Casa de Poetas
(Comédia em um ato)
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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PERSONAGENS:
FILGUEIRAS (poeta célebre 35 anos)
DR. CLARIMUNDO (juiz aposentado
52 anos)
LUÍS (seu copeiro 30 anos)
D. MARIANA (sua mulher 45 anos)
CLARINDA (sua filha 18 anos)
A cena representa uma sala de visitas de gente de condição média.
Cortinas nas janelas de frente, à direita, e porta de entrada, ao meio delas. No
1º plano, à esquerda, sofá e cadeiras, sendo uma delas de balanço. As portas
que comunicam com os quartos e com o interior, à esquerda. Ao fundo, janelas
que dão para uma rua lateral. Estão abertas e vê-se um cenário de montanhas,
através das cortinas. Piano, tamborete, estante de música, dunquerques com
bibelots, quadros, tudo disposto do melhor modo. Cinco horas. Abril. Época
atual.
CENA I
Ao erguer-se o pano, o Dr. Clarimundo está sentado na cadeira de
balanço; tem sobre as pernas vários jornais e acaba de beber um copo d’água que
lhe serve o copeiro. Luís está de pé, com a salva na mão. Clarinda, vestida de
branco, com certo gosto e donaire, está a uma janela dos fundos.
CLARIMUNDO (acabando de beber água)
Então, Luís, viste o soneto que
saiu hoje na Gazeta?
LUÍS (categórico, recebendo o copo)
É parnasiano... Não gosto...
CLARIMUNDO (paternalmente)
É boa!... Não gostas... Como se
fosses capaz de fazer melhor!
LUÍS (seguro de si)
Como não sou? Se o doutor visse o
poemeto que fiz hoje...
CLARIMUNDO
Dize lá.
LUÍS (recitando)
O barulho dos pratos.
CLARIMUNDO (esperando)
Como é?
LUÍS (com confiança)
O barulho dos pratos.
CLARIMUNDO (bondoso)
Continua. É inspiração do ofício.
Continua.
LUÍS (recitando)
Na pia os pratos fazem tec-tec,
Ao encontro dos garfos e das
facas.
CLARINDA (voltando-se)
Deixe o rapaz... A poesia perde
todos... Vamos, Luís, continua.
LUÍS (que até então ficara aterrado, continua)
É a sina da gente...
CLARINDA (interrompendo, sem sair da janela)
Vá, Luís, deixa isso para mais
tarde. Vá tratar de pôr a mesa.
LUÍS (obediente e saindo)
A senhora é quem perde... Quem
não sabe a arte não a estima. (Ao sair)
E era uma lindeza!
(Sai o copeiro, Clarimundo volta a ler os jornais e a moça continua na
janela. Pausa).
CENA II
(Clarimundo e Clarinda)
CLARINDA (falando da janela)
Papai, como é ele? É louro? É
alto?
CLARIMUNDO (sem interromper a leitura)
Quem, filha?
CLARINDA (docemente)
O poeta, papai.
CLARIMUNDO (continuando a leitura)
Não é alto, nem baixo; é antes
baixo que alto... Bem: você há de vê-lo.
CLARINDA (na janela ainda)
Virá mesmo, papai?
CLARIMUNDO (deixando cair o jornal, impaciente)
Vem, filha; vem... Espere um
pouco.
CENA III
(Os mesmos e D. Mariana)
D. MARIANA (entrando; é gorda e feia) Você tem cada ideia, “seu” Clarimundo...
Convidar esses poetas; ainda outro dia o tal Romualdo...
CLARIMUNDO (com os olhos no jornal)
Já vem você. Querias que ele te
namorasse, não é?
D. MARIANA (sentando-se)
De certo, não; mas tratar-me assim...
isto é... sem atenção particular, sem uma amabilidade, é demais! Você não diz
que eles gostam das senhoras?
CLARIMUNDO (titubeante e deixando o jornal)
É... sim... As senhoras... É... As
moças, sim.
D. MARIANA (agastada)
Por acaso, eu sou alguma velha
coroca, ou um monstro para que eles fujam de mim? A sinhá Bandeira é mais feia
e velha que eu, e já tem um soneto que lhe foi dedicado. (Categórica) Eu não sou uma velha de oitenta anos!
CLARIMUNDO (irônico)
Você está na flor da idade.
D. MARIANA (irônica)
Não tanto quanto você meu lindo
poeta. (pausa) Ainda por cima, esses tais poetas se fazem esperar... Olhe: o
jantar já está pronto.
CLARIMUNDO (familiar e persuasivo)
Filha, isto não vai assim... Um
homem, como ele, uma notabilidade, um grande poeta, tem direito a essas
atenções.
CLARINDA (chegando-se ao grupo e sentando-se)
Como é o nome do livro dele,
papai?
CLARIMUNDO (como quem se recorda)
Nu... Nuvens... Brumas... Não
sei. Não tenho boa memória.
D. MARIANA (que fora arranjar uns bibelots, ao sentar-se)
É boa! (Ri devagar) É boa!... Você nem sabe o nome do livro! Como é então
que você admira o homem?
CLARIMUNDO (sentencioso)
Mulher, os poetas têm direito à
nossa admiração, mesmo quando não lhes lemos os versos — fique certa disso! Soa
uma campainha.
CLARINDA (erguendo-se precipitada)
Está aí.
(Todos se erguem e Clarimundo vai receber o poeta à porta de entrada).
CENA IV
(Os mesmos e Filgueiras)
CLARIMUNDO (apresentando)
O doutor Filgueiras... Minha
filha e minha mulher.
(Trocam-se os cumprimentos).
FILGUEIRAS (com afetação)
Encantado em conhecê-las.
D. MARIANA (polidamente)
Sente-se, doutor. Deixe-me ver o
seu chapéu, doutor. (Agarra o chapéu e
vai descansá-lo numa cadeira ao fundo enquanto os outros vão sentar-se)
CLARIMUNDO (sentando-se)
Então, doutor, tem feito muitos
versos?
FILGUEIRAS (sentando-se e olhando de soslaio Clarinda, que não cessa de medi-lo da
cabeça aos pés)
Alguma coisa... O doutor sabe, na
nossa terra, não se tem vontade de trabalhar. Não temos recompensa para o nosso
esforço.
D. MARIANA (sentando-se)
Os seus livros são grandes?
FILGUEIRAS (dissimulando o espanto)
Alguns são, minha senhora; outros
não. Não gosto muito das grandes composições, nem dos grandes livros.
CLARINDA (ingênua)
Mas um livro não deve ser
volumoso, grande?
FILGUEIRAS (sorridente)
O que vale não é o peso, é o
conteúdo.
CLARIMUNDO (superior)
Eu também sou como o doutor, não
gosto dos livros grandes. Esse tal Camões...
D. MARIANA (interrompendo)
Como é que você anda sempre com
aquele livrão enorme?
CLARIMUNDO (amolado)
Aquilo é o dicionário, filha.
CLARINDA (ingênua)
Então, o dicionário serve para
fazer versos?
FILGUEIRAS (apressado)
Às vezes, para ver um termo ou
outro. Compreende, a senhora, que nem sempre sabemos...
CLARIMUNDO (interrompendo)
Não sabe o doutor de que poesia
gosto mais?
FILGUEIRAS (com falsa modéstia)
“A tentação de Xenócrates”, do
Bilac.
CLARIMUNDO (expansivo)
Qual isso, qual nada! É de uma
poesia muito pequena.
CLARINDA (com segurança)
É bem bonita... Conhece... É o
“Beijo”.
D. MARIANA (solícita)
Não é aquela que você cortou e
pregou no livro de seu pai. Não é, Clarimundo?
CLARIMUNDO (acudindo)
Esta mesma... Veio até no Malho,
do ano passado.
FILGUEIRAS
De quem é?
CLARIMUNDO
Eulino Breves — conhece?
FILGUEIRAS (com desdém)
Nunca lhe ouvi o nome.
D. MARIANA
É muito bonita! Que lindeza,
doutor! (Para Clarinda) Você não a
sabe de cor?
CLARINDA
Não, mamãe.
CLARIMUNDO
Vá buscar o livro, minha filha,
para o doutor ver.
(Clarinda sai).
CENA V
(Os mesmos, menos Clarinda)
FILGUEIRAS (a Clarimundo)
É essa moça o único filho que o
doutor tem?
D. MARIANA (precipitando-se)
Temos mais um, o Inácio...
FILGUEIRAS
Não tem nenhum gosto pelas artes,
esse seu filho, minha senhora?
CLARIMUNDO (desgostoso)
Qual! É só negócio de remos, tiro
ao alvo, futebol... Um bruto!
D. MARIANA
Qual! Não diga isso, Clarimundo.
É até um rapaz estimado. O Esporte
trouxe o seu retrato e tem tirado dois campeonatos; e só não tirou o deste ano,
porque esteve doente e não pôde cotejar bastante. Quantas medalhas tem ele,
chi! Quando põe tudo aquilo no peito parece até o duque de Caxias! Então, um
rapaz desses é um bruto, doutor?
FILGUEIRAS (distraído)
De certo que não. (Tirando um cigarro) A senhora dá licença
que fume?
D. MARIANA
Pois não, doutor.
FILGUEIRAS
Fumo muito. (Acende o cigarro, vai atirar o palito do fósforo pela janela do fundo,
volta e fica de pé) A tarde está bela, não é doutor? (Clarinda vem entrando) Parece que o céu, de tão fino, quer ficar
transparente e mostrar o seu mistério. (Clarinda
fica a ouvi-lo, calada e admirada)
CENA VI
(Os mesmos e Clarinda)
CLARINDA (entrando)
Está aqui, papai, o livro.
CLARIMUNDO
Dê-me cá. (Põe os óculos e folheia o livro de recortes e poesias manuscritas)
Quer ver uma composição minha, doutor?
FILGUEIRAS
De muita boa vontade.
CLARINDA
Lê aquela, papai: “A Partida”.
D. MARIANA (desdenhosa)
Não sei como você pode gostar de
semelhante coisa... Seu pai, um homem velho, a ter derriços... Ora!
CLARIMUNDO
É poesia, mulher!
FILGUEIRAS
Se a senhora consente, eu pedia
licença para que o doutor lesse.
D. MARIANA (risonha)
Já que deseja...
CLARIMUNDO
Então vou ler. (Lendo) “Quando te foste numa barca
triste”. (Interrompendo) O doutor não
acha que barca está bem aí?
FILGUEIRAS (hesitando)
É... É... Está.
CLARINDA
Mas não foi em barca papai; foi
num paquete. Não se lembra? Até...
D. MARIANA (interrompendo, zangada)
Então, isto é verdade, hein? (Erguendo-se) Seu peralvilho! Seu
bilontra! Seu patife! Então?
FILGUEIRAS
Minha senhora...
CLARINDA (nervosa)
Mamãe...
CLARIMUNDO (atrapalhado)
Juro que...
D. MARIANA (continuando, zangada)
Diante dos meus olhos, hein? Quem
diria que este velho, esse jagodes... Que canalha! Não me verás mais! (Sai arrebatadamente)
CLARINDA
Mas, mamãe...
CENA VII
(Os mesmos, menos D. Mariana)
CLARIMUNDO (depois de uma pausa)
Doutor, não há de reparar, não é?
Minha mulher é muito zangada... Tem gênio, mas passa logo... Foi você, Clarinda,
quem arranjou tudo isso...
CLARINDA (titubeando)
Eu me tinha esquecido que...
FILGUEIRAS
Oh, doutor! Eu sei que são essas
coisas...
CLARIMUNDO
Em todo o caso, vou lá... É bom
acalmá-la, não acham? (Levanta-se e
dirige-se à porta. Quase lá, vira-se) Desculpe-me, sim, doutor. Clarinda,
converse com o doutor... Toque piano...
(Clarimundo sai).
CENA VIII
(Filgueiras e Clarinda)
FILGUEIRAS (depois de um silêncio, embaraçado)
Toca muito, dona Clarinda?
CLARINDA (sonhando)
Ultimamente, pouco. (Pausa; outro tom) Não sei, doutor; não
sei por quê, depois que papai meteu-se nessas coisas de poesia, tudo aqui anda
levado da breca.
FILGUEIRAS
Mas ele não gosta disso há muito
tempo?
CLARINDA
Não. De uns tempos para cá, é que
lhe deu na telha... Mamãe há dias que fala, que diz mal; há outros que gosta...
Ela diz que os poetas não lhe prestam atenção. (Ingênua) Eu não sei o que ela quer dizer com isto... (Entristece) Meu irmão não há meio de
querer saber disso. Enfurece-se, grita, diz que papai está doido. O doutor acha
que ele está?
FILGUEIRAS (ameno)
Qual! É uma pequena preocupação,
mais nada.
CLARINDA (tristonha)
Mas ele nunca foi assim. Lá no
Estado, quando juiz, não tinha senão livros de direito... Agora, leva atracado
com poetas, dicionários, revistas... Não sei! Quem sabe? Eu também fico às
vezes a pensar que não estou com juízo. Procuro entender isso, penetrar bem,
compreender, mas a coisa me foge. Às vezes, sinto bem um trecho, um verso, uma
quadra. A minha alegria é grande; mas quero ir adiante, a coisa me escapa e
tudo o que aquelas palavras dizem não entra na minha cabeça. É assim como se eu
quisesse (gesto) apanhar a luz, o ar,
o perfume das flores com as mãos... Eu não sei... O doutor não me poderia
dizer, como é, hein, doutor?
FILGUEIRAS (compassivo)
A senhora é muito moça, tem visto
pouco a vida. O tempo dar-lhe-á essa penetração que deseja, e então verá a
beleza toda inteira, que lhe escapa agora.
CLARINDA
Eu lhe digo francamente: eu não
acredito que meu pai entenda também. Ele às vezes dorme sobre os versos que
está lendo... Quando se amam as coisas — não é doutor...? — Só podemos ter
prazer com elas... Ainda há pouco o doutor olhou o céu e disse que ele estava
tão fino que parecia querer revelar o seu mistério, não foi?
FILGUEIRAS (enternecido)
Foi.
CLARINDA (poética)
Pois bem. Eu não queria dizer
essas coisas como o doutor, mas queria olhar as árvores, o mar, o céu e as
estrelas, e ver mais do que árvores, mar, céu, estrelas, como os senhores.
Então, talvez, eu entendesse...
(Os dois calam-se. A moça fica a olhar o ocaso sanguíneo, pela janela do
fundo; e o poeta a olhá-la cheio de espanto).
CENA IX
(Os mesmos e D. Mariana)
D. MARIANA (entrando)
Estão jogando o sério?
CLARINDA (senhora de si)
Então, mamãe, não se janta? O
doutor Filgueiras deve ter fome.
FILGUEIRAS
Não, ainda é cedo. Janto sempre
tarde, com luzes... É mais agradável.
D. MARIANA
O doutor há de ter paciência.
Esperamos o Inácio, o meu filho. (Outro tom)
Clarinda, onde estão as chaves do armário?
CLARINDA
Lá em cima do guarda-comidas.
D. MARIANA
Vá mostrar ao Luís, que não há
meio de achá-las.
(Clarinda sai).
CENA X
(Filgueiras, D. Mariana e mais tarde Clarimundo)
D. MARIANA
O Clarimundo manda pedir-lhe
desculpas se tem demorado um pouco. Eu também lhe peço desculpas se...
FILGUEIRAS (delicado)
Não há motivos para isto... Eu
sei bem o que são essas coisas e...
D. MARIANA
Que o doutor faça versos
apaixonados, vá. É moço, é solteiro, mas um carcaça como meu marido, um
lambisgoia, é indecente...
FILGUEIRAS
Isso não quer dizer nada. Muitos
poetas...
D. MARIANA (interrompendo e faceira)
O doutor ainda não teve ocasião
de dizer algumas das suas poesias.
FILGUEIRAS (sorrindo, orgulhoso)
Logo mais tarde, não acha?
D. MARIANA (sedutora)
O doutor deve ter belos versos...
Tão moço! tão belo! Diga um pequeno, o último... gosto tanto... (Chega-se para ele) Vamos, doutor!
FILGUEIRAS (esgueirando-se)
Não são próprios... A senhora
sabe, versos de poeta moço...
D. MARIANA
Sou casada, que tem?
FILGUEIRAS
Se a senhora permite...
D. MARIANA (chegando a cadeira)
Como se chama, doutor?
FILGUEIRAS (afastando um pouco a cadeira)
“Quero beijar-te.”
D. MARIANA (aproximando mais a sua)
Deve ser lindo. Que título feliz!
FILGUEIRAS (atarantado)
Por que não deixamos isso para
mais tarde?
D. MARIANA (sedutora)
Oh! doutor! Eu teria tanto
prazer... Diga, doutor!
FILGUEIRAS (tosse e começa)
“Quero beijar a tua boca
ardente...”
D. MARIANA (cheia de si)
Como é doce de ouvir... Oh!
FILGUEIRAS (continuando)
“Quero beijar o teu sedoso colo.”
D. MARIANA (envaidecida, chega-se mais e toma as mãos do poeta)
Como seria bom, meu Deus!
CLARIMUNDO (entrando e parando na porta)
Então, Mariana, você já gosta de
poesia? Eu não dizia... Isto é casa de poetas.
Cai o pano.
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