Chico
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Um dia o Chico, moço muito serviçal, muito
amigo do seu amigo, foi chamado à casa do Dr. Miranda, que o conhecia desde
pequeno, e abusava sempre do seu caráter obsequioso e humilde.
— Mandei-te chamar, meu rapaz, para te
incumbir de uma comissão que só tu poderás desempenhar a meu gosto.
— Estou às suas ordens.
— Conheces a Maricota, minha irmã. É uma tola
que, em rapariga, enjeitou bons casamentos, sempre à espera de um príncipe,
como nos contos de fadas, e agora, que vai caminhando a passos agigantados para
os quarenta, embeiçou-se por um tipo que costuma passar cá por casa e nem ela,
nem eu, sabemos quem é.
— Ele chama-se?...
— Alexandrino Pimentel. É o nome com que
assinou a carta, assaz lacônica, em que declarou à Maricota que a amava e
desejava ser seu esposo. Já me disseram — e é tudo quanto sei a seu respeito —
que esteve empregado na estrada de ferro, onde não esquentou lugar. Preciso de
mais amplas e completas informações a respeito desse indivíduo e, para
obtê-las, lembrei-me de ti que és esperto e conheces meio mundo.
O Chico dissimulou uma careta.
— Minha irmã, continuou o Dr. Miranda, já fez
37 anos, mas é minha irmã, e eu, como chefe de família, farei o possível para
evitar que ela se ligue a um homem que não seja um homem de bem, não achas?
— Certamente.
— Portanto, meu rapaz, peço-te que indagues e
me venhas dizer quem é, ao certo, esse Alexandrino Pimentel, que quer ser meu
cunhado. Peço-te igualmente que desempenhes essa comissão com a brevidade
possível, pois uma senhora de 37 anos, quando lhe falam em casamento, fica assanhada
que nem um macaco a quem se mostra uma banana.
O Chico pôs-se a coçar a cabeça e não disse
nada. Bem sabia quanto era espinhosa tal comissão, mas não tinha forças para
recusar os seus serviços a pessoa alguma, e muito menos ao Dr. Miranda, que era
o seu médico, já o havia sido de seus pais e nunca lhes mandara a conta.
— Está dito?
— Está dito. Vou indagar quem é o tal
Alexandrino Pimentel, e pode contar que dentro de três ou quatro dias terá os
esclarecimentos que deseja.
No mesmo dia, o Chico foi ter com um velho
camarada, empregado antigo da Central, e perguntou-lhe se conhecia um sujeito
que ali tinha estado algum tempo, chamado Alexandrino Pimentel.
— Um bêbado! — respondeu prontamente o outro.
— Bêbado?
— Bêbado, sim! Foi por isso que o Passos o pôs
na rua!
— Mas não se terá corrigido?
— Não sei; nunca mais ouvi falar nele. Quem
te pode informar com segurança é o Trancoso. — Sim, que ele era casado com a
filha do Trancoso, por sinal que não se dava com o sogro.
— Casado?
— Casado, sim!
— Quem é esse Trancoso?
— Um ex-colega meu, aposentado há uns quatro
anos. Mora lá para os lados de Inhaúma.
— Podes dar-me um bilhete de apresentação
para ele?
— Pois não!
No dia seguinte o Chico estava em Inhaúma, à
procura do tal Trancoso, que já lá não morava; havia seis meses que se mudara
para Copacabana, onde adquirira uma casinha; entretanto o pobre rapaz não
esmoreceu diante de uma tremenda maçada, e no outro dia, depois de duas horas
de indagações, batia à porta do Trancoso.
Veio abrir-lha um velho asmático, envolvido
numa capa, lenço de seda ao pescoço, carapuça enterrada até às orelhas, barba
por fazer, cara de poucos amigos.
Quando o Chico pronunciou o nome de
Alexandrino Pimentel, o velho enfureceu-se, gritando que nada tinha de comum
com "esse bandido"!
— Mas não é ele seu genro?
— Foi por desgraça minha, mas já o não é,
pois deu tantos desgostos à minha filha, que a matou!
— Eu desejava apenas tomar algumas
informações a respeito desse homem. Trata-se de coisa grave. Ele pretende
casar-se em segundas núpcias, e foi a família da noiva que me pediu para...
— Pois, meu caro senhor, as informações que
lhe tenho a dar são as seguintes: o sujeito de quem se trata é malandro,
bêbado, devasso jogador e bruto. Bruto a ponto de bater, como batia na sua
própria mulher! Se a tal senhora, com quem ele se pretende casar, quiser passar
fome e ser armazém de pancada, não poderá escolher melhor! E agora, meu caro
amigo, que tem as informações que desejava, passe muito bem! Deixe-me em paz,
porque sou doente, e as visitas aborrecem-me!...
Dizendo isto, o velho foi empurrando o Chico
para a porta da rua.
Este saiu perfeitamente edificado a respeito
de Alexandrino Pimentel, mas, ao ar livre, refletiu que todas essas
informações, partindo de um homem tão apaixonado e tão grosseiro, poderiam ser,
pelo menos até certo ponto, injustas; por isso pôs-se de novo em campo e,
indaga daqui, pergunta dacolá, chegou, depois de conversar com dez ou doze
pessoas fidedignas, à firme convicção de que tudo aquilo era a pura expressão
da verdade.
Essas pesquisas tomaram-lhe mais tempo do que
três ou quatro dias dentro dos quais prometera voltar à casa do Dr. Miranda.
Quando voltou, já os amores de Maricota e Alexandrino haviam assumido
proporções consideráveis, e o Dr. Miranda tinha revelado à irmã que o
obsequioso Chico se incumbira de tomar informações a respeito do pretendente.
— Que diabo! Julguei que você não me
aparecesse mais, — exclamou o médico ao ver então o seu cliente gratuito.
— A coisa deu mais trabalho do que eu
supunha, e eu não quis fazer nada no ar. Trago-lhe informações seguras!
— Boas ou más?
— Péssimas.
O Dr. Miranda chamou a irmã, que acudiu logo.
— Olha, Maricota, aqui tens o Chico; vai
dizer-nos quem e o teu Pimentel.
— Pois diga! — resmungou Maricota com um
olhar zangado, adivinhando os horrores trazidos pelo Chico.
Este voltou-se para o Dr. Miranda e
disse-lhe:
— O senhor coloca-me numa situação difícil.
Julguei que isto não passasse de nós dois, mas agora, em presença de D.
Maricota, sinto-me acanhado e receoso, porque não posso dizer senão a verdade,
e a verdade é muito desagradável.
— Minha irmã é a principal interessada neste
assunto, redarguiu o doutor, e deve até agradecer-lhe o trabalho que você teve
com esse inquérito. O seu dever de amigo está cumprido; ela que o ouça e faça o
que entender; é senhora das suas ações.
O Chico, arrependido já de se haver metido
naquele incidente de família, contou minuciosamente as diligências que fizera e
o resultado a que chegara.
Quando ele acabou o relatório:
— Tudo isso é calúnia, calúnia, calúnia
torpe! — bradou Maricota, fula de raiva e batendo o pé. — E quando seja
verdade, gosto dele. Ele gosta de mim, e havemos de ser um do outro, venha
embora o mundo abaixo!
Não houve palavras que a convencessem de que
tal casamento seria um desastre. Diante da vergonha, com que ela ameaçou o
irmão de sair de casa para ir ter com o seu amado, o Dr. Miranda curvou a
cabeça, e o casamento fez-se.
Fez-se, e não há notícia de casal mais
venturoso!
Alexandrino, que se empregara numa importante
casa comercial, era um marido solícito, dedicado, carinhoso e previdente; não
ia a passeio ou a divertimento sem levar Maricota; não bebia senão água; não
jogava senão a bisca em família — e todas essas virtudes eram naturalmente
realçadas pela terrível perspectiva de que ele seria o contrário.
— Maricota apanhou a sorte grande! — diziam
os amigos e parentes, inclusive o Dr. Miranda.
Este, desde que as virtudes do cunhado se
manifestaram, começou a tratar com frieza o informante.
O pobre Chico perdeu o amigo e o médico, foi
odiado por Maricota por ter pretendido frustrar a sua aventura, e o regenerado
Pimentel, quando soube da comissão que ele desempenhara, segurou-o um dia com
as duas mãos pela gola do casaco, e sacudiu-o dizendo-lhe:
— Eu devia quebrar-te a cara, miserável, mas
perdoo-te, porque és um desgraçado!.
Moralidade do conto: ninguém se meta na vida
alheia, principalmente quando se trate de evitar um casamento serôdio.
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