Capítulo dos chapéus
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Géronte
Dans
quel chapitre, s'il vous plaît?
Sganarelle
Dans le
chapitre des chapeaux.
MOLIÈRE.
Musa, canta o despeito de Mariana, esposa do
bacharel Conrado Seabra, naquela manhã de abril de 1879. Qual a causa de
tamanho alvoroço? Um simples chapéu, leve, não deselegante, um chapéu baixo.
Conrado, advogado, com escritório na Rua da Quitanda, trazia-o todos os dias à
cidade, ia com ele às audiências; só não o levava às recepções, teatro lírico,
enterros e visitas de cerimônia. No mais era constante, e isto desde cinco ou
seis anos, que tantos eram os do casamento. Ora, naquela singular manhã de
abril, acabado o almoço, Conrado começou a enrolar um cigarro, e Mariana anunciou
sorrindo que ia pedir-lhe uma coisa.
— Que é, meu anjo?
— Você é capaz de fazer-me um sacrifício?
— Dez, vinte...
— Pois então não vá mais à cidade com aquele
chapéu.
— Por quê? é feio?
— Não digo que seja feio; mas é cá para fora,
para andar na vizinhança, à tarde ou à noite, mas na cidade, um advogado, não
me parece que...
— Que tolice, iaiá!
— Pois sim, mas faz-me este favor, faz?
Conrado riscou um fósforo, acendeu o cigarro,
e fez-lhe um gesto de gracejo, para desconversar; mas a mulher teimou. A teima,
a princípio frouxa e súplice, tornou-se logo imperiosa e áspera. Conrado ficou
espantado. Conhecia a mulher; era, de ordinário, uma criatura passiva, meiga,
de uma plasticidade de encomenda, capaz de usar com a mesma divina indiferença
tanto um diadema régio como uma touca. A prova é que, tendo tido uma vida de
andarilha nos últimos dois anos de solteira, tão depressa casou como se afez
aos hábitos quietos. Saía às vezes, e a maior parte delas por instâncias do
próprio consorte; mas só estava comodamente em casa. Móveis, cortinas, ornatos
supriam-lhe os filhos; tinha-lhes um amor de mãe; e tal era a concordância da
pessoa com o meio, que ela saboreava os trastes na posição ocupada, as cortinas
com as dobras do costume, e assim o resto. Uma das três janelas, por exemplo,
que davam para a rua vivia sempre meia aberta; nunca era outra. Nem o gabinete
do marido escapava às exigências monótonas da mulher, que mantinha sem
alteração a desordem dos livros, e até chegava a restaurá-la. Os hábitos
mentais seguiam a mesma uniformidade. Mariana dispunha de mui poucas noções, e
nunca lera senão os mesmos livros: — a Moreninha
de Macedo, sete vezes; Ivanhoé e o
Pirata de Walter Scott, dez vezes; o Mot
de l'Énigme, de Madame Craven,
onze vezes.
Isto posto, como explicar o caso do chapéu?
Na véspera, à noite, enquanto o marido fora a uma sessão do Instituto da Ordem
dos Advogados, o pai de Mariana veio à casa deles. Era um bom velho, magro,
pausado, ex-funcionário público, ralado de saudades do tempo em que os empregados
iam de casaca para as suas repartições. Casaca era o que ele, ainda agora,
levava aos enterros, não pela razão que o leitor suspeita, a solenidade da
morte ou a gravidade da despedida última, mas por esta menos filosófica, por
ser um costume antigo. Não dava outra, nem da casaca nos enterros, nem do
jantar às duas horas, nem de vinte usos mais. E tão aferrado aos hábitos, que
no aniversário do casamento da filha, ia para lá às seis horas da tarde,
jantado e digerido, via comer, e no fim aceitava um pouco de doce, um cálice de
vinho e café. Tal era o sogro de Conrado; como supor que ele aprovasse o chapéu
baixo do genro? Suportava-o calado, em atenção às qualidades da pessoa; nada
mais. Acontecera-lhe, porém, naquele dia, vê-lo de relance na rua, de palestra
com outros chapéus altos de homens públicos, e nunca lhe pareceu tão torpe. De
noite, encontrando a filha sozinha, abriu-lhe o coração; pintou-lhe o chapéu
baixo como a abominação das abominações, e instou com ela para que o fizesse
desterrar.
Conrado ignorava essa circunstância, origem
do pedido. Conhecendo a docilidade da mulher, não entendeu a resistência; e,
porque era autoritário, e voluntarioso, a teima veio irritá-lo profundamente.
Conteve-se ainda assim; preferiu mofar do caso; falou-lhe com tal ironia e
desdém, que a pobre dama sentiu-se humilhada.
Mariana quis levantar-se duas vezes; ele
obrigou-a a ficar, a primeira pegando-lhe levemente no pulso, a segunda
subjugando-a com o olhar. E dizia sorrindo:
— Olhe, iaiá, tenho uma razão filosófica para
não fazer o que você me pede. Nunca lhe disse isto; mas já agora confio-lhe
tudo.
Mariana mordia o lábio, sem dizer mais nada;
pegou de uma faca, e entrou a bater com ela devagarinho para fazer alguma
coisa; mas, nem isso mesmo consentiu o marido, que lhe tirou a faca
delicadamente, e continuou:
— A escolha do chapéu não é uma ação
indiferente, como você pode supor; é regida por um princípio metafísico. Não
cuide que quem compra um chapéu exerce uma ação voluntária e livre; a verdade é
que obedece a um determinismo obscuro. A ilusão da liberdade existe arraigada
nos compradores, e é mantida pelos chapeleiros que, ao verem um freguês ensaiar
trinta ou quarenta chapéus, e sair sem comprar nenhum, imaginam que ele está
procurando livremente uma combinação elegante. O princípio metafísico é este: —
o chapéu é a integração do homem, um prolongamento da cabeça, um complemento
decretado ab eterno ninguém o pode
trocar sem mutilação. É uma questão profunda que ainda não ocorreu a ninguém.
Os sábios têm estudado tudo desde o astro até o verme, ou, para exemplificar
bibliograficamente, desde Laplace... Você nunca leu Laplace? desde Laplace e a Mecânica Celeste até Darwin e o seu
curioso livro das Minhocas, e,
entretanto, não se lembraram ainda de parar diante do chapéu e estudá-lo por
todos os lados. Ninguém advertiu que há uma metafísica do chapéu. Talvez eu
escreva uma memória a este respeito. São nove horas e três quartos; não tenho
tempo de dizer mais nada; mas você reflita consigo, e verá... Quem sabe? Pode
ser até que nem mesmo o chapéu seja complemento do homem, mas o homem do chapéu...
Mariana venceu-se afinal, e deixou a mesa.
Não entendera nada daquela nomenclatura áspera nem da singular teoria; mas
sentiu que era um sarcasmo, e, dentro de si, chorava de vergonha. O marido
subiu para vestir-se; desceu daí a alguns minutos, e parou diante dela com o
famoso chapéu na cabeça. Mariana achou-lho, na verdade, torpe, ordinário,
vulgar, nada sério. Conrado despediu-se cerimoniosamente e saiu.
A irritação da dama tinha afrouxado muito;
mas, o sentimento de humilhação subsistia. Mariana não chorou, não clamou, como
supunha que ia fazer; mas, consigo mesma, recordou a simplicidade do pedido, os
sarcasmos de Conrado, e, posto reconhecesse que fora um pouco exigente, não
achava justificação para tais excessos. Ia de um lado para outro, sem poder
parar; foi à sala de visitas, chegou à janela meia aberta, viu ainda o marido,
na rua, à espera do bonde, de costas para casa, com o eterno e torpíssimo
chapéu na cabeça. Mariana sentiu-se tomada de ódio contra essa peça ridícula;
não compreendia como pudera suportá-la por tantos anos. E relembrava os anos,
pensava na docilidade dos seus modos, na aquiescência a todas as vontades e
caprichos do marido, e perguntava a si mesma se não seria essa justamente a
causa do excesso daquela manhã. Chamava-se tola, moleirona; se tivesse feito
como tantas outras, a Clara e a Sofia, por exemplo, que tratavam os maridos
como eles deviam ser tratados, não lhe aconteceria nem metade, nem uma sombra
do que lhe aconteceu. De reflexão em reflexão, chegou à ideia de sair.
Vestiu-se, e foi à casa da Sofia, uma antiga companheira de colégio, com o fim
de espairecer, não de lhe contar nada.
Sofia tinha trinta anos, mais dois que
Mariana. Era alta, forte, muito senhora de si. Recebeu a amiga com as festas do
costume; e, posto que esta lhe não dissesse nada, adivinhou que trazia um
desgosto e grande. Adeus, planos de Mariana! Daí a vinte minutos contava-lhe
tudo. Sofia riu dela, sacudiu os ombros; disse-lhe que a culpa não era do
marido.
— Bem sei, é minha, concordava Mariana.
— Não seja tola, iaiá! Você tem sido muito
mole com ele. Mas seja forte uma vez; não faça caso; não lhe fale tão cedo; e
se ele vier fazer as pazes, diga-lhe que mude primeiro de chapéu.
— Veja você, uma coisa de nada...
— No fim de contas, ele tem muita razão;
tanta como outros. Olhe a pamonha da Beatriz; não foi agora para a roça, só
porque o marido implicou com um inglês que costumava passar a cavalo de tarde?
Coitado do inglês! Naturalmente nem deu pela falta. A gente pode viver bem com
seu marido, respeitando-se, não indo contra os desejos um do outro, sem
pirraças, nem despotismo. Olhe; eu cá vivo muito bem com o meu Ricardo; temos
muita harmonia. Não lhe peço uma coisa que ele me não faça logo; mesmo quando
não tem vontade nenhuma, basta que eu feche a cara, obedece logo. Não era ele
que teimaria assim por causa de um chapéu! Tinha que ver! Pois não! Onde iria
ele parar! Mudava de chapéu, quer quisesse, quer não.
Mariana ouvia com inveja essa bela definição
do sossego conjugal. A rebelião de Eva embocava nela os seus clarins; e o
contato da amiga dava-lhe um prurido de independência e vontade. Para completar
a situação, esta Sofia não era só muito senhora de si, mas também dos outros;
tinha olhos para todos os ingleses, a cavalo ou a pé. Honesta, mas namoradeira;
o termo é cru, e não há tempo de compor outro mais brando. Namorava a torto e a
direito, por uma necessidade natural, um costume de solteira. Era o troco miúdo
do amor, que ela distribuía a todos os pobres que lhe batiam à porta: — um
níquel a um, outro a outro; nunca uma nota de cinco mil-réis, menos ainda uma
apólice. Ora este sentimento caritativo induziu-a a propor à amiga que fossem
passear, ver as lojas, contemplar a vista de outros chapéus bonitos e graves.
Mariana aceitou; um certo demônio soprava nela as fúrias da vingança. Demais, a
amiga tinha o dom de fascinar, virtude de Bonaparte, e não lhe deu tempo de
refletir. Pois sim, iria, estava cansada de viver cativa. Também queria gozar
um pouco, etc., etc.
Enquanto Sofia foi vestir-se, Mariana
deixou-se estar na sala, irrequieta e contente consigo mesma. Planeou a vida de
toda aquela semana, marcando os dias e horas de cada coisa, como numa viagem
oficial. Levantava-se, sentava-se, ia à janela, à espera da amiga.
— Sofia parece que morreu, dizia de quando em
quando.
De uma das vezes que foi à janela, viu passar
um rapaz a cavalo. Não era inglês, mas lembrou-lhe a outra, que o marido levou
para a roça, desconfiado de um inglês, e sentiu crescer-lhe o ódio contra a
raça masculina — com exceção, talvez, dos rapazes a cavalo. Na verdade, aquele
era afetado demais; esticava a perna no estribo com evidente vaidade das botas,
dobrava a mão na cintura, com um ar de figurino. Mariana notou-lhe esses dois
defeitos; mas achou que o chapéu resgatava-os; não que fosse um chapéu alto;
era baixo, mas próprio do aparelho equestre. Não cobria a cabeça de um advogado
indo gravemente para o escritório, mas a de um homem que espairecia ou matava o
tempo.
Os tacões de Sofia desceram a escada,
compassadamente. Pronta! disse ela daí a pouco, ao entrar na sala. Realmente,
estava bonita. Já sabemos que era alta. O chapéu aumentava-lhe o ar senhoril; e
um diabo de vestido de seda preta, arredondando-lhe as formas do busto, fazia-a
ainda mais vistosa. Ao pé dela, a figura de Mariana desaparecia um pouco. Era
preciso atentar primeiro nesta para ver que possuía feições mui graciosas, uns
olhos lindos, muita e natural elegância. O pior é que a outra dominava desde
logo; e onde houvesse pouco tempo de as ver, tomava-o Sofia para si. Este
reparo seria incompleto, se eu não acrescentasse que Sofia tinha consciência da
superioridade, e que apreciava por isso mesmo as belezas do gênero Mariana, menos
derramadas e aparentes. Se é um defeito, não me compete emendá-lo.
— Onde vamos nós? perguntou Mariana.
— Que tolice! vamos passear à cidade... Agora
me lembro, vou tirar o retrato; depois vou ao dentista. Não; primeiro vamos ao
dentista. Você não precisa de ir ao dentista?
— Não.
— Nem tirar o retrato?
— Já tenho muitos. E para quê? para dá-lo
"àquele senhor"?
Sofia compreendeu que o ressentimento da
amiga persistia, e, durante o caminho, tratou de lhe pôr um ou dois bagos mais
de pimenta. Disse-lhe que, embora fosse difícil, ainda era tempo de
libertar-se. E ensinava-lhe um método para subtrair-se à tirania. Não convinha
ir logo de um salto, mas devagar, com segurança, de maneira que ele desse por
si quando ela lhe pusesse o pé no pescoço. Obra de algumas semanas, três a
quatro, não mais. Ela, Sofia, estava pronta a ajudá-la. E repetia-lhe que não
fosse mole, que não era escrava de ninguém, etc. Mariana ia cantando dentro do
coração a marselhesa do matrimônio.
Chegaram à Rua do Ouvidor. Era pouco mais do
meio-dia. Muita gente, andando ou parada, o movimento do costume. Mariana
sentiu-se um pouco atordoada, como sempre lhe acontecia. A uniformidade e a
placidez, que eram o fundo do seu caráter e de sua vida, receberam daquela
agitação os repelões do costume. Ela mal podia andar por entre os grupos, menos
ainda sabia onde fixasse os olhos, tal era a confusão das gentes, tal era a
variedade das lojas. Conchegava-se muito à amiga, e, sem reparar que tinham
passado a casa do dentista, ia ansiosa de lá entrar. Era um repouso; era alguma
coisa melhor do que o tumulto.
— Esta Rua do Ouvidor! ia dizendo.
— Sim? respondia Sofia, voltando a cabeça
para ela e os olhos para um rapaz que estava na outra calçada.
Sofia, prática daqueles mares, transpunha,
rasgava ou contornava as gentes com muita perícia e tranquilidade. A figura
impunha; os que a conheciam gostavam de vê-la outra vez; os que não a conheciam
paravam ou voltavam-se para admirar-lhe o garbo. E a boa senhora, cheia de
caridade, derramava os olhos à direita e à esquerda, sem grande escândalo,
porque Mariana servia a coonestar os movimentos. Nada dizia seguidamente;
parece até que mal ouvia as respostas da outra: mas falava de tudo, de outras
damas, que iam ou vinham, de uma loja, de um chapéu... Justamente os chapéus, —
de senhora ou de homem, — abundavam naquela primeira hora da Rua do Ouvidor.
— Olha este, dizia-lhe Sofia.
E Mariana acudia a vê-los, femininos ou
masculinos, sem saber onde ficar, porque os demônios dos chapéus sucediam-se
como num caleidoscópio. Onde era o dentista? perguntava ela à amiga. Sofia só à
segunda vez lhe respondeu que tinham passado a casa; mas já agora iriam até ao
fim da rua; voltariam depois. Voltaram finalmente.
— Uf! respirou Mariana entrando no corredor.
— Que é, meu Deus? Ora você! Parece da roça...
A sala do dentista tinha já algumas
freguesas. Mariana não achou entre elas uma só cara conhecida, e para fugir ao
exame das pessoas estranhas, foi para a janela. Da janela podia gozar a rua,
sem atropelo. Recostou-se; Sofia veio ter com ela. Alguns chapéus masculinos,
parados, começaram a fitá-las; outros, passando, faziam a mesma coisa. Mariana
aborreceu-se da insistência; mas, notando que fitavam principalmente a amiga,
dissolveu-se-lhe o tédio numa espécie de inveja. Sofia, entretanto, contava-lhe
a história de alguns chapéus, — ou, mais corretamente, as aventuras. Um deles
merecia os pensamentos de Fulana; outro andava derretido por Sicrana, e ela por
ele, tanto que eram certos na Rua do Ouvidor às quartas e sábados, entre duas e
três horas. Mariana ouvia aturdida. Na verdade, o chapéu era bonito, trazia uma
linda gravata, e possuía um ar entre elegante e pelintra, mas...
— Não juro, ouviu? replicava a outra, mas é o
que se diz.
Mariana fitou pensativa o chapéu denunciado.
Havia agora mais três, de igual porte e graça, e provavelmente os quatro
falavam delas, e falavam bem. Mariana enrubesceu muito, voltou a cabeça para o
outro lado, tornou logo à primeira atitude, e afinal entrou. Entrando, viu na
sala duas senhoras recém-chegadas, e com elas um rapaz que se levantou
prontamente e veio cumprimentá-la com muita cerimônia. Era o seu primeiro
namorado.
Este primeiro namorado devia ter agora trinta
e três anos. Andara por fora, na roça, na Europa, e afinal na presidência de
uma província do sul. Era mediano de estatura, pálido, barba inteira e rara, e
muito apertado na roupa. Tinha na mão um chapéu novo, alto, preto, grave,
presidencial, administrativo, um chapéu adequado à pessoa e às ambições.
Mariana, entretanto, mal pôde vê-lo. Tão confusa ficou, tão desorientada com a
presença de um homem que conhecera em especiais circunstâncias, e a quem não
vira desde 1877, que não pôde reparar em nada. Estendeu-lhe os dedos, parece
mesmo que murmurou uma resposta qualquer, e ia tornar à janela, quando a amiga
saiu dali.
Sofia conhecia também o recém-chegado.
Trocaram algumas palavras. Mariana, impaciente, perguntou-lhe ao ouvido se não
era melhor adiar os dentes para outro dia; mas a amiga disse-lhe que não;
negócio de meia hora a três quartos. Mariana sentia-se opressa: a presença de
um tal homem atava-lhe os sentidos, lançava-a na luta e na confusão. Tudo culpa
do marido. Se ele não teimasse e não caçoasse com ela, ainda em cima, não
aconteceria nada. E Mariana, pensando assim, jurava tirar uma desforra. De
memória contemplava a casa, tão sossegada, tão bonitinha, onde podia estar
agora, como de costume, sem os safanões da rua, sem a dependência da amiga...
— Mariana, disse-lhe esta, o Dr. Viçoso teima
que está muito magro. Você não acha que está mais gordo do que no ano passado...
Não se lembra dele no ano passado?
Dr. Viçoso era o próprio namorado antigo, que
palestrava com Sofia, olhando muitas vezes para Mariana. Esta respondeu
negativamente. Ele aproveitou a fresta para puxá-la à conversação; disse que,
na verdade, não a vira desde alguns anos. E sublinhava o dito com um certo
olhar triste e profundo. Depois abriu o estojo dos assuntos, sacou para fora o
teatro lírico. Que tal achavam a companhia? Na opinião dele era excelente,
menos o barítono; o barítono parecia-lhe cansado. Sofia protestou contra o
cansaço do barítono, mas ele insistiu, acrescentando que, em Londres, onde o
ouvira pela primeira vez, já lhe parecera a mesma coisa. As damas, sim,
senhora; tanto a soprano como a contralto eram de primeira ordem. E falou das
óperas, citava os trechos, elogiou a orquestra, principalmente nos Huguenotes...
Tinha visto Mariana na última noite, no quarto ou quinto camarote da esquerda,
não era verdade?
— Fomos, murmurou ela, acentuando bem o
plural.
— No Cassino é que a não tenho visto,
continuou ele.
— Está ficando um bicho do mato, acudiu Sofia
rindo.
Viçoso gostara muito do último baile, e
desfiou as suas recordações; Sofia fez o mesmo às dela. As melhores toilettes foram descritas por ambos com
muita particularidade; depois vieram as pessoas, os caracteres, dois ou três
picos de malícia; mas tão anódina, que não fez mal a ninguém. Mariana ouvia-os
sem interesse; duas ou três vezes chegou a levantar-se e ir à janela; mas os
chapéus eram tantos e tão curiosos, que ela voltava a sentar-se. Interiormente,
disse alguns nomes feios à amiga; não os ponho aqui por não serem necessários,
e, aliás, seria de mau gosto desvendar o que esta moça pôde pensar da outra
durante alguns minutos de irritação.
— E as corridas do Jockey Club? perguntou o ex-presidente.
Mariana continuava a abanar a cabeça. Não
tinha ido às corridas naquele ano. Pois perdera muito, a penúltima,
principalmente; esteve animadíssima, e os cavalos eram de primeira ordem. As de
Epsom, que ele vira, quando esteve em Inglaterra, não eram melhores do que a
penúltima do Prado Fluminense. E Sofia dizia que sim, que realmente a penúltima
corrida honrava o Jockey Club.
Confessou que gostava muito; dava emoções fortes. A conversação descambou em
dois concertos daquela semana; depois tomou a barca, subiu a serra e foi a
Petrópolis, onde dois diplomatas lhe fizeram as despesas da estada. Como
falassem da esposa de um ministro, Sofia lembrou-se de ser agradável ao
ex-presidente, declarando-lhe que era preciso casar também porque em breve
estaria no ministério. Viçoso teve um estremeção de prazer, e sorriu, e
protestou que não; depois, com os olhos em Mariana, disse que provavelmente não
casaria nunca... Mariana enrubesceu muito e levantou-se.
— Você está com muita pressa, disse-lhe
Sofia. Quantas são? continuou voltando-se para Viçoso.
— Perto de três! exclamou ele.
Era tarde; tinha de ir à Câmara dos
Deputados. Foi falar às duas senhoras, que acompanhara, e que eram primas suas,
e despediu-se; vinha despedir-se das outras, mas Sofia declarou que sairia
também. Já agora não esperava mais. A verdade é que a ideia de ir à Câmara dos
Deputados começara a faiscar-lhe na cabeça.
— Vamos à Câmara? propôs ela à outra.
— Não, não, disse Mariana; não posso, estou
muito cansada.
— Vamos, um bocadinho só; eu também estou
muito cansada...
Mariana teimou ainda um pouco; mas teimar
contra Sofia, — a pomba discutindo com o gavião, — era realmente insensatez.
Não teve remédio, foi. A rua estava agora mais agitada, as gentes iam e vinham
por ambas as calçadas, e complicavam-se no cruzamento das ruas. De mais a mais,
o obsequioso ex-presidente flanqueava as duas damas, tendo-se oferecido para
arranjar-lhes uma tribuna.
A alma de Mariana sentia-se cada vez mais
dilacerada de toda essa confusão de coisas. Perdera o interesse da primeira
hora; e o despeito, que lhe dera forças para um voo audaz e fugidio, começava a
afrouxar as asas, ou afrouxara-as inteiramente. E outra vez recordava a casa,
tão quieta, com todas as coisas nos seus lugares, metódicas, respeitosas umas
com as outras, fazendo-se tudo sem atropelo, e, principalmente, sem mudança
imprevista. E a alma batia o pé, raivosa... Não ouvia nada do que o Viçoso ia
dizendo, conquanto ele falasse alto, e muitas coisas fossem ditas para ela. Não
ouvia, não queria ouvir nada. Só pedia a Deus que as horas andassem depressa.
Chegaram à Câmara e foram para uma tribuna. O rumor das saias chamou a atenção
de uns vinte deputados, que restavam, escutando um discurso de orçamento. Tão
depressa o Viçoso pediu licença e saiu, Mariana disse rapidamente à amiga que
não lhe fizesse outra.
— Que outra? perguntou Sofia.
— Não me pregue outra peça como esta de andar
de um lugar para outro feito maluca. Que tenho eu com a Câmara? que me importam
discursos que não entendo?
Sofia sorriu, agitou o leque e recebeu em
cheio o olhar de um dos secretários. Muitos eram os olhos que a fitavam quando
ela ia à Câmara, mas os do tal secretário tinham uma expressão mais especial,
cálida e súplice. Entende-se, pois, que ela não o recebeu de supetão; pode
mesmo entender-se que o procurou curiosa. Enquanto acolhia esse olhar
legislativo ia respondendo à amiga, com brandura, que a culpa era dela, e que a
sua intenção era boa, era restituir-lhe a posse de si mesma.
— Mas, se você acha que a aborreço não venha
mais comigo, concluiu Sofia.
E, inclinando-se um pouco:
— Olha o Ministro da Justiça.
Mariana não teve remédio senão ver o Ministro
da Justiça. Este aguentava o discurso do orador, um governista, que provava a
conveniência dos tribunais correcionais, e, incidentemente, compendiava a
antiga legislação colonial. Nenhum aparte; um silêncio resignado, polido,
discreto e cauteloso. Mariana passeava os olhos de um lado para outro, sem
interesse; Sofia dizia-lhe muitas coisas, para dar saída a uma porção de gestos
graciosos. No fim de quinze minutos agitou-se a Câmara, graças a uma expressão
do orador e uma réplica da oposição. Trocaram-se apartes, os segundos mais
bravos que os primeiros, e seguiu-se um tumulto, que durou perto de um quarto
de hora.
Esta diversão não o foi para Mariana, cujo
espírito plácido e uniforme, ficou atarantado no meio de tanta e tão inesperada
agitação. Ela chegou a levantar-se para sair; mas, sentou-se outra vez. Já
agora estava disposta a ir ao fim, arrependida e resoluta a chorar só consigo
as suas mágoas conjugais. A dúvida começou mesmo a entrar nela. Tinha razão no
pedido ao marido; mas era caso de doer-se tanto? era razoável o espalhafato?
Certamente que as ironias dele foram cruéis; mas, em suma, era a primeira vez
que ela lhe batera o pé, e, naturalmente, a novidade irritou-o. De qualquer
modo porém, fora um erro ir revelar tudo à amiga. Sofia iria talvez contá-lo a
outras... Esta ideia trouxe um calafrio a Mariana; a indiscrição da amiga era
certa; tinha-lhe ouvido uma porção de histórias de chapéus masculinos e
femininos, coisa mais grave do que uma simples briga de casados. Mariana sentiu
necessidade de lisonjeá-la, e cobriu a sua impaciência e zanga com uma máscara
de docilidade hipócrita. Começou a sorrir também, a fazer algumas observações,
a respeito de um ou outro deputado, e assim chegaram ao fim do discurso e da
sessão.
Eram quatro horas dadas. Toca a recolher,
disse Sofia; e Mariana concordou que sim, mas sem impaciência, e ambas tornaram
a subir a Rua do Ouvidor. A rua, a entrada no bond completaram a fadiga do espírito de Mariana, que afinal
respirou quando viu que ia caminho de casa. Pouco antes de apear-se a outra,
pediu-lhe que guardasse segredo sobre o que lhe contara; Sofia prometeu que
sim.
Mariana respirou. A rola estava livre do
gavião. Levava a alma doente dos encontrões, vertiginosa da diversidade de
coisas e pessoas. Tinha necessidade de equilíbrio e saúde. A casa estava perto;
à medida que ia vendo as outras casas e chácaras próximas, Mariana sentia-se
restituída a si mesma. Chegou finalmente; entrou no jardim, respirou. Era
aquele o seu mundo; menos um vaso, que o jardineiro trocara de lugar.
— João, bota este vaso onde estava antes,
disse ela.
Tudo o mais estava em ordem, a sala de
entrada, a de visitas, a de jantar, os seus quartos, tudo. Mariana sentou-se
primeiro, em diferentes lugares, olhando bem para todas as coisas, tão quietas
e ordenadas. Depois de uma manhã inteira de perturbação e variedade, a
monotonia trazia-lhe um grande bem, e nunca lhe pareceu tão deliciosa. Na
verdade, fizera mal... Quis recapitular os sucessos e não pôde; a alma
espreguiçava-se toda naquela uniformidade caseira. Quando muito, pensou na figura
do Viçoso, que achava agora ridícula, e era injustiça. Despiu-se lentamente,
com amor, indo certeira a cada objeto. Uma vez despida, pensou outra vez na
briga com o marido. Achou que, bem pesadas as coisas, a principal culpa era
dela. Que diabo de teima por causa de um chapéu, que o marido usara há tantos
anos? Também o pai era exigente demais...
"Vou ver a cara com que ele vem",
pensou ela.
Eram cinco e meia; não tardaria muito.
Mariana foi à sala da frente, espiou pela vidraça, prestou o ouvido ao bonde, e
nada. Sentou-se ali mesmo com o Ivanhoé nas palmas, querendo ler e não lendo
nada. Os olhos iam até o fim da página, e tornavam ao princípio, em primeiro
lugar, porque não apanhavam o sentido, em segundo lugar, porque uma ou outra
vez desviavam-se para saborear a correção das cortinas ou qualquer outra feição
particular da sala. Santa monotonia, tu a acalentavas no teu regaço eterno.
Enfim, parou um bonde; apeou-se o marido;
rangeu a porta de ferro do jardim. Mariana foi à vidraça, e espiou. Conrado entrava
lentamente, olhando para a direita e a esquerda, com o chapéu na cabeça, não o
famoso chapéu do costume, porém outro, o que a mulher lhe tinha pedido de
manhã. O espírito de Mariana recebeu um choque violento, igual ao que lhe dera
o vaso do jardim trocado, — ou ao que lhe daria uma lauda de Voltaire entre as
folhas da Moreninha ou de Ivanhoe... Era a nota desigual no meio
da harmoniosa sonata da vida. Não, não podia ser esse chapéu. Realmente, que
mania a dela exigir que ele deixasse o outro que lhe ficava tão bem? E que não
fosse o mais próprio, era o de longos anos; era o que quadrava à fisionomia do
marido... Conrado entrou por uma porta lateral. Mariana recebeu-o nos braços.
— Então, passou? perguntou ele, enfim,
cingindo-lhe a cintura.
— Escuta uma coisa, respondeu ela com uma
carícia divina, bota fora esse; antes o outro.
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