Carta de um defunto rico
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
"Meus caros amigos e
parentes. Cá estou no carneiro nº 7... da 3ª quadra, à direita, como vocês
devem saber, porque me puseram nele. Este Cemitério de São João Batista da
Lagoa não é dos piores. Para os vivos, é grave e solene, com o seu severo fundo
de escuro e padrasto granítico. A escassa verdura verde-negra das montanhas de
roda não diminuiu em nada a imponência da antiguidade da rocha dominante nelas.
Há certa grandeza melancólica nisto tudo; mora neste pequeno vale uma tristeza
teimosa que nem o sol glorioso espanca... Tenho, apesar do que se possa supor
em contrário, uma grande satisfação; não estou mais preso ao meu corpo. Ele
está no aludido buraco, unicamente a fim de que vocês tenham um marco, um sinal
palpável para as suas recordações; mas anda em toda a parte.
Consegui afinal, como desejava o
poeta, elevar-me bem longe dos miasmas mórbidos, purificar-me no ar superior e
bebo, como um puro e divino licor, o fogo claro que enche os límpidos espaços.
Não tenho as dificultosas tarefas
que, por aí, pela superfície da terra, atazanam a inteligência de tanta gente.
Não me preocupa, por exemplo,
saber se devo ir receber o poderoso imperador do Beluchistã com ou sem
colarinho; não consulto autoridades constitucionais para autorizar minha mulher
a oferecer ou não lugares do seu automóvel a príncipes herdeiros — coisa,
aliás, que é sempre agradável às senhoras de uma democracia; não sou obrigado,
para obter um título nobiliárquico, de uma problemática monarquia, a andar
pelos adelos, catando suspeitas bugigangas e pedir a literatos das antessalas
palacianas, que as proclamem raridades de beleza, a fim de encherem salões de
casas de bailes e emocionarem os ingênuos com recordações de um passado que não
devia ser avivado.
Afirmando isto, tenho que dizer
as razões. Em primeiro lugar, tais bugigangas não têm, por si, em geral, beleza
alguma; e, se a tiveram era emprestada pelas almas dos que se serviram delas.
Semelhante beleza só pode ser sentida pelos descendentes dos seus primitivos
donos.
Demais, elas perdem todo o
interesse, todo o seu valor, tudo o que nelas possa haver de emocional, desde
que percam a sua utilidade e desde que sejam retiradas dos seus lugares
próprios. Há senhoras belas, no seu interior, com os seus móveis e as costuras;
mas que não o são na rua, nas salas de baile e de teatro. O homem e as suas
criações precisam, para refulgir, do seu ambiente próprio, penetrado, saturado
das dores, dos anseios, das alegrias de sua alma; é com as emanações de sua
vitalidade, é com as vibrações misteriosas de sua existência que as coisas se
enchem de beleza.
É o sumo de sua vida que empresta
beleza às coisas mortais; é a alma do personagem que faz a grandeza do drama,
não são os versos, as metáforas, a linguagem em si, etc., etc. Estando ela
ausente, por incapacidade do autor, o drama não vale nada.
Por isso, sinto-me bem contente
de não ser obrigado a caçar, nos belchiores e cafundós domésticos, bugigangas,
para agradar futuros e problemáticos imperantes, porque teria que dar a elas
alma, tentativa em projeto que, além de inatingível, é supremamente sacrílego.
De resto, para ser completa essa
reconstrução do passado ou essa visão dele, não se podia prescindir de certos
utensílios de uso secreto e discreto, nem tampouco esquecer determinados
instrumentos de tortura e suplício, empregados pelas autoridades e
grão-senhores no castigo dos seus escravos.
Há, no passado, muitas coisas que
devem ser desprezadas e inteiramente eliminadas, com o correr do tempo, para a
felicidade da espécie, a exemplo do que a digestão faz, para a do indivíduo,
com certas substâncias dos alimentos que ingerimos...
Mas... estou na cova e não devo
relembrar aos viventes coisas dolorosas.
Os mortos não perseguem ninguém;
e só podem gozar da beatitude da superexistência aqueles que se purificam pelo
arrependimento e destroem na sua alma todo o ódio, todo o despeito, todo o
rancor.
Os que não conseguem isso — ai
deles!
Alonguei-me nessas considerações
intempestivas, quando a minha tenção era outra.
O meu propósito era dizer a vocês
que o enterro esteve lindo. Eu posso dizer isto sem vaidade, porque o prazer
dele, da sua magnificência, do seu luxo, não é propriamente meu, mas de vocês;
e não há mal algum que um vivente tenha um naco de vaidade, mesmo quando é
presidente de alguma coisa ou imortal da Academia de Letras.
Enterro e demais cerimônias
fúnebres não interessam ao defunto; elas são feitas por vivos para vivos.
É uma tolice de certos senhores
disporem nos seus testamentos como devem ser enterrados. Cada um enterra seu
pai como pode — é uma sentença popular, cujo ensinamento deve ser tomado no
sentido mais amplo possível, dando aos sobreviventes a responsabilidade total
do enterro dos seus parentes e amigos, tanto na forma como no fundo.
O meu, feito por vocês, foi de
truz. O carro estava soberbamente agaloado; os cavalos bem paramentados e
empenachados; as riquíssimas coroas, além de ricas, eram lindas. Do Haddock
Lobo, daquele casarão que ganhei com auxílio das ordens terceiras, das leis, do
câmbio e outras fatalidades econômicas e sociais que fazem pobres a maior parte
dos sujeitos e a mim me fizeram rico; da porta dele até o portão de São João
Batista, o meu enterro foi um deslumbramento. Não havia, na rua, quem não parasse
para contemplá-lo, descobrindo-se ritualmente; não havia quem não perguntasse
quem ia ali.
Triste destino o meu, esse de,
nos instantes do meu enterramento, toda uma população de uma vasta cidade
querer saber o meu nome e dali a minutos, com a última pá de terra deitada na
minha sepultura, vir a ser esquecido, até pelos meus próprios parentes.
Faço esta reflexão somente por
fazer, porque, desde muito, havia encontrado, no fundo das coisas humanas, um
vazio absoluto.
Essa convicção me veio com as meditações
seguidas que me foram provocadas pelo fato de meu filho Carlos, com quem gastei
uma fortuna em mestres, a quem formei, a quem coloquei altamente, não saber
nada desta vida, até menos do que eu.
Adivinhei isto e fiquei a matutar
como é que ele gozava de tanta consideração fácil e eu apenas merecia uma
contrariedade? Eu, que...
Carlos, meu filho, se leres isto,
dá o teu ordenado àquele pobre rapaz que te fez as sabatinas por
"tuta-e-meia", e contenta-te, com o que herdaste do teu pai e com o
que tem tua mulher! Se não fizeres... ai de ti!
Nem o Carlos nem vocês outros,
espero, encontrarão nesta última observação matéria para ter queixa de mim. Eu
não tenho mais amizade, nem inimizade.
Os vivos me merecem unicamente
piedade; e o que me deu esta situação deliciosa em que estou, foi ter sido, às
vezes, profundamente bom. Atualmente, sou sempre...
Não seria, portanto, agora que,
perto da terra, estou, entretanto, longe dela, que havia de fazer recriminações
a meu filho ou tentar desmoralizá-lo. Minha missão, quando me consentem, é
fazer bem e aconselhar o arrependimento.
Agradeço a vocês o cuidado que
tiveram com o meu enterro; mas, seja-me permitido, caros parentes e amigos,
dizer a vocês uma coisa. Tudo estava lindo e rico; mas um cuidado vocês não tiveram.
Porque vocês não forneceram librés novas aos cocheiros das caleças, sobretudo,
ao do coche, que estava vestido de tal maneira andrajosa que causava dó?
Se vocês tiverem que fazer outro
enterro, não se esqueçam de vestir bem os pobres cocheiros, com o que o
defunto, caso seja como eu, ficará muito satisfeito. O brilho do cortejo será
maior e vocês terão prestado uma obra de caridade.
Era o que eu tinha a dizer a
vocês. Não me despeço, pelo simples motivo de que estou sempre junto de vocês.
É tudo isto do
José Boaventura da Silva.
N. B. — Residência, segundo a
Santa Casa: Cemitério de São João Batista da Lagoa; e, segundo a sabedoria
universal, em toda a parte. — J. B. S."
Posso garantir que trasladei esta
carta para aqui, sem omissão de uma vírgula.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...