Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O carteiro Joaquim dos Anjos não
era homem de serestas e serenatas, mas gostava de violão e de modinhas. Ele
mesmo tocava flauta, instrumento que já foi muito estimado, não o sendo tanto
atualmente como outrora. Acreditava-se até músico, pois compunha valsas, tangos
e acompanhamentos para modinhas.
Aprendera a "artinha"
musical na terra de seu nascimento, nos arredores de Diamantina, e a sabia de
cor e salteado; mas não safra daí.
Pouco ambicioso em música, ele o
era também nas demais manifestações de sua vida. Empregado de um advogado
famoso, sempre quisera obter um modesto emprego público que lhe desse direito à
aposentadoria e ao montepio, para a mulher e a filha. Conseguira aquele de
carteiro, havia quinze para vinte anos, com o qual estava muito contente,
apesar de ser trabalhoso e o ordenado ser exíguo.
Logo que foi nomeado, tratou de
vender as terras que tinha no local de seu nascimento e adquirir aquela casita
de subúrbio, por preço módico, mas, mesmo assim, o dinheiro não chegara e o
resto pagou ele em prestações. Agora, e mesmo há vários anos, estava de plena
posse dela. Era simples a casa. Tinha dois quartos, um que dava para a sala de
visitas e outro, para a de jantar. Correspondendo a um terço da largura total
da casa, havia nos fundos um puxadito que era a cozinha. Fora do corpo da casa,
um barracão para banheiro, tanque, etc.; e o quintal era de superfície
razoável, onde cresciam goiabeiras maltratadas e um grande tamarineiro copado.
A rua desenvolvia-se no plano e,
quando chovia, encharcava que nem um pântano; entretanto, era povoada e dela se
descortinava um lindo panorama de montanhas que pareciam cercá-la de todos os
lados, embora a grande distância. Tinha boas casas a rua. Havia até uma grande
chácara de outros tempos com aquela casa característica de velhas chácaras de
longa fachada, de teto acaçapado, forrada de azulejos até â metade do
pé-direito, um tanto feia, é fato, sem garridice, mas casando-se perfeitamente
com as anosas mangueiras, com as robustas jaqueiras e com todas aquelas grandes
e velhas árvores que, talvez, os que as plantaram, não tivessem visto
frutificar.
Por aqueles tempos, nessa
chácara, se haviam estabelecido as "bíblias". Os seus cânticos, aos
sábados, quase de hora em hora, enchiam a redondeza. O povo não os via com
hostilidade, mesmo alguns humildes homens e pobres raparigas simpatizavam com
eles, porque, justificavam, não eram como os padres que, para tudo, querem
dinheiro.
Chefiava os protestantes um
americano, Mr. Sharp, homem tenaz e cheio de uma eloquência bíblica que devia
ser magnífica em inglês; mas que, no seu duvidoso português, se fazia simplesmente
pitoresca. Era Sharp daquela raça curiosa de yankees que, de quando em quando, à luz da interpretação de um ou
mais versículos da Bíblia, fundam seitas cristãs, propagam-nas, encontram
adeptos logo, os quais não sabem bem por que foram para a nova e qual a
diferença que há entre esta e a de que vieram.
Fazia prosélitos e, quando se
tratava de iniciar uma turma, os noviços dormiam em barracas de campanha,
erguidas no eirado da chácara ou entre as suas velhas árvores maltratadas e
desprezadas. As cerimônias preparatórias duravam uma semana, cheia de cânticos
divinos; e a velha propriedade, com as suas barracas e salmodias, adquiria um
aspecto esquisito de convento ao ar livre de mistura com um certo ar de
acampamento militar.
Da redondeza, poucos eram os
adeptos ortodoxos; entretanto, muitos lá iam por mera curiosidade ou para
deliciar-se com a oratória de Mr. Sharp.
Iam sem nenhuma repugnância, pois
é próprio do nosso pequeno povo fazer um extravagante amálgama de religiões e
crenças de toda sorte, e socorrer-se desta ou daquela, conforme os transes de
sua existência. Se trata de afastar atrasos de vida, apela para a feitiçaria;
se trata de curar uma moléstia tenaz e resistente, procura o espírita; mas não
falem à nossa gente humilde em deixar de batizar o filho pelo sacerdote
católico, porque não há quem não se zangue: Meu filho ficar pagão! Deus me
defenda!
Joaquim não fazia exceção desta
regra e sua mulher, a Engrácia, ainda menos.
Eram casados há quase vinte anos,
mas só tinham uma filha, a Clara. O carteiro era pardo claro, mas com cabelo
ruim, como se diz; a mulher, porém, apesar de mais escura, tinha o cabelo liso.
Na tez, a filha puxava o pai; e
no cabelo, à mãe. Na estatura, ficara entre os dois. Joaquim era alto, bem
alto, acima da média, ombros quadrados; a mãe, não sendo muito baixa, não
alcançava a média, possuindo uma fisionomia miúda, mas regular, o que não
acontecia com o marido que tinha o nariz grosso, quase chato. A filha, a Clara,
tinha ficado em tudo entre os dois; média deles, era bem a filha de ambos.
Habituada às musicatas do pai, crescera cheia de vapores das modinhas e
enfumaçara a sua pequena alma de rapariga pobre com os dengues e a melancolia
dos descantes e cantarolas.
Com dezessete anos, tanto o pai
como a mãe tinham por ela grandes desvelos e cuidados. Mais depressa ia
Engrácia à venda de "seu" Nascimento, buscar isto, ou aquilo, do que
ela. Não que a venda de "seu" Nascimento fosse lugar de badernas; ao
contrário: as pessoas que lá faziam "ponto" eram de todo o respeito.
O Alípio, uma delas, era um tipo
curioso de rapaz, que, conquanto pobre, não deixava de ser respeitador e bem
comportado.
Tinha um aspecto de galo de
briga; entretanto, estava longe de possuir a ferocidade repugnante desses galos
malaios de apostas, não possuindo — é preciso saber — nenhuma.
Um outro que aparecia sempre lá
era um inglês, Mr. Persons, desenhista de uma grande oficina mecânica das
imediações. Quando saía do trabalho, passava na venda, lá se sentava naqueles
característicos tamboretes de abrir e fechar, e deixava-se ficar até ao
anoitecer bebericando ou lendo os jornais do senhora Nascimento. Silencioso
quase taciturno, pouco conversava e implicava muito com quem o tratava por
mister.
Havia lá também o filósofo
Meneses, um velho hidrópico, que se tinha na conta de sábio, mas que não
passava de um simples dentista clandestino, e dizia tolices sobre todas as
coisas. Era um velho branco, simpático, com um todo de imperador romano, barbas
alvas e abundantes.
Aparecia, às vezes, o J. Amarante,
um poeta, verdadeiramente poeta, que tivera o seu momento de celebridade em
todo o Brasil, se ainda não a tem; mas que, naquela época, devido ao álcool e a
desgostos íntimos, era uma triste ruína de homem, apesar dos seus dez volumes
de versos, dez sucessos, com os quais todos ganharam dinheiro menos ele.
Amnésico, semi-imbecilizado, não seguia uma conversa com tino e falava
desconexamente. O subúrbio não sabia bem quem ele era; chamava-o muito
simplesmente — o poeta.
Um outro frequentador da venda
era o velho Valentim, um português dos seus sessenta anos e pouco, que tinha o
corpo curvado para diante, devido ao hábito contraído no seu ofício de
chacareiro que já devia exercer há mais de quarenta. Contava “casos” e anedotas
de sua terra, pontilhando tudo de rifões portugueses do mais saboroso
pitoresco.
Apesar de ser assim decente,
Clara não ia à venda; mas o pai, em alguns domingos, permitia que fosse com as
amigas ao cinema do Méier ou Engenho de Dentro, enquanto ele e alguns amigos
ficavam em casa tocando violão, cantando modinhas e bebericando parati.
Pela manhã, logo nas primeiras
horas, os companheiros apareciam, tomavam café, iam em seguida para o quintal,
para debaixo do tamarineiro, jogar a bisca, com o litro de cachaça ao lado; e
aí, sem dar uma vista de olhos sobre as montanhas circundantes, nuas e
empedrouçadas, deixavam-se ficar até à hora do "ajantarado" que a
mulher e a filha preparavam.
Só depois deste é que as
cantorias começavam. Certo dia, um dos companheiros dominicais do Joaquim
pediu-lhe licença para trazer, no dia do aniversário dele, que estava próximo,
um rapaz de sua amizade, o Júlio Costa, que era um exímio cantor de modinhas.
Acedeu. Veio o dia da festa e o
famoso trovador apareceu. Branco, sardento, insignificante, de rosto e de
corpo, não tinha as tais melenas denunciadoras, nem outro qualquer traço de
capadócio. Vestia-se seriamente com um apuro muito suburbano; sob a tesoura de
alfaiate de quarta ordem. A única pelintragem adequada ao seu mister que
apresentava consistia em trazer o cabelo repartido no alto da cabeça, dividido
muito exatamente pelo meio. Acompanhava-o o violão. A sua entrada foi um
sucesso.
Todas as moças das mais
diferentes cores que, ai, a pobreza harmonizava e esbatia, logo o admiraram.
Nem César Bórgia, entrando mascarado, num baile à fantasia dado por seu pai, no
Vaticano, causaria tanta emoção.
Afirmavam umas para as outras:
— É ele! É ele, sim!
Os rapazes, porém, não ficaram
muito contentes com isto; e, entre eles, puseram-se a contar histórias
escabrosas da vida galante do cantor de modinhas.
Apresentado aos donos da casa e à
filha, ninguém notou o olhar guloso que deitou para os seios empinados de
Clara.
O baile começou com a música de
um “terno" de flauta, cavaquinho e violão. A polca era a dança preferida e
quase todos a dançavam com requebros próprios de samba.
Num intervalo Joaquim convidou:
— Por que não canta,
"seu" Júlio?
— Estou sem voz, respondeu ele.
Até ali, ele tinha tomado parte
no "remo"; e, repinicando as cordas, não deixava de devorar com os
olhos os bamboleios de quadris de Clarinha, quando dançava. Vendo que seu pai
convidara o rapaz, animou-se a fazê-lo também:
— Por que não canta,
"seu" Júlio? Dizem que o senhora canta tão bem...
Esse — "tão bem" — foi
alongado maciamente. O cantador acudiu logo:
— Qual, minha senhora! São
bondades dos camaradas...
Concertou a "pastinha"
com as duas mãos, enquanto Clara dizia:
— Cante! Vá!
— Já que a senhora manda, disse
ele, vou cantar.
Com todo o dengue, agarrou o
violão, fez estalar as cordas e anunciou:
— Amor e sonho.
E começou com uma voz muito alta,
quase berrando, a modinha, para depois arrastá-la num tom mais baixo, cheio de
mágoa e langor, sibilando os "ss", carregando os "rr" das metáforas
horrendas de que estava cheia a cantoria. A coisa era, porém, sincera; e mesmo
as comparações estrambóticas levantavam nos singelos cérebros das ouvintes
largas perspectivas de sonhos, erguiam desejos, despertavam anseios e visões
douradas. Acabou. Os aplausos foram entusiásticos e só Clarinha não aplaudiu,
porque, tendo sonhado durante toda a modinha, ficara ainda embevecida quando
ela acabou...
Dias depois, vindo à janela por
acaso — era de tarde – sem grande surpresa, como se já o esperasse, Clara
recebeu o cumprimento do cantor magoado. Não pôs malícia na coisa, tanto assim
que disse candidamente à mãe:
— Mamãe, sabe quem passou aí?
— Quem?
— "Seu" Júlio.
— Que Júlio?
— Aquele que cantou nos
"anos" de papai.
A vida da casa, após a festança
de aniversário do Joaquim, continuou a ser a mesma. Nos domingos, aquelas
partidas de bisca com o Eleutério, servente da biblioteca, e com o Augusto,
guarda municipal, acompanhadas de copitos de cachaça, e o violão, à tarde. Não
tardou que se viesse agregar um novo comensal: era o Júlio Costa, o famoso
modinheiro suburbano, amigo íntimo do Augusto e seu professor de trovas.
Júlio quase nunca jantava, pois
tinha sempre convites em todos os quatro pontos cardeais daquelas paragens.
Tomava parte nas partidas de bisca, de parceirada, e pouco bebia. Apesar de não
demorar-se pela tarde adentro, pôde ir cercando a rapariga, a Clara, cujos
seios empinados, volumosos e redondos fascinavam-lhe extraordinariamente e
excitavam a sua gula carnal insaciável. Em começo foram só olhares que a moça,
com os seus úmidos olhos negros, grandes, quase cobrindo toda a esclerótica,
correspondia a furto e com medo; depois, foram pequenas frases, galanteios,
trocados às escondidas, para, afinal, vir a fatídica carta.
Ela a recebeu, meteu-a no seio e,
ao deitar-se, leu-a, sob a luz da vela, medrosa e palpitante. A carta era a
coisa mais fantástica, no que diz respeito à ortografia e à sintaxe, que se
pode imaginar; tinha, porém, uma virtude: não era copiada do Secretário dos
amantes, era original. Contudo a missiva fez estremecer toda a natureza virgem
de Clara que, com a sua leitura, sentiu haver nela surgido alguma coisa de
novo, de estranho, até ali nunca sentida. Dormiu mal. Não sabia bem o que fazer:
se responder, se devolver. Viu o olhar severo do pai; as recriminações da mãe.
Ela, porém, precisava casar-se. Não havia de ser toda a vida assim como um cão
sem dono... Os pais viriam a morrer e ela não podia ficar pelo mundo
desamparada... Uma dúvida lhe veio: ele era branco; ela, mulata... Mas que
tinha isso?
Tinham-se visto tantos casos...
Lembrou-se de alguns... Por que não havia de ser? Ele falava com tanta
paixão... Ofegava, suspirava, chorava; e os seus seios duros estouravam de
virgindade e de ansiedade de amar... Responderia; e assim fez, no dia seguinte.
As visitas de Costa tomaram-se mais demoradas e as cartas mais constantes. A
mãe desconfiou e perguntou à filha:
— Você está namorando
"seu" Júlio, Clarinha?
— Eu, mamãe! Nem penso nisso...
— Está, sim! Então não vejo?
A menina pôs-se a chorar; a mãe
não falou mais nisso; e Clara, logo que pôde, mandou pelo Aristides, um
molecote da vizinhança, uma carta ao modinheiro, relatando o fato.
Júlio morava na estação próxima e
a situação de sua família era bem superior à sua namorada. O seu pai tinha um
emprego regular na prefeitura e era, em tudo, diferente do filho. Sisudo,
grave, sério, ia até a imponência grotesca do bom funcionário; e não seria
capaz de admitir que a namorada do filho dançasse na sua sala. Sua mulher não
tinha o ar solene do marido, era, porém, relaxada de modos e hábitos. Comia com
a mão, andava descalça, catava intrigas e "novidades" da vizinhança;
mas tinha, apesar disso, uma pretensão íntima de ser grande coisa, de uma grande
família. Além do Júlio, tinha três filhas, uma das quais já era adjunta
municipal; e, das outras duas, uma estava na Escola Normal e a mais moça
cursava o Instituto de Música.
Tiravam muito ao pai, no gênio
sobranceiro, no orgulho fofo da família; e tinham ambição de casamentos
doutorais. Mercedes, Adelaide e Maria Eugênia, eram esses os nomes, não
suportariam de nenhuma forma Clara como cunhada, embora desprezassem
soberbamente o irmão pelos seus maus costumes, pelo seu violão, pelos seus
plebeus galos de briga e pela sua ignorância crassa.
Pequeno-burguesas, sem nenhuma
fortuna, mas, devido à situação do pai e a terem frequentado escolas de certa
importância, elas não admitiriam, para Clara, senão um destino: o de criada de
servir.
Entretanto, Clara era doce e
meiga; inocente e boa, podia-se dizer que era muito superior ao irmão delas
pelo sentimento, ficando talvez acima dele pela instrução, conquanto fosse
rudimentar, como não podia deixar de ser, dada a sua condição de rapariga
pobríssima.
Júlio era quase analfabeto e não
tinha poder de atenção suficiente para ler o entrecho de uma fita de
cinematógrafo. Muito estúpido, a sua vida mental se cifrava na composição de
modinhas delambidas, recheadas das mais estranhas imagens que a sua imaginação
erótica, sufocada pelas conveniências, criava, tendo sempre perante seus olhos
o ato sexual.
Mais de uma vez, ele se vira a
braços com a polícia por causa de defloramento e seduções de menores.
O pai, desde a segunda, recusara
intervir; mas a mãe, dona Inês, a custo de rogos, de choro, de apelo — para a
pureza de sangue da família, conseguira que o marido, o capitão Bandeira,
procurasse influenciar, a fim de evitar que o filho casasse com uma negrinha de
dezesseis anos, a quem o Júlio "tinha feito mal".
Apesar de não ser totalmente má,
os seus preconceitos junto à estreiteza da sua inteligência não permitiram ao
seu coração que agasalhasse ou protegesse o seu infeliz neto. Sem nenhum
remorso, deixou-o por aí, à toa, pelo mundo...
O pai, desgostoso com o filho,
largara-o de mão; e quase não se viam. Júlio vivia no porão da casa ou nos
fundos da chácara onde tinha gaiolas de galos de briga, o bicho mais hediondo,
mais repugnantemente feroz que é dado a olhos humanos ver. Era a sua indústria
e o seu comércio, esse negócio de galos e as suas brigas em rinhadeiros.
Barganhava-os, vendia-os, chocava
as galinhas, apostava nas rinhas; e com o resultado disso e com alguns cobres
que a mãe lhe dava, vivia e obtinha dinheiro para vestir-se. Era o tipo
completo do vagabundo doméstico, como há milhares nos subúrbios e em outros
bairros do Rio de Janeiro.
A mãe, sempre temendo que se
repetissem os seus ajustes de contas com a polícia, esforçava-se sempre por estar
ao corrente dos seus amores. Veio a saber do seu último com a Clara e
repreendeu-o nos termos mais desabridos. Ouviu-a o filho respeitosamente, sem
dizer uma palavra; mas, julgou da boa política relatar, a seu modo, por carta,
tudo à namorada. Assim escreveu:
"Queridinha confesso-te que
ontem quando recebi a tua carta minha mãe viu e fiquei tão louco que confessei
tudo a mamãe que lhe amava muito e fazia por você as maiores violências,
ficaram todos contra mim é a razão porque previno-te que não ligues ao que lhe
disserem, por isso peço-te que preze bem o meu sofrimento. Pense bem e veja se
estás resolvida a fazer o que lhe pedi na última cartinha. Saudades e mais
saudades deste infeliz que tanto lhe adora e não é correspondido. O teu
Júlio".
Clara já estava habituada com a
redação e ortografia do seu namorado, mas, apesar de escrever muito melhor, a
sua instrução era insuficiente para desprezar um galanteador tão analfabeto.
Ainda por cima, a sua fascinação pelo modinheiro e a sua obsessão pelo casamento
lhe tiravam toda a capacidade crítica que pudesse ter. A carta produziu o
efeito esperado por Júlio. Choro, palpitações, anseios vagos, esperanças
nevoentas, vislumbres de céus desconhecidos e encantados — tudo isso aquela
carta lhe trouxe, além do halo de dedicação e amor por ela com que Clara fez
resplandecer, na imaginação, as pastinhas do violeiro. Daí a dias, fez o
prometido, isto é, deixou a janela do quarto aberta para que ele entrasse no
aposento. Repetiu a façanha quase todas as noites seguidas, sem que ele se
demorasse muito no quarto.
Nos domingos, aparecia, cantava e
semelhava que entre ambos não havia nada. Um belo dia, Clara sentiu alguma
coisa de estranho no ventre. Comunicou ao namorado. Qual! Não era nada, disse
ele.
Era, sim; era o filho. Ela
chorou, ele acalmou-a, prometendo casamento. O ventre crescia, crescia...
O cantador de modinhas foi
fugindo, deixou de aparecer a miúdo; e Clara chorava. Ainda não lhe tinham
percebido a gravidez.
A mãe, porém, com auxílio de
certas intimidades próprias de mãe para filha, desconfiou e pô-la em confissão.
Clara não pôde esconder, disse tudo; e aquelas duas humildes mulheres choraram
abraçadas diante do irremediável... A filha teve uma ideia:
— Mamãe, antes da senhora dizer a
papai, deixa-me ir até à casa dele, para falar com a sua mãe?
A velha meditou e aceitou o
alvitre:
— Vai!
Clara vestiu-se rapidamente e
foi. Recebida com altaneria por uma das filhas, disse que queria falar à mãe de
Júlio. Recebeu-a esta rispidamente; mas a rapariga, com toda a coragem e com
sangue-frio difícil de crer, confessou-lhe tudo, o seu erro e a sua desdita.
— Mas o que é que você quer que
eu faça?
— Que ele se case comigo, fez
Clara num só hausto.
— Ora, esta! Você não se enxerga!
Você não vê mesmo que meu filho não é para se casar com gente da laia de você!
Ele não amarrou você, ele não amordaçou você... Vá-se embora, rapariga!
Ora já se viu! Vá!
Clara saiu sem dizer nada,
reprimindo as lágrimas, para que na rua não lhe descobrissem a vergonha. Então,
ela? Então ela não se podia casar com aquele calaceiro, sem nenhum título, sem
nenhuma qualidade superior? Por quê?
Viu bem a sua condição na
sociedade, o seu estado de inferioridade permanente, sem poder aspirar a coisa
mais simples a que todas as moças aspiram. Para que seriam aqueles cuidados
todos de seus pais? Foram inúteis e contraproducentes, pois evitaram que ela
conhecesse bem justamente a sua condição e os limites das suas aspirações
sentimentais... Voltou para casa depressa. Chegou; o pai ainda não viera.
Foi ao encontro da mãe. Não lhe
disse nada; abraçou-a chorando.
A mãe também chorou e, quando
Clara parou de chorar, entre soluços, disse:
— Mamãe, eu não sou nada nesta
vida.
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