Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
CAPÍTULO 1
Se alguma das minhas
leitoras morasse na Rua de São Pedro da cidade nova, há coisa de quinze anos, e
estivesse à janela na noite de 16 de março, entre uma e duas horas, teria
ocasião de presenciar um caso extraordinário.
Morava ali, entre a
Rua Formosa e a Rua das Flores, uma moça de vinte e dois anos, bonita como
todas as heroínas de romances e contos, a qual moça na sobredita noite de 16 de
março, entre uma e duas horas, levantou-se da cama e a passo lento foi até à
sala com uma luz na mão.
Não estando as janelas
fechadas, a leitora, caso morasse defronte, veria a nossa heroína pousar a vela
sobre um aparador, abrir um álbum, tirar um retrato, que não saberia se era de
homem ou de mulher, mas que eu lhe afirmo ser de mulher.
Tirado o retrato do
álbum, pegou a moça na vela, desceu a escada, abriu a porta da rua e saiu. A
leitora ficaria naturalmente assombrada com tudo isto; mas que não diria quando
a visse seguir pela rua acima, voltar a das Flores, ir até à do Conde, e parar
à porta de uma casa?
Justamente à janela
dessa casa estava um homem, rapaz ainda, vinte e sete anos, olhando para as
estrelas e fumando um charuto.
A moça parou.
O moço espantou-se do
caso, e vendo que ela parecia querer entrar, desceu a escada, com uma vela
acesa e abriu a porta.
A moça entrou.
— Isabel! exclamou o
rapaz deixando cair a vela no chão.
Ficaram às escuras no
corredor. Felizmente trazia o moço fósforos na algibeira, acendeu outra vez a
vela e fitou os olhos na recém-chegada.
Isabel (tal era o seu
verdadeiro nome) estendeu o retrato ao rapaz, sem dizer palavra, com os olhos
fitos no ar.
O rapaz não pegou logo
no retrato.
— Isabel! exclamou ele
outra vez mas já com a voz sumida.
A moça deixou cair o
retrato no chão, voltou as costas e saiu. O dono da casa ainda mais aterrado
ficou.
— Que é isto? dizia
ele; estará louca?
Pôs a vela sobre um
degrau da escada, saiu à rua, fechou a porta e seguiu lentamente atrás de
Isabel, que foi pelo mesmo caminho até entrar em casa.
O mancebo respirou
quando viu Isabel entrar na casa; mas ficou ali alguns instantes, a olhar para
a porta, sem nada compreender e ansioso por que chegasse o dia. Todavia era
forçoso voltar para a Rua do Conde; lançou um último olhar às janelas da casa e
retirou-se.
Ao entrar em casa
apanhou o retrato.
— Luísa! disse ele.
Esfregou os olhos como
se duvidasse do que via, e ficou parado na escada a olhar largos minutos para o
retrato.
Era preciso subir.
Subiu.
— Que quererá isto
dizer? disse ele já em voz alta como se falasse a alguém. Que audácia foi essa
de Isabel? Como é que uma moça, filha de família, sai assim de noite para...
Mas estarei eu sonhando?
Examinou o retrato, e
viu que tinha nas costas as seguintes linhas:
À minha querida amiga
Isabel, como lembrança de eterna amizade. Luísa.
Júlio (era o nome do
rapaz) não pôde descobrir nada por mais que parafusasse, e parafusou muito
tempo, já deitado no sofá da sala, já encostado à janela.
E na verdade quem
seria capaz de descobrir o mistério daquela visita a semelhante hora? Tudo parecia
antes uma cena de drama ou romance tétrico, do que um ato natural da vida.
O retrato... O retrato
tinha certa explicação. Júlio andava quinze dias antes a trocar cartas com o
original, a formosa Luísa, moradora no Rocio Pequeno, hoje Praça Onze de junho.
Todavia, por mais
agradável que lhe fosse receber o retrato de Luísa, como admitir a maneira por
que lho levaram, e a pessoa, e a hora, e as circunstâncias?
— Sonho ou estou
doido! concluiu Júlio depois de longo tempo.
E chegando à janela, acendeu
outro charuto.
Nova surpresa o
esperava.
Vejamos qual foi ela.
CAPÍTULO
2
Não havia fumado ainda
uma terça parte do charuto, quando viu dobrar a esquina um vulto de mulher,
caminhando lentamente, e parar à porta da casa dele.
— Outra vez! exclamou
Júlio. Quis descer logo; mas as pernas começavam a tremer-lhe. Júlio não era
tipo de extrema valentia; creio até que se lhe chamarmos medroso não estaremos
longe da verdade.
O vulto, entretanto,
estava à porta; era forçoso tirá-lo dali, a fim de evitar um escândalo.
“Desta vez, pensou ele
pegando na vela, hei de interrogá-la; não a deixo sair sem me dizer o que há.
Infeliz. Parece-me que está doida!”
Desceu; abriu a porta.
— Luísa! exclamou.
A moça estendeu-lhe um
retrato; Júlio pegou nele com ânsia e murmurou consigo: “Isabel!”
Era efetivamente o
retrato da primeira moça que a segunda lhe trazia. Não será preciso dizer ou
repetir que Júlio namorava também a Isabel, e a leitora compreende facilmente
que tendo ambas descoberto o segredo uma da outra, ambas foram mostrar ao
namorado que estavam cientes da sua duplicidade.
Mas por que motivo
tais coisas se davam assim revestidas de circunstâncias singulares e
tenebrosas?
Não era mais natural
mandarem-lhe os retratos dentro de uma sobrecarta?
Tais eram as reflexões
que Júlio fazia, com o retrato numa das mãos e a vela na outra, enquanto já de
volta entrava em casa.
Não será preciso dizer
que o nosso Júlio não dormiu o resto da noite. Chegou a ir à cama e a fechar os
olhos; tinha o corpo moído e necessidade de sono; mas a imaginação velava, e a
madrugada veio achá-lo acordado e aflito.
No dia seguinte foi
visitar Isabel; achou-a triste; falou-lhe; mas quando quis dizer-lhe alguma
coisa do sucesso, a moça afastou-se dele, talvez porque adivinhasse o que ia
ele dizer-lhe, talvez, porque já estivesse aborrecida de o ouvir.
Júlio foi à casa de
Luísa, achou-a no mesmo estado, as mesmas circunstâncias se deram.
“É claro que
descobriram o segredo uma da outra, dizia ele consigo. Não há remédio senão
desfazer a má impressão de ambas. Mas como se me não querem ouvir? Ao mesmo
tempo desejava explicação do ato atrevido que ontem praticaram, salvo se foi
sonho meu, o que é bem possível. Ou então estarei doido...”
Antes de ir adiante, e
não será longe porque a história é pequena, convém dizer que este Júlio não
tinha paixão real por nenhuma das duas moças. Começou o namoro com Isabel por
ocasião de uma ceia de Natal, e travou relações com a família que o recebera
muito bem. Isabel correspondeu um pouco ao namoro de Júlio, sem todavia lhe dar
grandes esperanças porque então andava também à corda de um oficial do exército
que teve de embarcar para o Sul. Só depois que ele embarcou foi que Isabel de
todo se voltou para Júlio.
Ora, o nosso Júlio já
então lançara as suas baterias contra a outra fortaleza, a formosa Luísa, amiga
de Isabel, e que desde princípio aceitou o namoro com ambas as mãos.
Nem por isso rejeitou
a corda que lhe dava Isabel; manteve-se entre as duas sem saber qual delas
devia preferir. O coração não tinha a este respeito opinião assentada. Júlio
não amava, repito; era incapaz de amar... Seu fim era casar com uma moça
bonita; ambas o eram, restava-lhe saber qual delas lhe convinha mais.
As duas moças, como
vimos pelos retratos, eram amigas, mas falavam-se de longe em longe, sem que
nessas poucas vezes houvessem comunicado os segredos atuais do seu coração.
Ocorreria isso agora e seria essa a explicação da cena dos retratos? Júlio
pensou efetivamente que elas haviam enfim comunicado o seu namoro com ele; mas
custava-lhe a crer que tão atrevidas fossem ambas, que saíssem da casa naquela
singular noite. À proporção que o tempo se passava, Júlio inclinava-se a crer
que o fato não passasse de uma ilusão sua.
Júlio escreveu uma carta
a cada uma das duas moças, quase do mesmo teor, pedindo a explicação da frieza
que ambas ultimamente lhe mostravam. Cada uma das cartas terminava perguntando
“se era tão cruelmente que se devia pagar um amor único e delirante”.
Não teve resposta
imediatamente como esperava, mas dois dias depois, não do mesmo teor, mas no
mesmo sentido.
Ambas lhe diziam que
pusesse a mão na consciência.
“Não há dúvida, pensou
ele consigo, estou pilhado. Como sairei eu desta situação?”
Júlio resolveu atacar
verbalmente as duas fortalezas.
— Isto de cartas não é
bom recurso para mim, disse ele; encaremos o inimigo; é mais seguro.
Escolheu Isabel em
primeiro lugar. Haviam já passado seis ou sete dias depois da cena noturna.
Júlio preparou-se mentalmente com todas as armas necessárias ao ataque e à
defesa e dirigiu-se para casa de Isabel, que era como sabemos na Rua de São
Pedro.
Foi-lhe difícil
achar-se a sós com a moça; porque a moça que das outras vezes era a primeira a
buscar ocasião de lhe falar, agora esquivava-se a isso. O rapaz entretanto era
teimoso; tanto fez que pôde pilhá-la numa janela, e ali ex
abrupto disparou-lhe esta
pergunta:
— Não me dará a
explicação dos seus modos de hoje e da carta com que respondeu à minha última?
Isabel calou-se.
Júlio repetiu a
pergunta, mas já com um tom que exigia resposta imediata. Isabel fez um gesto
de aborrecimento e disse:
— Respondo o que lhe
disse na carta; ponha a mão na consciência.
— Mas que fiz eu
então?
Isabel sorriu-se com
um ar de lástima.
— O que fez? perguntou
ela.
— Sim, o que fiz?
— Deveras, ignora?
— Quer que lhe jure?
— Queria ver isto...
— Isabel, essas
palavras!...
— São dum coração
ofendido, interrompeu a moça com amargura. O senhor ama a outra.
— Eu?...
Aqui desisto de descrever
o gesto de espanto de Júlio; a pena nunca o poderia fazer, nem talvez o pincel.
Era o agente mais natural, mais aparentemente espontâneo que ainda se viu neste
mundo, a tal ponto que a moça vacilou, e atenuou as suas primeiras palavras com
estas:
— Pelo menos, parece...
— Mas como?
— Vi-o olhar com certo
ar para a Luísa, quando outro dia ela aqui esteve...
— Nego.
— Nega? Pois bem; mas
negará também que, vendo o retrato dela, no meu álbum, me disse: É tão bonita
esta moça!
— Pode ser que o dissesse;
creio até que o disse... Há coisa de oito dias; mas que prova isso?
— Não sei se prova
muito mas em todo o caso foi bastante para fazer doer a um coração amante.
— Acredito, observou
Júlio; seria porém bastante para o audacioso passo que deu?
— Que passo? perguntou
Isabel abrindo muito os olhos.
Júlio ia explicar as
suas palavras, quando um primo de Isabel se aproximou do grupo e a conversa
ficou interrompida.
Não foi porém sem
algum resultado o pouco tempo em que falaram, porque ao despedir-se Júlio no
fim da noite, Isabel apertou-lhe a mão com certa força, indício certo de que as
pazes estavam feitas.
— Agora a outra, disse
ele saindo da casa de Isabel.
CAPÍTULO
3
Luísa estava ainda
como Isabel, fria e reservada para com ele. Parece, entretanto, que suspirava
por lhe falar; foi ela a primeira que procurou uma ocasião de ficar a sós com
ele.
— Já estará menos
cruel comigo? perguntou Júlio.
— Oh! não.
— Mas que lhe fiz eu?
— Pensa então que eu
sou cega? perguntou-lhe Luísa com olhos indignados; pensa que eu não vejo as
coisas?
— Mas que coisas?
— O senhor anda de
namoro com a Isabel.
— Oh! que ideia!
— Original, não é?
— Originalíssima! Como
descobriu semelhante coisa? Conheço aquela moça há muito tempo, temos intimidade,
mas não a namoro nem tal ideia tive, nunca na minha vida.
— É por isso que lhe
deita uns olhos tão ternos?...
Júlio levantou os
ombros com um ar tão desdenhoso que a moça acreditou logo nele. Não deixou de
lhe dizer, como a outra lhe dissera:
— Mas para que olhou
outro dia com tanta admiração para o retrato dela, dizendo até com um suspiro:
Que moça gentil!
— É verdade isso,
menos o suspiro, respondeu Júlio; mas onde está o mal em achar uma moça bonita,
se nenhuma me parece mais bonita que você, e sobretudo nenhuma é capaz de me
prender como você?
Júlio disse ainda
muito mais por este teor velho e gasto, mas de efeito certo; a moça
estendeu-lhe a mão dizendo:
— Então era engano
meu?
— Oh! meu anjo! engano
profundo!
— Está perdoado... com
uma condição.
— Qual?
— É que não há de cair
em outra.
— Mas se eu não caí
nesta!
— Jure sempre.
— Pois juro... com uma
condição.
— Diga.
— Por que razão não
tendo plena certeza de que eu amava a outra (e se a tivesse não me falava mais
decerto), por que razão, pergunto eu, foi você naquela noite...
— O chá está na mesa;
vamos tomar chá! disse a mãe de Luísa aproximando-se do grupo.
Era forçoso obedecer;
e nessa noite não houve mais ocasião de explicar o caso.
Nem por isso Júlio saiu
menos contente da casa de Luísa.
“Estão ambas vencidas
e convencidas, disse ele consigo; agora é preciso escolher e acabar com isto.”
Aqui é que estava a
dificuldade. Já sabemos que ambas eram igualmente belas, e Júlio não procurava
outra condição. Não era fácil escolher entre duas criaturas igualmente
dispostas para ele.
Nenhuma delas tinha
dinheiro, condição que podia fazer pender a balança posto que Júlio fosse
indiferente nesse ponto. Tanto Luísa como Isabel eram filhas de funcionários
públicos que apenas lhes deixavam um escasso montepio. Sem uma forte razão que
fizesse pender a balança, era difícil a escolha naquela situação.
Alguma leitora dirá
que por isso mesmo que eram de igual condição e que ele as não amava de
coração, era fácil a escolha. Bastava-lhe fechar os olhos e agarrar a primeira
que lhe ficasse à mão.
Erro manifesto.
Júlio podia e era
capaz de fazer isso. Mas no mesmo instante que escolhesse Isabel ficava com
pena de não ter escolhido Luísa, e vice-versa, donde se vê que a situação era
para ele intricada.
Mais de uma vez
levantou-se ele da cama com a resolução assentada:
— Vou pedir a mão da
Luísa.
A resolução durava-lhe
só até o almoço. Acabado o almoço, ia ver (pela última vez) Isabel e logo
afrouxava com pena de a perder.
“Há de ser esta!”
pensava ele.
E logo lembrava-se de
Luísa e não escolhia nem uma nem outra.
Tal era a situação do
nosso Júlio, quando se deu a cena que passo a referir no capítulo seguinte.
CAPÍTULO 4
Três dias depois da
conversa de Júlio com Luísa, foi esta passar o dia em casa de Isabel,
acompanhada de sua mãe.
A mãe de Luísa era de
opinião que a filha era o seu retrato vivo, coisa que ninguém acreditava por
mais que ela o repetisse. A mãe de Isabel não ousava ir tão longe mas afirmava
que, no tempo de sua mocidade, fora ela muito parecida com Isabel. Esta opinião
era recebida com incredulidade pelos rapazes e com resistência pelos velhos.
Até o major Soares, que fora o primeiro namorado da mãe de Isabel, insinuava
que essa opinião devia ser recebida com extrema reserva.
Oxalá porém fossem as
duas moças como suas mães eram, dois corações de pomba, que amavam
estremecidamente as filhas, e que eram com justiça dois tipos de austeridade
conjugal.
As duas velhas
entregaram-se às suas conversas e considerações sobre arranjos de casa ou
assuntos de pessoas conhecidas, enquanto as duas moças tratavam de modas,
músicas, e um pouco de amores.
— Então o teu tenente
não volta do Sul? disse Luísa.
— Eu sei! Parece que
não.
— Tens saudades dele?
— E terá ele saudades
de mim?
— Isso é verdade.
Todos esses homens são assim, disse Luísa com convicção; muita festa quando se
acham presentes, mas ausentes são temíveis... valem tanto como o nome que se
escreve na areia: vem a água e lambe tudo.
— Bravo, Luísa! Estás
poeta! exclamou Isabel. Já falas em areias do mar!
— Pois olha, não
namoro nenhum poeta nem homem do mar.
— Quem sabe?
— Sei eu.
— É então?...
— Um rapaz que tu
conheces!
— Já sei, é o Avelar.
— Deus nos acuda! exclamou
Luísa. Um homem vesgo.
— O Rocha?
— O Rocha anda todo
caído pela Josefina.
— Sim?
— É uma lástima.
— Nasceram um para o
outro.
— Sim, ela é uma
moleirona como ele.
As duas moças gastaram
assim algum tempo a tasquinhar na pele de pessoas que nós não conhecemos nem
precisamos disso, até que voltaram ao assunto capital da conversa.
— Já vejo que não pode
adivinhar quem é o meu namorado, disse Luísa.
— Nem você o meu,
observou Isabel.
— Bravo! então o
tenente...
— O tenente está pagando.
É muito natural que as rio-grandenses o tenham encantado. Pois aguente-se...
Enquanto Isabel dizia
estas palavras, Luísa ia folheando o álbum de retratos que estava sobre a mesa.
Chegando à folha onde sempre vira o seu retrato, a moça estremeceu. Isabel
notou-lhe o movimento.
— Que é? disse ela.
— Nada, respondeu
Luísa fechando o álbum. Tiraste o meu retrato daqui?
— Ah! exclamou Isabel,
isso é uma história singular. O retrato foi passar às mãos de terceira pessoa,
a qual afirma que fui eu que lho levei alta noite... Ainda não pude descobrir
esse mistério...
Luísa já ouviu de pé
estas palavras. Seus olhos, muito abertos, fitaram-se no rosto da amiga.
— Que é? disse esta.
— Sabes bem o que
estás dizendo?
— Eu?
— Mas isso foi o que
me aconteceu também com o teu retrato... Naturalmente era zombaria comigo e
contigo... Essa pessoa...
— Foi o Júlio Simões,
o meu namorado...
Aqui devia eu pôr uma
linha de pontos para significar o que se não pode pintar, o espanto das duas
amigas, as diferentes expressões que tomou a fisionomia de cada uma delas. Não
tardaram as explicações; as duas rivais reconheceram que o seu namorado comum
era pouco mais ou menos um patife, e que o dever de honra e de coração era
tomar dele uma vingança.
— A prova de que ele
nos enganava uma à outra, observava Isabel, é que os nossos retratos apareceram
lá e foi ele naturalmente quem os tirou.
— Sim, respondeu
Luísa, mas é certo que eu sonhei alguma coisa que combina com a cena que ele
alega.
— Também eu...
— Sim? Eu sonhei que
me haviam falado do namoro dele com você, e que, tirando o retrato do álbum,
fora levá-lo à casa dele.
— Não é possível!
exclamou Isabel. O meu sonho foi quase assim, ao menos no final. Não me
disseram que ele tinha namoro com você; mas eu mesma vi e então fui levar o
retrato...
O espanto aqui foi
ainda maior que da primeira vez. Nem estavam só espantadas as duas amigas;
estavam aterradas. Embalde procuravam explicar a identidade do sonho, e mais
que tudo a coincidência dele com a presença dos retratos em casa de Júlio e a
narração que este fizera da noturna aventura.
Estavam assim nesta
duvidosa e assustadora situação, quando as mães vieram em auxílio delas. As
duas moças, estando à janela, ouviram-lhes dizer:
— Pois é verdade,
minha rica Sra. Anastácia, estou no mesmo caso da senhora. Creio que a minha
filha é sonâmbula, como a sua.
— Tenho uma pena com
isto!
— E eu então!
— Talvez casando-as...
— Sim, pode ser que
banhos de igreja...
Informadas assim as
duas moças da explicação do caso, ficaram um tanto abaladas; mas a ideia de
Júlio e suas travessuras tomou logo o lugar que lhe competia na conversa das
duas rivais.
— Que pelintra!
exclamavam as duas moças. Que velhaco! que pérfido!
O coro de maldições
foi ainda mais longe. Mas tudo acaba neste mundo, principalmente um coro de
maldições; o jantar interrompeu aquele; as duas moças foram de braço dado para
a mesa e afogaram as suas mágoas num prato de sopa.
CAPÍTULO 5
Júlio, sabendo da
visita, não se atreveu a ir encontrar as duas moças juntas. No pé em que as
coisas se achavam era impossível evitar que descobrissem tudo, pensava ele.
No dia seguinte porém
foi de tarde à casa de Isabel, que o recebeu com muita alegria e ternura.
“Bom! pensou o
namorado, nada contaram uma à outra.”
— Engana-se, disse
Isabel adivinhando pela alegria do rosto dele qual era a reflexão que fazia.
Pensa naturalmente que Luísa nada me disse? Disse-me tudo, e eu nada lhe
ocultei...
— Mas...
— Não me queixo do
senhor, continuou Isabel com indignação; queixo-me dela que devia ter percebido
e percebeu o que entre nós havia, e apesar disso aceitou a sua corte.
— Aceitou, não; posso
dizer que fui compelido.
— Sim?
— Agora posso
falar-lhe com franqueza; a sua amiga Luísa é uma namoradeira desenfreada. Eu
sou rapaz; a vaidade, a ideia de passatempo, tudo isso me arrastou, não a
namorá-la, porque eu era incapaz de esquecer a minha formosa Isabel; mas a
perder algum tempo...
— Ingrato!
— Oh! não! nunca,
minha boa Isabel!
Aqui começou uma
renovação de protestos da parte do namorado, que declarou amar mais que nunca a
filha de D. Anastácia.
Para ele a coisa
estava resolvida. Depois da explicação dada e dos termos em que falara da
outra, a escolha natural era Isabel.
Sua ideia foi não
procurar mais a outra. Não o pôde fazer à vista de um bilhete que no fim de
três dias recebeu da moça. Pedia-lhe ela que fosse lá instantemente. Júlio foi.
Luísa recebeu-o com um sorriso triste. Quando puderam falar a sós:
— Quero saber da sua
boca o meu destino, disse ela. Estarei definitivamente condenada?
— Condenada!
— Sejamos francos,
continuou a moça. Eu e a Isabel falamos no senhor; vim a saber que também a
namorava. A sua consciência lhe dirá que praticou um ato indigno. Mas enfim,
pode resgatá-lo com um ato de franqueza. A qual de nós escolhe, a mim ou a ela?
A pergunta era de
atrapalhar o pobre Júlio, nada menos que por duas grandes razões: a primeira
era ter de responder em face; a segunda era ter de responder em face de uma
moça bonita. Hesitou alguns largos minutos. Luísa insistiu; mas ele não se
atrevia a romper o silêncio.
— Bem, disse ela, já
sei que me despreza.
— Eu!
— Não importa; adeus.
Ia a voltar as costas;
Júlio segurou-lhe na mão.
— Oh! não! Pois não vê
que este meu silêncio é de comoção e de confusão. Confunde-me realmente que
descobrisse uma coisa em que eu pouca culpa tive. Namorei-a por passatempo; não
foi Isabel nunca uma rival sua no meu coração. Demais, ela não lhe contou tudo;
naturalmente escondeu a parte em que a culpa lhe cabia. E a culpa é também sua...
— Minha?
— Sem dúvida. Pois não
vê que ela tem interesse em separar-nos?... Se lhe referir, por exemplo, o que
se está passando agora entre nós fique certa de que ela há de inventar alguma
coisa para de todo separar-nos, contando depois com a sua beleza para cativar o
meu coração, como se a beleza de uma Isabel pudesse fazer esquecer a beleza de
uma Luísa.
Júlio ficou satisfeito
com este pequeno discurso, assaz astuto para enganar a moça. Esta, depois de
algum tempo de silêncio, estendeu-lhe a mão:
— Jura-me o que está
dizendo?
— Juro.
— Então será meu?
— Unicamente seu.
Assim celebrou Júlio
os dois tratados de paz, ficando na mesma situação em que se achava
anteriormente. Já sabemos que a sua fatal indecisão era a causa única da crise
em que os acontecimentos o puseram. Era forçoso decidir alguma coisa; e a
ocasião ofereceu-se-lhe propícia.
Perdeu-a, entretanto;
e dado que quisesse casar, e queria, nunca estivera mais longe do casamento.
CAPÍTULO 6
Cerca de seis semanas
foram assim correndo sem resultado algum prático.
Um dia, achando-se em
conversa com um primo de Isabel, perguntou-lhe se teria gosto em vê-lo na
família.
— Muito, respondeu
Fernando (era assim o nome do primo).
Júlio não deu
explicação da pergunta. Instado respondeu:
— Fiz-lhe a pergunta
por uma razão que saberá mais tarde.
— Quererá talvez casar
com alguma das manas?...
— Não posso dizer nada
por ora.
— Olha aqui, Teixeira,
disse Fernando, a um terceiro rapaz, primo de Luísa, e que nessa ocasião se
achava em casa de D. Anastácia.
— Que é? perguntou
Júlio assustado.
— Nada, respondeu
Fernando, vou comunicar ao Teixeira a notícia que o senhor me deu.
— Mas eu...
— É nosso amigo, posso
ser franco. Teixeira, sabe o que me disse o Júlio?
— Que foi?
— Disse-me que vai ser
meu parente.
— Casando com alguma
irmã tua.
— Não sei; mas disse
isso. Não te parece motivo de congratulação?
— Sem dúvida,
concordou Teixeira, é um perfeito cavalheiro.
— São obséquios,
interveio Júlio; e se eu alguma vez alcançasse a fortuna de entrar...
Júlio interrompeu-se;
lembrou-se que Teixeira podia ir contar tudo à prima Luísa, e fosse inibido de
escolher entre ela e Isabel. Os dois quiseram saber o resto; mas Júlio preferiu
convidá-los a jogar o solo, e não houve meio de arrancar-lhe palavra.
A situação porém devia
acabar.
Era impossível
continuar a vacilar entre as duas moças, que ambas lhe queriam muito, e a quem
ele queria com perfeita igualdade não sabendo qual delas escolhesse.
“Sejamos homem, disse
Júlio consigo. Vejamos: qual delas devo ir pedir? A Isabel. Mas a Luísa é tão
bonita! Será a Luísa. Mas é tão formosa a Isabel! Que diabo! Por que razão não
há de uma delas ter um olho furado? ou uma perna torta!”
E depois de algum
tempo:
“Vamos, Sr. Júlio,
dou-lhe três dias para escolher. Não seja tolo. Decida com isto por uma vez.”
E enfim:
“Verdade é que uma
delas há de odiar-me. Mas paciência! fui eu mesmo que me meti nesta embrulhada;
e o ódio de uma moça não pode doer muito. Avante!”
No fim de dois dias
ainda ele não tinha escolhido; recebeu porém uma carta de Fernando concebida
nestes termos:
Meu caro Júlio.
Participo-lhe que
brevemente casarei com a prima Isabel; desde já o convido para a festa; se
soubesse como estou contente! Venha cá para conversarmos.
Fernando.
Não é preciso dizer
que Júlio foi às nuvens. O passo de Isabel simplificava muito a situação dele;
todavia, não queria ser assim despedido como um tolo. Exprimiu a sua cólera por
meio de alguns murros na mesa; Isabel, por isso mesmo que já não a podia
possuir, parecia-lhe agora mais bonita que Luísa.
— Luísa! Pois será
Luísa! exclamou ele. Essa sempre me pareceu muito mais sincera que a outra. Até
chorou, creio eu, no dia da reconciliação.
Saiu nessa mesma tarde
para ir visitar Luísa; no dia seguinte iria pedi-la. Em casa dela foi recebido
como sempre. Teixeira foi o primeiro a dar-lhe um abraço.
— Sabe, disse o primo
de Luísa apontando para a moça, sabe que vai ser a minha noiva?
Não me atrevo a dizer
o que se passou na alma de Júlio; basta dizer que jurou não casar, e que morreu
há pouco casado e com cinco filhos.
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