Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Aqui vai um grupo de cinco mulheres, diferentes entre si, partindo de diversos pontos, mas reunidas na mesma coleção, como em um álbum de fotografias.
Desenhei-as rapidamente, conforme apareciam,
sem intenção de precedência, nem cuidado de escolha.
Cada uma delas forma um esboço à parte; mas
todas podem ser examinadas entre o charuto e o café.
CAPÍTULO 1: MARCELINA
Marcelina era uma criatura débil como uma
haste de flor; dissera-se que a vida lhe fugia em cada palavra que lhe saía dos
lábios rosados e finos. Tinha um olhar lânguido como os últimos raios do dia. A
cabeça, mais angélica do que feminina, aspirava ao céu. Quinze anos contava,
como Julieta. Como Ofélia, parecia que estava destinada a colher a um tempo as
flores da terra e as flores da morte.
De todas as irmãs — eram cinco —, era
Marcelina a única a quem a natureza tinha dado tão pouca vida. Todas as mais
pareciam ter seiva de sobra. Eram mulheres altas e reforçadas, de olhos vivos e
cheios de fogo. Alfenim era o nome que davam a Marcelina. Ninguém a convidava
para as fadigas de um baile ou para os grandes passeios. A boa menina fraqueava
depois de uma valsa ou no fim de cinquenta passos do caminho.
Era ela a mais querida dos pais. Tinha na sua
fragilidade a razão da preferência.
Um instinto secreto dizia aos velhos que ela
não havia de viver muito; e como que para desforrá-la do amor que havia de
perder, eles a amavam mais do que às outras filhas. Era ela a mais moça,
circunstância que acrescia àquela, porque ordinariamente os pais amam o último
filho mais do que os primeiros, sem que os primeiros pereçam inteiramente no
seu coração.
Marcelina tocava piano perfeitamente. Era a
sua distração habitual; tinha o gosto da música no mais apurado grau. Conhecia
os compositores mais estimados, Mozart, Weber, Beethoven, Palestrina. Quando se
assentava ao piano para executar as obras dos seus favoritos, nenhum prazer da
terra a tiraria dali.
Chegara à idade em que o coração da mulher
começa a interrogá-la secretamente; mas ninguém conhecia um sentimento só de
amor no coração de Marcelina. Talvez não fosse a hora, mas todos que a viam
acreditavam que ela não pudesse amar na terra, tão do céu parecia ser aquela
delicada criatura.
Um poeta de vinte anos, virgem ainda nas suas
ilusões, teria encontrado nela o mais puro ideal dos seus sonhos; mas nenhum
havia na roda que frequentava a casa da moça. Os homens que lá iam preferiam a
tagarelice insossa e incessante das irmãs à compleição frágil e à recatada
modéstia de Marcelina.
A mais velha das irmãs tinha um namorado. As
outras sabiam do namoro e o protegiam na medida dos seus recursos. Do namoro ao
casamento pouco tempo mediou, apenas um mês. O casamento foi fixado para um dia
de junho. O namorado era um belo rapaz de vinte e seis anos, alto, moreno, de
olhos e cabelos pretos. Chamava-se Júlio.
No dia seguinte em que se anunciou o
casamento de Júlio, Marcelina não se levantou da cama. Era uma ligeira febre
que cedeu no fim de dois dias aos esforços de um velho médico, amigo do pai.
Mas, ainda assim, a mãe de Marcelina chorou amargamente, e não dormiu uma hora.
Nunca houve crise séria na moléstia da filha, mas o simples fato da moléstia
bastou para que a boa mãe perdesse a cabeça. Quando a viu de pé regou de
lágrimas os pés de uma imagem da Virgem, que era a sua devoção particular.
Entretanto seguiam os preparativos do
casamento. Devia efetuar-se dali a quinze dias. Júlio estava radiante de
alegria, e não perdia ocasião de comunicar-se a todos o estado em que se
achava. Marcelina ouvia-o com tristeza; dizia-lhe duas palavras de cumprimento
e desviava a conversa daquele assunto, que lhe parecia penoso. Ninguém
reparava, menos o médico, que um dia, em que ela se achava ao piano, disse-lhe
com ar pesaroso:
— Menina, isso faz-lhe mal.
— Isso quê?
— Sufoque o que sente, esqueça um sonho
impossível e não vá adoecer por um sentimento sem esperança.
Marcelina cravou os olhos nas teclas do piano
e levantou-se a chorar.
O doutor saiu mais pesaroso do que estava.
— Está morta, dizia ele descendo as escadas.
O dia do casamento chegou. Foi uma alegria na
casa, mesmo para Marcelina, que cobria a irmã de beijos; aos olhos de todos era
a afeição fraternal que se manifestava assim num dia de júbilo para a irmã; mas
a um olhar experimentado não escaparia a tristeza escondida debaixo daquelas
demonstrações tão fervorosas.
Isto não é um romance, nem um conto, nem um
episódio; — não me ocuparei, portanto, com os acontecimentos dia por dia. Um
mês se passou depois do casamento de Júlio com a irmã de Marcelina. Era o dia
marcado para o jantar comemorativo em casa de Júlio. Marcelina foi com
repugnância, mas era preciso; simular uma doença era impedir a festa; a boa
menina não quis. Foi.
Mas quem pode responder pelo futuro?
Marcelina, duas horas depois de estar em casa da irmã, teve uma vertigem. Foi
levada para um sofá, mas tornada a si achou-se doente. Foi transportada para
casa. Toda a família a acompanhou. A festa não teve lugar.
Declarou-se uma nova febre.
O médico, que sabia o fundo da doença de
Marcelina, procurou curar-lhe a um tempo o corpo e o coração. Os remédios do
corpo pouco faziam, porque o coração era o mais doente. O médico quando
empregava uma dose no corpo, empregava duas no coração. Eram os conselhos
brandos, as palavras persuasivas, as carícias quase fraternais. A moça
respondia a tudo com um sorriso triste — era a única resposta.
Quando o velho médico lhe dizia:
— Menina, esse amor é impossível...
Ela respondia:
— Que amor?
— Esse: o de seu cunhado.
— Está sonhando, doutor. Eu não amo ninguém.
— É debalde que procura ocultar.
Um dia, como ela insistisse em negar, o
doutor ameaçou-a sorrindo que ia contar tudo à mãe.
A moça empalideceu mais do que estava.
— Não, disse ela, não diga nada.
— Então, é verdade?
A moça não ousou responder: fez um leve sinal
com a cabeça.
— Mas não vê que é impossível? perguntou o
doutor.
— Sei.
— Então por que pensar nisso?
— Não penso.
— Pensa. É por isso que está tão doente...
— Não creia, doutor; estou doente porque Deus
o quer; talvez fique boa, talvez não; é indiferente para mim; só Deus é quem
manda estas coisas.
— Mas sua mãe?...
— Ela irá ter comigo, se eu morrer.
O médico voltou a cabeça para o lado de uma
janela que se achava meio aberta.
Esta conversa reproduziu-se muitas vezes,
sempre com o mesmo resultado. Marcelina definhava a olhos vistos. No fim de
alguns dias o médico declarou que era impossível salvá-la.
A família ficou desolada com esta notícia.
Júlio ia visitar Marcelina com sua mulher;
nessas ocasiões Marcelina sentia-se elevada a uma esfera de bem-aventurança.
Vivia da voz de Júlio. As faces se lhe coloriam e os olhos readquiriam um
brilho celeste.
Depois voltava ao seu estado habitual.
Mais de uma vez quis o médico declarar à
família qual era a verdadeira causa da moléstia de Marcelina; mas que ganharia
com isso? Não viria daí o remédio, e a boa menina ficaria do mesmo modo.
A mãe, desesperada com aquele estado de
coisas, imaginou todos os meios de salvar a filha; lembrou a mudança de ares,
mas a pobre Marcelina raras vezes deixava de arder em febre.
Um dia, era um domingo de julho, a menina
declarou que desejava comunicar alguma coisa ao doutor.
Todos os deixaram a sós.
— Que quer? perguntou o médico.
— Sei que é nosso amigo, e sobretudo meu
amigo. Sei quanto sente a minha doença, e como lhe dói que eu não possa ficar
boa...
— Há de ficar, não fale assim...
— Qual doutor! eu sei o que sinto! Se lhe
quero falar é para dizer-lhe uma coisa. Quando eu morrer não diga a ninguém
qual foi o motivo da minha morte.
— Não fale assim... interrompeu o velho
levando o lenço aos olhos.
— Di-lo-á somente a uma pessoa, continuou
Marcelina; é a minha mãe. Essa sim, coitada, que tanto me ama e que vai ter a
dor de me perder! Quando lhe disser, entregue-lhe então este papel.
Marcelina tirou debaixo do travesseiro uma
folha de papel dobrada em quatro, e atada por uma fita roxa.
— Escreveu isto? Quando? perguntou o médico.
— Antes de adoecer.
O velho tomou o papel das mãos da doente e
guardou-o no seu bolso.
— Mas, venha cá, disse ele, que ideias são
essas de morrer? Tão moça! Começa apenas a viver; outros corações podem ainda
receber os seus afetos; para que quer tão cedo deixar o mundo? Pode ainda
encontrar nele uma felicidade digna da sua alma e dos seus sentimentos... Olhe
cá, ficando boa iremos todos para fora. A menina gosta da roça. Pois toda a
família irá para a roça...
— Basta, doutor! É inútil.
Daí em diante Marcelina pouco falou.
No dia seguinte à tarde Júlio e a mulher
vieram visitá-la. Marcelina achava-se pior. Toda a família estava ao pé da
cama. A mãe debruçada à cabeça chorava silenciosamente.
Quando veio a noite fechada, declarou-se a
crise da morte. Houve então uma explosão de soluços; porém a menina, serena e
calma, a todos procurava consolar dando-lhes a esperança de que iria orar por
todos no céu.
Quis ver o piano em que tocava; mas era
difícil satisfazer-lhe o desejo e ela facilmente se convenceu. Não desistiu
porém de ver as músicas; quando elas lhas deram distribuiu-as pelas irmãs.
— Quanto a mim vou tocar outras músicas no
céu.
Pediu algumas flores secas que tinha numa
gaveta, e distribuiu-as igualmente pelas pessoas presentes.
Às oito horas expirou.
Um mês depois o velho médico, fiel à promessa
que fizera à moribunda, pediu uma conferência particular à infeliz mãe.
— Sabe de que morreu Marcelina? perguntou
ele; não foi de uma febre, foi de um amor.
— Ah!
— É verdade.
— Quem era?
— A pobre menina pôs a sua felicidade num
desejo impossível; mas não se revoltou contra a sorte; resignou-se e morreu.
— Quem era? perguntou a mãe.
— Seu genro.
— É possível? disse a pobre mãe dando um
grito.
— É verdade. Eu o descobri, e ela mo
confessou. Sabe como eu era amigo dela; fiz tudo quanto pude para desviá-la de
semelhante pensamento; mas tinha chegado tarde. A sentença estava lavrada; ela
devia amar, adoecer e subir ao céu. Que amor, e que destino!
O velho tinha os olhos rasos de lágrimas; a
mãe de Marcelina chorava e soluçava que cortava o coração. Quando ela pôde
ficar um pouco calma, o médico continuou:
— A entrevista que ela me pediu nos seus
últimos dias foi para dar-me um papel, disse-me então que lho entregasse depois
da morte. Aqui o tem.
O médico tirou do bolso o papel que recebera
de Marcelina e lho entregou intacto.
— Leia-o, doutor. O segredo é nosso.
O doutor leu em voz alta e com voz trêmula:
Devo morrer deste amor. Sinto que é o
primeiro e o último. Podia ser a minha vida e é a minha morte. Por quê? Deus o
quer. Não viu ele nunca que era eu a quem devia amar. Não lhe dizia acaso um
secreto instinto que eu carecia dele para ser feliz? Cego! foi procurar o amor
de outra, tão sincero como o meu, mas nunca tão grande e tão elevado! Deus o
faça feliz! Escrevi um pensamento mau. Por que me hei de revoltar contra minha
irmã? Não pode ela sentir o que eu sinto? Se eu sofro por não ter a felicidade
de possuí-lo não sofreria ela, se ele fosse meu? Querer a minha felicidade à
custa dela, é um sentimento mau que mamãe nunca me ensinou. Que ela seja feliz
e sofra eu a minha sorte.
Talvez eu possa viver; e nesse caso, ó minha
Virgem da Conceição, eu só te peço que me dês a força necessária para ser feliz
só com a vista dele, embora ele me seja indiferente. Se mamãe soubesse disto
talvez ralhasse comigo, mas eu acho que...
O papel achava-se interrompido neste ponto.
O médico acabou estas linhas banhado em
lágrimas. A mãe chorava igualmente. O segredo confiado aos dois morreu com
ambos.
Mas um dia, tendo morrido a velha mãe de
Marcelina, e procedendo-se ao inventário, foi achado o papel pelo cunhado de
Marcelina... Júlio conheceu então a causa da morte da cunhada. Lançou os olhos
para um espelho, procurando nas suas feições um raio da simpatia que inspirara
a Marcelina, e exclamou:
— Pobre menina!
Acendeu um charuto e foi ao teatro.
CAPÍTULO 2: ANTÔNIA
A história conhece um tipo da dissimulação,
que resume todos os outros, como a mais alta expressão de todos: — é Tibério.
Mas nem esse chegaria a vencer a dissimulação dos Tibérios femininos, armados
de olhos e sorrisos capazes de frustrar os planos mais bem combinados e
enfraquecer as vontades mais resolutas.
Antônia era uma mulher assim.
Quando eu a conheci era ela casada de doze
meses. O marido tinha nela a mais plena confiança. Amavam-se ambos com o amor
mais ardente e apaixonado que ainda houve. Era uma alma só em dois corpos. Se
ele demorava fora de casa, Antônia não só velava todo o tempo, como desfazia-se
em lágrimas de saudades e de dor. Apenas ele chegava, não havia o desenlace
comum das recriminações estéreis; Antônia lançava-se-lhe aos braços e tudo
voltava em bem.
Onde um não ia, não ia o outro. Para quê, se
a felicidade deles residia em estarem juntos, viverem dos olhos um do outro,
fora do mundo e dos seus vãos prazeres?
Assim ligadas estas duas criaturas davam ao
mundo o doce espetáculo de uma união perfeita. Eram o enlevo das famílias e o
desespero dos mal casados.
Antônia era bela; tinha vinte e seis anos.
Estava no pleno desenvolvimento de uma dessas belezas robustas e destinadas a
resistir à ação do tempo. Oliveira, seu marido, era o que se podia chamar um
Apolo. Via-se que aquela mulher devia amar aquele homem e aquele homem devia
amar aquela mulher.
Frequentavam a casa de Oliveira alguns amigos,
uns da infância, outros de data recente, alguns de menos de um ano, isto é, da
data do casamento de Oliveira. A amizade é o melhor pretexto, até hoje
inventado, para que um indivíduo pretenda tomar parte na felicidade de outro.
Os amigos de Oliveira, que não primavam pela originalidade dos costumes, não
ficaram isentos de encantos que a beleza de Antônia produzia em todos. Uns,
menos corajosos, desanimaram diante do extremoso amor que ligava o casal; mas
um houve, menos tímido, que assentou de si para si tomar lugar à mesa da
ventura doméstica do amigo.
Era um tal Moura.
Não sei dos primeiros passos de Moura; nem
das esperanças que ele pôde ir concebendo à proporção que corria o tempo. Um
dia, porém, a notícia de que entre Moura e Antônia havia um laço de simpatia
amorosa surpreendeu a todos.
Antônia era até então o símbolo do amor e da
felicidade conjugal. Que demônio lhe soprara ao ouvido tão negra resolução de
iludir a confiança e o amor do marido? Uns duvidaram, outros se irritaram,
alguns esfregaram as mãos de contentes, animados pela ideia de que o primeiro
erro devia ser uma arma e um incentivo para os erros futuros.
Desde que a notícia, contada à meia voz, e
com a mais perfeita discrição, correu de boca em boca, todas as atenções
voltaram-se para Antônia e Moura. Um olhar, um gesto, um suspiro, escapam aos
mais dissimulados; os olhos mais experimentados viram logo a veracidade dos
boatos; se os dois se não amavam, estavam perto do amor.
Deve-se acrescentar que ao pé de Oliveira,
Moura fazia o papel de deus Pã ao pé do deus Febo. Era uma figura vulgar, às
vezes ridículo, sem nada que pudesse legitimar a paixão de uma mulher bela e
altiva. Mas assim aconteceu, a grande aprazimento da sombra de La Bruyère.
Uma noite uma família da amizade de Oliveira
foi convidá-la para irem ao Teatro Lírico. Antônia mostrou grande desejo de ir.
Cantava então não sei que celebridade italiana.
Oliveira, por doente ou por enfado, não quis
ir. As instâncias da família que os convidara foram inúteis; Oliveira teimou em
ficar.
Oliveira insistia em ficar, Antônia em ir.
Depois de muito tempo o mais que se conseguiu foi que Antônia fosse em
companhia das amigas, que a trariam depois para casa.
Oliveira ficara em companhia de um amigo.
Mas, antes de saírem todos, Antônia insistiu
de novo com o marido para que fosse.
— Mas se eu não quero
ir? dizia ele. Vai tu, eu ficarei, conversando com ***.
— É que se tu não fores, disse Antônia, o
espetáculo não vale nada para mim.
Anda!
— Vai, querida, eu irei em outra ocasião.
— Pois não vou!
E sentou-se disposta a não ir ao teatro. As
amigas exclamaram em coro:
— Como é isso: não ir? Que maçada! Era o que
faltava! anda, anda!
— Vai, sim, disse Oliveira. Então porque eu
não vou, não te queres divertir?
Antônia levantou-se:
— Está bem, disse ela, irei.
— De que número é o camarote? perguntou
bruscamente Oliveira.
— Vinte, segunda ordem, disseram as amigas de
Antônia.
Antônia empalideceu ligeiramente.
— Então, irás depois, não é? disse ela.
— Não, decididamente, não.
— Dize se vais.
— Não, fico, é decidido.
Saíram para o Teatro Lírico. Sob pretexto de
que desejava ir ver a celebridade tomei o chapéu e fui ao Teatro Lírico.
Moura estava lá!
CAPÍTULO 3: CAROLINA
— Pois quê! vais casar-te?
— É verdade.
— Com o Mendonça?
— Com o Mendonça.
— Isso é impossível! Tu, Carolina, tu formosa
e moça, mulher de um homem como aquele, sem nada que possa inspirar amor? Ama-o
acaso?
— Hei de estimá-lo.
— Não o amas, já vejo.
— É meu dever. Que queres, Lúcia? Meu pai
assim o quer, devo obedecer-lhe. Pobre pai! ele cuida fazer a minha felicidade.
A fortuna de Mendonça parece-lhe uma garantia de paz e de ventura da minha
vida. Como se engana!
— Mas não deves consentir nisso... Vou
falar-lhe.
— É inútil, nem eu quero.
— Mas então...
— Olha, há talvez outra razão: creio que meu
pai deve favores ao Mendonça; este apaixonou-se por mim, pediu-me; meu pai não
teve ânimo de recusar-me.
— Pobre amiga!
Sem conhecer ainda as nossas heroínas, já o
leitor começa a lamentar a sorte da futura mulher de Mendonça. É mais uma
vítima, dirá o leitor, imolada ao capricho ou à necessidade. Assim é. Carolina
devia casar-se daí a alguns dias com Mendonça, e era isso o que lamentava a
amiga Lúcia.
— Pobre Carolina!
— Boa Lúcia!
Carolina é uma moça de vinte anos, alta,
formosa, refeita. Era uma dessas belezas que seduzem os olhos lascivos, e já
por aqui ficam os leitores sabendo que Mendonça é um desses, com a
circunstância agravante de ter meios com que lisonjear os seus caprichos.
Bem vejo como me poderia levar longe este
último ponto da minha história; mas eu desisto de fazer agora uma sátira contra
o vil metal (por que metal?); e bem assim não me dou ao trabalho de descrever a
figura da amiga de Carolina.
Direi somente que as duas amigas conversavam
no quarto de dormir da prometida noiva de Mendonça.
Depois das lamentações feitas por Lúcia à
sorte de Carolina, houve um momento de silêncio. Carolina empregou algumas
lágrimas; Lúcia continuou:
— E ele?
— Quem?
— Fernando.
— Ah! esse que me perdoe e me esqueça; é tudo
quanto posso fazer por ele. Não quis Deus que fôssemos felizes; paciência!
— Por isso o vi triste lá na sala!
— Triste? ele não sabe nada. Há de ser por
outra coisa.
— O Mendonça virá?
— Deve vir.
As duas moças saíram para a sala. Lá se
achava Mendonça em conversa com o pai de Carolina, Fernando a uma janela de
costas para a rua, uma tia de Carolina conversando com o pai de Lúcia. Ninguém
mais havia. Esperava-se a hora do chá.
Quando as duas moças apareceram todos voltaram-se
para elas. O pai de Carolina foi buscá-las e levou-as a um sofá.
Depois, no meio do silêncio geral, o velho
anunciou o casamento próximo de Carolina e Mendonça.
Ouviu-se um grito sufocado do lado da janela.
Ouviu-se, digo mal — não se ouviu; Carolina foi a única que ouviu ou antes
adivinhou. Quando voltou os olhos para a janela, Fernando estava de costas para
a sala e tinha a cabeça entre mãos.
O chá foi tomado no meio de geral
acanhamento. Parece que ninguém, além do noivo e do pai de Carolina, aprovava
semelhante consórcio.
Mas, quer aprovasse, quer não, ele devia
efetuar-se daí a vinte dias.
Entro no teto conjugal como num túmulo,
escrevia Carolina na manhã do casamento à amiga Lúcia; deixo as minhas ilusões
à porta, e peço a Deus que não perca só isso.
Quanto a Fernando, a quem ela não pôde ver
mais depois da noite da declaração do casamento, eis a carta que ele mandou a
Carolina, na véspera de realizar-se o consórcio:
Quis acreditar até hoje que fosse uma ilusão,
ou um sonho mau semelhante casamento; agora sei que não é possível duvidar da
verdade. Pois quê! tudo te esqueceu, o amor, as promessas, os castelos de
felicidade, tudo, por amor de um velho ridículo, mas opulento, isto é, dono
desse vil metal, etc., etc...
O leitor sagaz suprirá o resto da carta,
acrescentando qualquer período tirado de qualquer romance da moda.
Isto que aí fica escrito não muda em nada a
situação da pobre Carolina; condenada a receber recriminações quando ia dar a
mão de esposa com o luto no coração.
A única resposta dada por ela à carta de
Fernando foi esta:
Esqueça-se de mim.
Fernando não assistiu ao casamento. Lúcia
assistiu triste como se fora um enterro. Em geral perguntava-se que amor
estranho era aquele que levava Carolina a desfolhar a sua mocidade tão viçosa
nos braços de semelhante homem. Ninguém atinava com a resposta.
Como eu não quero entreter os leitores com
episódios inúteis e narrações fastidiosas, salto aqui uns seis meses e vou
levá-los à casa do Mendonça, numa manhã de inverno.
Lúcia, solteira ainda, está com Carolina,
onde costuma ir passar alguns dias. Não se fala na pessoa de Mendonça; Carolina
é a primeira a respeitá-lo; a amiga respeita esses sentimentos.
É verdade que os seis primeiros meses de
casamento foram para Carolina seis séculos de lágrimas, de angústia, de
desespero. De longe a desgraça parecia-lhe menor; mas desde que ela pôde tocar
com o dedo o deserto árido e seco em que entrou, então não pôde resistir e
chorou amargamente.
Era o único recurso que lhe restava: chorar.
Uma porta de bronze separava-a para sempre da felicidade que sonhara nas suas
ambições de donzela. Ninguém sabia dessa Odisseia íntima, menos Lúcia, que
ainda assim sabia mais por adivinhar e por surpreender as torturas menores da
companheira dos primeiros anos.
Estavam, pois, as duas em conversa, quando às
mãos de Carolina chegou uma carta assinada por Fernando.
Pintava-lhe o antigo namorado o estado em que
tinha o coração, as dores que sofrera, as mortes de que escapara. Nessa série
de padecimentos, dizia ele, nunca perdera a coragem de viver para amá-la,
embora de longe.
A carta era abundante em comentários, mas eu
julgo melhor conservar somente a substância dela.
Leu-a Carolina, trêmula e confusa; esteve
alguns minutos calada; depois rasgando a carta em tiras muito miúdas:
— Pobre rapaz!
— Que é? perguntou Lúcia.
— É uma carta de Fernando.
Lúcia não insistiu. Carolina indagou do
escravo que lhe trouxera a carta o modo por que lhe havia chegado às mãos. O
escravo respondeu que um moleque lha entregara à porta. Lúcia deu ordem para
que não recebesse cartas que viessem pelo mesmo portador.
Mas no dia seguinte uma nova carta de
Fernando chegou às mãos de Carolina. Outro portador a entregara.
Nessa carta Fernando pintava com cores negras
a situação em que se achava e pedia dois minutos de entrevista com Carolina.
Carolina hesitou, mas releu a carta; ela
parecia tão desesperada e dolorosa, que a pobre moça, em quem falava um resto
de amor por Fernando, respondeu afirmativamente.
Ia mandar a resposta, mas de novo hesitou e
rasgou o bilhete, protestando fazer o mesmo a quantas cartas chegassem.
Durante os cinco dias seguintes vieram cinco
cartas, uma por dia, mas todas ficaram sem resposta, como as anteriores.
Enfim, na noite do quarto dia, Carolina
achava-se no gabinete de trabalho, quando assomou à janela que dava para o
jardim a figura de Fernando.
A moça deu um grito e recuou.
— Não grite! disse o moço em voz baixa, podem
ouvir...
— Mas, fuja! fuja!
— Não! quis vir de propósito, a fim de saber
se deveras não me amas, se esqueceste aqueles juramentos...
— Não devo amá-lo!...
— Não deve! Que tem o dever conosco?
— Vou chamar alguém! Fuja! Fuja!
Fernando saltou para o quarto.
— Não, não hás de chamar!
A moça correu para a porta. Fernando
travou-lhe do braço.
— Que é isso? disse ele; amo-te tanto, e tu
foges de mim? Quem impede a nossa felicidade?
— Quem? Meu marido!
— Seu marido! Que temos nós com ele? Ele...
Carolina pareceu adivinhar um pensamento
sinistro em Fernando e tapou os ouvidos. Nesse momento abriu-se a porta e
apareceu Lúcia.
Fernando não pôde afrontar a presença da
moça. Correu para a janela e saltou para o jardim.
Lúcia, que ouvira as últimas palavras dos
dois, correu a abraçar a amiga, exclamando:
— Muito bem! muito bem!
Dias depois Mendonça e Carolina saíram para
uma viagem de um ano. Carolina escrevia o seguinte a Lúcia:
Deixo-te, minha Lúcia, mas assim é preciso.
Amei Fernando, e não sei se o amo agora, apesar do ato covarde que praticou.
Mas eu não quero expor-me a um crime. Se o meu casamento é um túmulo, nem por
isso posso deixar de respeitá-lo. Reza por mim e pede a Deus que te faça feliz.
Foi para estas almas corajosas e honradas que
se fez a bem-aventurança.
CAPÍTULO 4: CARLOTA E HORTÊNCIA
Uma fila de cinquenta carros com um coche
fúnebre à frente dirigia-se para um dos cemitérios da capital.
O carro funerário conduzia o cadáver de
Carlota Durval, senhora de vinte e oito anos, morta no esplendor da beleza.
Os que acompanhavam o enterro, apenas dois o
faziam por estima à finada: eram Luís Patrício e Valadares.
Os mais iam por satisfazer a vaidade do
viúvo, um José Durval, homem de trinta e seis anos, dono de cinco prédios e de
uma dose de fatuidade sem igual.
Valadares e Patrício, na qualidade de amigos
da finada, eram os únicos que traduziam no rosto a profunda tristeza do
coração. Os outros levavam uma cara de tristeza oficial.
Valadares e Patrício iam no mesmo carro.
— Até que morreu a pobre senhora, disse o
primeiro ao fim de algum silêncio.
— Coitada! murmurou o outro.
— Na flor da idade, acrescentava o primeiro,
mãe de duas crianças tão bonitas, amadas por todos... Deus perdoe aos culpados!
— Ao culpado, que foi só ele. Quanto à outra,
essa se não fora desinquietada...
— Tens razão!
— Mas ele deve ter remorsos.
— Quais remorsos! É incapaz de os ter. Não o
conheces, como eu? Ri e zomba de tudo. Isto para ele foi apenas um acidente;
não lhe dá maior importância, acredita.
Este pequeno diálogo dá já ao leitor uma ideia
dos acontecimentos que precederam à morte de Carlota.
Como esses acontecimentos são o objeto destas
linhas destinadas a apresentar o perfil desta quarta mulher, passo a narrá-los
mui sucintamente.
Carlota casara com vinte e dois anos. Não sei
por que se apaixonara por José Durval, e menos ainda no tempo de solteira, de
que depois de casada. O marido era para Carlota um ídolo. Só a ideia de uma
infidelidade da parte dele bastava para matá-la.
Viveram algum tempo no meio da mais perfeita
paz, não que ele não desse à mulher motivos de desgosto, mas porque eram estes
tão encobertos que nunca haviam chegado aos ouvidos da pobre moça.
Um ano antes Hortência B., amiga de Carlota,
separava-se do marido. Dizia-se que era por motivos de infidelidade conjugal da
parte dele; mas ainda que o não fosse, Carlota receberia a amiga em sua casa,
tão amiga era dela.
Carlota compreendia as dores que podiam
trazer a uma mulher as infidelidades do marido; por isso recebeu Hortência com
os braços abertos e entusiasmo no coração.
Era o mesmo que se uma rosa abrisse o seio
confiante a um inseto venenoso.
Daí a seis meses Carlota reconhecia o mal que
tinha feito. Mas era tarde.
Hortência era amante de José Durval.
Quando Carlota descobriu qual era a situação
de Hortência em relação a ela, sufocou um grito. Era a um tempo, ciúme,
desprezo, vergonha. Se alguma coisa podia atenuar a dor que ela sentia, era a
covardia do ato de Hortência, que tão mal pagava a hospitalidade que obtivera
de Carlota.
Mas o marido? Não era igualmente culpado?
Carlota avaliou de um relance toda a hediondez do proceder de ambos, e resolveu
romper um dia.
A frieza que começou a manifestar a
Hortência, mais do que isso, a repugnância e o desdém com que a tratava,
despertou no espírito desta a ideia de que era preciso sair de uma situação tão
falsa.
Todavia, retirar-se simplesmente seria
confessar o crime. Hortência dissimulou e um dia recriminou a Carlota os seus
modos recentes de tratamento.
Então tudo se clareou.
Carlota, com uma cólera sufocada, lançou em
rosto à amiga o procedimento que tivera em casa dela. Hortência negou, mas era
negar confessando, pois que nenhum tom de sinceridade tinha a sua voz.
Depois disso era necessário sair. Hortência,
negando sempre o crime de que era acusada, declarou que sairia de casa.
— Mas isso não desmente, nem remedia nada,
disse Carlota com os lábios trêmulos. É simplesmente mudar o teatro das suas
loucuras.
Esta cena abalou a saúde de Carlota. No dia
seguinte amanheceu doente. Hortência apareceu para falar-lhe, mas ela voltou o
rosto para a parede. Hortência não voltou ao quarto, mas também não saiu da
casa. José Durval impôs essa condição.
— Que dirá o mundo? perguntava ele.
A pobre mulher foi obrigada a sofrer mais
essa humilhação.
A doença foi rápida e benéfica, porque no fim
de quinze dias Carlota expirava.
Os leitores já assistiram ao enterro dela.
Quanto a Hortência, continuou a viver em casa
de José Durval, até que se passassem os primeiros seis meses do luto, no fim
dos quais casaram-se perante um concurso numeroso de amigos, ou pessoas que se
davam por isso.
Supondo que os leitores terão curiosidade de
saber o que sucedeu depois, aqui termino com uma carta escrita, depois de dois
anos da morte de Carlota, por Valadares a L. Patrício.
Meu amigo. Corte, 12 de... — Vou dar-te
algumas notícias que te hão de alegrar, como a mim, posto que a caridade
evangélica nos manda lastimar as desgraças alheias. Mas há certas desgraças que
parecem um castigo do céu e a alma sente-se satisfeita quando vê o crime
punido.
Lembras-te ainda da pobre Carlota Durval,
morta de desgosto pela traição do marido e de Hortência? Sabes que esta ficou a
viver em casa do viúvo, e que no fim de seis meses casaram-se à face da Igreja,
como duas criaturas abençoadas do céu? Pois bem, ninguém as faça que as não
pague; Durval está mais do que nunca arrependido do passo que deu.
Primeiramente, ao passo que a pobre Carlota
era uma pomba sem fel, Hortência é um dragão de saias, que não deixa o marido
pôr pé em ramo verde. São exigências de toda a casta, exigências de luxo, exigências
de honra, porque a fortuna de Durval não podendo resistir aos ataques de
Hortência, foi-se desmoronando a pouco e pouco.
Os desgostos envelheceram o pobre José
Durval. Mas se fosse apenas isso, era de agradecer a Deus. O caso, porém,
tornou-se pior; Hortência, que traíra a amiga, não teve dúvida em trair o
marido: Hortência tem hoje um amante!
É realmente triste semelhante coisa, mas eu
não sei por que esfreguei as mãos de contente quando soube da infidelidade de
Hortência. Parece que as cinzas da Carlota deviam estremecer de alegria debaixo
da terra...
Perdoe-me Deus a blasfêmia, se acaso o é.
Julguei que estas notícias te seriam
agradáveis, a ti que estimastes aquela pobre mártir.
Ia acabando sem contar a cena que houve entre
Durval e a mulher.
Um bilhete mandado por H. (o amante) caiu nas
mãos de José Durval, não sei por que terrível acaso. Houve explosão da parte do
marido; mas o infeliz não tinha forças para manter-se na sua posição; dois
gritos e dois sorrisos da mulher puseram-lhe água fria na cólera.
Daí em diante, Durval anda triste,
cabisbaixo, taciturno. Emagrece a olhos vistos. Pobre homem! afinal de contas
começo a ter pena...
Adeus, meu caro, vai cultivando, etc...
Esta carta era dirigida a Campos, onde se
achava L. Patrício. A resposta deste foi a seguinte:
Muito me contas, meu amigo Valadares, acerca
dos algozes da Carlota. É uma pagã, não deixes de crê-lo, mas no que fazes mal,
é em mostrares alegria por essa desgraça. Nem devemos tê-la, nem as cinzas de
Carlota se regozijaram no outro mundo. Os maus, no fim de conta, são dignos de
lástima, por serem tão fracos que não possam ser bons. E basta a punição para
ficarmos já condoídos do pobre homem.
Falemos de outra coisa. Sabes que os cafezais...
Não interessa aos leitores saber dos cafezais
de L. Patrício.
O que interessa saber é que Durval morreu de
desgosto dentro de pouco tempo, e que Hortência procurou na devoção de uma
velhice prematura a expiação dos erros passados.
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