família, representação... uma miséria!
Ainda agora, com tantas dificuldades, é que Clô deu em tomar banhos de leite...
— Que ideia! Onde aprendeu isso?
— Sei lá! Ela diz que tem não sei
que propriedades, certas virtudes... O diabo é que tenho de pagar uma conta
estupenda no leiteiro... São banhos de ouro, é que são! Jogo nos bichos... Hoje
tinha tanta fé no "jacaré"...
O caixeiro passava e ele
recomendou:
— Baldomero, outra cerveja. O
doutor não toma mais um "madeira"?
— Vá lá. Ganhou, doutor?
— Qual! E não imagina que falta
me fez!
— Se quer?...
— Por quem é, meu caro; deixe-se
disso! Então há de ser assim todo o dia?
— Que tem!... Ora!... Nada de
cerimônias; é como se recebesse de um filho... — Nada disso... Nada disso...
Fingindo que não entendia a
recusa, o doutor André foi retirando da carteira uma bela nota, cujo valor nas
algibeiras do doutor Maximiliano fez-lhe esquecer em muito a sua desdita no
"jacaré".
O deputado ainda esteve um pouco;
em breve, porém, se despediu, reiterando a promessa de que iria até à casa do
professor, para ver as duas senhoras fantasiadas.
O doutor Maximiliano bebeu ainda
uma cerveja e, acabada que foi a cerveja, saiu vagarosamente um tanto trôpego.
A noite já tinha caído de há muito.
Era já noite fechada. Os cordões e os bandos carnavalescos continuavam a
passar, rufando, batendo, gritando desesperadamente. Homens e mulheres de todas
as cores — os alicerces do país — vestidos de meia, canitares e enduapes de
penas multicores, fingindo índios, dançavam na frente ao som de uma zabumbada
africana, tangida com fúria em instrumentos selvagens, roufenhos, uns,
estridentes, outros. As danças tinham luxuriosos requebros de quadris, uns
caprichosos trocar de pernas, umas quedas imprevistas.
Aqueles fantasiados tinham
guardado na memória muscular velhos gestos dos avoengos, mas não mais sabiam
coordená-los nem a explicação deles. Eram restos de danças guerreiras ou
religiosas dos selvagens de onde a maioria deles provinha, que o tempo e outras
influências tinham transformado em palhaçadas carnavalescas...
Certamente, durante os séculos de
escravidão, nas cidades, os seus antepassados só se podiam lembrar daquelas
cerimônias de suas aringas ou tabas, pelo carnaval. A tradição passou aos
filhos, aos netos, e estes estavam ali a observá-la com as inevitáveis
deturpações.
Ele, o doutor Maximiliano,
apaixonado amador de música, antigo professor de piano, para poder viver e
formar-se, deteve-se um pouco, para ouvir aquelas bizarras e bárbaras cantorias,
pensando na pobreza de invenção melódica daquela gente. A frase, mal desenhada,
era curta, logo cortada, interrompida, sacudida pelos rufos, pelo ranger, pelos
guinchos de instrumentos selvagens e ingênuos. Um instante, ele pensou em
continuar uma daquelas cantigas, em completá-la; e a ária veio-lhe inteira, ao
ouvido, provocando o antigo professor de música a fazer parar o “Chuveiro de
Ouro”, a fim de ensinar-lhes, aos cantores, o que a imaginação lhe havia
trazido à cabeça naquele momento.
Arrependeu-se que tivesse fito
gostar daquela barulhada; porém, o amador de música vencia o homem desgostoso.
Ele queria que aquela gente entoasse um hino, uma cantiga, um canto com
qualquer nome, mas que tivesse regra e beleza. Mas — logo imaginou — para quê?
Corresponderia a música mais ou menos artística aos pensamentos íntimos deles?
Seria mesmo a expansão dos seus sonhos, fantasias e dores?
E, devagar, se foi indo pela rua
em fora, cobrindo de simpatia toda a puerilidade aparente daqueles esgares e berros,
que bem sentia profundos e próprios daquelas criaturas grosseiras e de raças
tão várias, mas que encontravam naquele vozerio bárbaro e ensurdecedor meio de
fazer porejar os seus sofrimentos de raça e de indivíduo e exprimir também as
suas ânsias de felicidade.
Encaminhou-se direto para a casa.
Estava fechada; mas havia luzes na sala principal, onde tocavam e dançavam.
Atravessou o pequeno jardim,
ouvindo o piano. Era sua mulher quem tocava; ele o adivinhava pelo seu velouté, pela maneira de ferir as notas,
muito docemente, sem deixar quase perceber a impulsão que os dedos levavam.
Como ela tocava aquele tango! Que paixão punha naquela música inferior!
Lembrou-se então dos
"cordões", dos "ranchos", das suas cantilenas ingênuas e
bárbaras, daquele ritmo especial a elas que também perturbava sua mulher e
abrasava sua filha. Por que caminho lhes tinha chegado ao sangue e à carne
aquele gosto, aquele pendor por tais músicas? Como havia correlação entre elas
e as almas daquelas duas mulheres?
Não sabia ao certo; mas viu em
toda a sociedade complicados movimentos de trocas e influências — trocas de
ideias e sentimentos, de influências e paixões, de gostos e inclinações.
Quando entrou, o piano cessava e
a filha descansava, no sofá, a fadiga da dança lúbrica que estivera ensaiando
com o irmão. O velho ainda ouviu indulgentemente o filho dizer:
— É assim que se dança nos
Democráticos.
Clô, logo que o viu, correu a
abraçá-lo e, abraçada ao pai, perguntou:
— André não vem?
—Virá.
Mas, logo, em tom severo, acrescentou:
— Que tem você com André?
— Nada, papai; mas ele é tão
bom...
Quis Maximiliano ser severo; quis
apossar-se da sua respeitável autoridade de pai de família; quis exercer o
velho sacerdócio de sacrificador aos deuses penates; mas era céptico demais,
duvidava, não acreditava mais nem no seu sacerdócio nem no fundamento da sua
autoridade. Ralhou, entretanto, frouxamente:
— Você precisa ter mais
compostura, Clô. Veja que o doutor André é casado e isto não fica bem.
A isto, todos entraram em
explicações. O respeitável professor foi vencido e convencido de que a afeição
da filha pelo deputado era a coisa mais inocente e natural deste mundo. Foram
jantar. A refeição foi tomada rapidamente. Fred, contudo, pôde dar algumas
informações sobre os préstitos carnavalescos do dia seguinte. Os Fenianos
perderiam na certa.
Os Democráticos tinham gasto mais
de sessenta contos e iriam pôr na rua uma coisa nunca vista. O carro do
estandarte, que era um templo japonês, havia de fazer um "bruto sucesso”.
Demais, as mulheres eram as mais lindas, as mais bonitas... Estariam a Alice, a
Charlotte, a Lolita, a Cármen...
— Ainda toma muito cloral?
perguntou Clô.
— Ainda, retrucou o irmão; e
emendou: vai ser uma lindeza, um triunfo, à noite, com luz elétrica, nas ruas
largas...
E Clô, por instantes, mordeu os
lábios, suspendeu um pouco o corpo e viu-se também, no alto de um daqueles
carros, iluminada pelos fogos-de-bengala, recebida com palmas, pelos meninos,
pelos rapazes, pelas moças, pelas burguesas e burgueses da cidade.
Era o seu triunfo a meta de sua
vida; era a proliferação imponderável de sua beleza em sonhos, em anseios, em
ideias, em violentos desejos naquelas almas pequenas, sujeitas ao império da
convenção, da regra e da moral. Tomou a cerveja, todo o copo de um hausto,
limpou a espuma dos lábios e o seu ligeiro buço surgiu lindo sobre os breves
lábios vermelhos. Em seguida, perguntou ao irmão:
— E essas mulheres ganham?
— Qual! Você não vê que é uma
honra? respondeu-lhe o irmão.
E o jantar acabou sério e
familiar, embora a cerveja e o vinho não tivessem faltado aos devotos de cada
uma das duas bebidas.
Logo que a refeição acabou,
talvez uns vinte minutos após, o doutor André se fazia anunciar. Desculpou-se
com as senhoras; não pudera vir jantar, questões políticas, uma conferência...
Pedia licença para oferecer
aquelas pequenas lembranças de Carnaval.
Deu uma pequena caixa a dona
Isabel e uma maior à Clô. As joias saíram dos escrínios e faiscaram
orgulhosamente para todos os presentes deslumbrados. Para a mãe, um anel; para
a filha, um bracelete.
— Oh, doutor! fez dona Isabel. O
senhora está a sacrificar-se e nós não podemos consentir nisto...
— Qual, dona Isabel! São falsas,
nada valem... Sabia que dona Clôdia ia de "preta mina" e lembrei-me
trazer-lhe este enfeite...
Clô agradeceu sorridente a
lembrança e a suave boca quis fixar demoradamente o longo sorriso de alegria e
agradecimento. E voltaram a tocar. Dona Isabel pôs-se ao piano e, como tocasse
depois da sobremesa, hora da melancolia e das discussões transcendentes, como
já foi observado, executou alguma coisa triste.
Chegava a ocasião de se
prepararem para o baile à fantasia que os Silvas davam. As senhoras
retiraram-se e só ficaram, na sala, os homens, bebendo uísque. André,
impaciente e desatento; o velho lente, indiferente e compassivo, contando
histórias brejeiras, com vagar e cuidado; o filho, sempre a procurar caminho
para exibir o seu saber em coisas carnavalescas. A conversa ia caindo, quando o
velho
disse para o deputado:
— Já ouviu a Bamboula, de Gottschalk, doutor?
— Não... Não conheço.
— Vou tocá-la.
Sentou-se ao piano, abriu o álbum
onde estava a peça e começou a executar aqueles compassos de uma música negra
de Nova Orleans, que o famoso pianista tinha filtrado e civilizado.
A filha entrou, linda, fresca,
veludosa, de pano da Costa ao ombro, trunfa com o colo inteiramente nu, muito
cheio e marmóreo, separado do pescoço modelado, por um colar de falsas
turquesas.
Os braceletes e as miçangas
tilintavam no peito e nos braços, a bem dizer totalmente despidos; e os bicos
de crivo da camisa de linho rendavam as raízes dos seios duros que mal
suportavam a alvíssima prisão onde estavam retidos.
Ainda pôde requebrar, aos últimos
compassos da Bamboula, sobre as
chinelas que ocupavam a metade dos pés; e toda risonha sentou-se por fim,
esperando que aquele Salomão de pince-nez de ouro lhe dissesse ao ouvido:
"Os teus lábios são como uma
fita de escarlate; e o teu falar é doce. Assim como é o vermelho da romã
partida, assim é o nácar das tuas faces; sem falar no que está escondido
dentro".
O doutor Maximiliano deixou o
tamborete do piano e o deputado, bem perto de Clôdia, se não falava como o rei
Salomão à rainha de Sabá dilatava as narinas para sorver toda a exalação acre
daquela moça, que mais capitosa se fazia dentro daquele vestuário de escrava
desprezada.
A sala encheu-se de outros
convidados e a sessão de música veio a cair na canção e na modinha. Fred cantou
e Clô, instada pelo doutor André, cantou também. O automóvel não tinha chegado;
ela tinha tempo...
Dona Isabel acompanhou; e a moça,
pondo tudo o que havia de sedução na sua voz, nos seus olhos pequenos e
castanhos, cantou a "Canção da Preta Mina":
Pimenta de cheiro, jiló, quibombô;
Eu vendo barato, mi compra ioiô!
Ao acabar, era com prazer
especial, cheia de dengues nos olhos e na voz, com um longo gozo íntimo que
ela, sacudindo as ancas e pondo as mãos dobradas pelas costas na cintura,
curvava-se para o doutor André e dizia vagamente:
Mi compra ioiô!
E repetia com mais volúpia, ainda
uma vez:
Mi compra ioiô!
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