Cantiga Velha
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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CAPÍTULO
1
Conversávamos de cantigas populares. Entre o
jantar e o chá, quatro pessoas tão-somente, longe do voltarete e da polca,
confessem que era uma boa e rara fortuna. Polca e voltarete são dois organismos
vivos que estão destruindo a nossa alma; é indispensável que nos vacinem com a
espadilha e duas ou três oitavas do “Caia no beco” ou qualquer outro título da
mesma farinha. Éramos quatro e tínhamos a mesma idade. Eu e mais dois pouco
sabíamos da matéria; tão-somente algumas reminiscências da infância ou da
adolescência. O quarto era grande ledor de tais estudos, e não só possuía
alguma coisa do nosso cancioneiro, como do de outras partes. Confessem que era um
regalo de príncipes.
Esquecia-me dizer que o jantar fora copioso;
notícia indispensável à narração, porque um homem antes de jantar não é o mesmo
que depois do jantar, e pode-se dizer que a discrição é muitas vezes um momento
gastronômico. Homem haverá reservado durante a sopa, que à sobremesa põe o
coração no prato, e dá-o em fatias aos convivas. Toda a questão é que o jantar
seja abundante, esquisito e fino, os vinhos frios e quentes, de mistura, e uma
boa xícara de café por cima, e para os que fumam um havana de cruzado.
Reconhecido que isto é uma lei universal, admiremos os diplomatas que, na vida
contínua de jantares, sabem guardar consigo os segredos dos governos.
Evidentemente são organizações superiores.
O dono da casa dera-nos um bom jantar. Fomos
os quatro, no fim para junto de uma janela, que abria para um dos lados da
chácara. Posto estivéssemos no verão, corria um ventozinho fresco, e a
temperatura parecia impregnada das últimas águas. Na sala de frente, dançava-se
a polca; noutra sala jogava-se o voltarete. Nós, como digo, falávamos de
cantigas populares.
— Vou dar-lhes uma das mais galantes estrofes
que tenho ouvido, disse um de nós. Morava na Rua da Carioca, e um dia de manhã
ouvi do lado dos fundos, esta quadrinha:
Coitadinho,
como é tolo
Em
cuidar que eu o adoro
Por me
ver andar chorando...
Sabe
Deus por quem eu choro!
O ledor de cancioneiros pegou da quadra para
esmerilhá-la com certa pontinha de pedantismo; mas outro ouvinte, o Dr.
Veríssimo, pareceu inquieto; perguntou ao primeiro o número da casa em que
morara; ele respondeu rindo que uma tal pergunta só se podia explicar da parte
de um governo tirânico; os números das casas deixam-se nas casas. Como
recordá-los alguns anos depois? Podia dizer-lhe em que ponto da rua ficava a
casa; era perto do Largo da Carioca, à esquerda de quem desce, e foi nos anos
de 1864 e 1865.
— Isso mesmo, disse ele.
— Isso mesmo, quê?
— Nunca viu a pessoa que cantava?
— Nunca. Ouvi dizer que era uma costureira,
mas não indaguei mais nada. Depois, ainda ouvi cantar pela mesma voz a mesma
quadrinha. Creio que não sabia outra. A repetição fê-la monótona, e...
— Se soubessem que essa quadrinha era comigo!
disse ele sacudindo a cinza do charuto.
E como lhe perguntássemos se ele era o
aludido do último verso — Sabe Deus por
quem eu choro, respondeu-nos que não. Eu sou o tolo do princípio da quadra.
A diferença é que não cuidava, como na trova, que ela me adorasse; sabia bem
que não. Menos essa circunstância, a quadra é comigo. Pode ser que fosse outra
pessoa que cantasse; mas o tempo, o lugar da rua, a qualidade de costureira,
tudo combina.
— Vamos ver se combina, disse o ex-morador da
Rua da Carioca piscando-me o olho. Chamava-se Luísa?
— Não; chamava-se Henriqueta.
— Alta?
— Alta. Conheceu-a?
— Não; mas então essa Henriqueta era alguma
princesa incógnita, que...
— Era uma costureira, retorquiu o Veríssimo.
Nesse tempo era eu estudante. Tinha chegado do Sul poucos meses antes. Pouco
depois de chegado... Olhem, vou contar-lhes uma coisa muito particular. Minha
mulher sabe do caso, contei-lhe tudo, menos que a tal Henriqueta foi a maior
paixão da minha vida... Mas foi; digo-lhe que foi uma grande paixão. A coisa
passou-se assim...
CAPÍTULO
2
— A coisa passou-se assim. Vim do Sul, e fui
alojar-me em casa de uma viúva Beltrão. O marido desta senhora perecera na
guerra contra o Rosas; ela vivia do meio soldo e de algumas costuras. Estando
no Sul, em 1850, deu-se muito com a minha família; foi por isso que minha mãe
não quis que eu viesse para outra casa. Tinha medo do Rio de Janeiro; entendia
que a viúva Beltrão desempenharia o seu papel de mãe, e recomendou-me a ela.
D. Cora recebeu-me um pouco acanhada. Creio
que era por causa das duas filhas que tinha, moças de dezesseis e dezoito anos,
e pela margem que isto podia dar à maledicência. Talvez fosse também a pobreza
da casa. Eu supus que a razão era tão-somente a segunda, e tratei de lhe tirar
escrúpulos mostrando-me alegre e satisfeito. Ajustamos a mesada. Deu-me um
quarto, separado, no quintal. A casa era em Mata— Porcos. Eu palmilhava, desde
casa até à Escola de Medicina, sem fadiga, voltando à tarde, tão fresco como de
manhã.
As duas filhas eram bonitinhas; mas a mais
velha, Henriqueta, era ainda mais bonita que a outra. Nos primeiros tempos
mostraram-se muito reservadas comigo.
Eu, que só fui alegre, no primeiro dia, por
cálculo, tornei ao que costumava ser; e, depois do almoço ou do jantar,
metia-me comigo mesmo e os livros, deixando à viúva e às filhas toda a
liberdade. A mãe, que queria o meu respeito, mas não exigia a total abstenção,
chamou-me um dia bicho-do-mato.
— Olhe que estudar é bom, e sua mãe quer isso
mesmo, disse-me ela; mas parece que o senhor estuda demais. Venha conversar com
a gente.
Fui conversar com elas algumas vezes. D. Cora
era alegre, as filhas não tanto, mas em todo caso muito sociáveis. Duas ou três
pessoas da vizinhança iam ali passar algumas horas, de quando em quando. As
reuniões e palestras repetiram-se naturalmente, sem nenhum sucesso
extraordinário, ou mesmo curioso, e assim se foram dois meses.
No fim de dois meses, Henriqueta adoeceu, e
eu prestei à família muito bons serviços, que a mãe agradeceu-me de todos os
modos, até ao enfado. D. Cora estimava-me, realmente, e desde então foi como
uma segunda mãe. Quanto a Henriqueta, não me agradeceu menos; tinha, porém, as
reservas da idade, e naturalmente não foi tão expansiva. Eu confesso que, ao
vê-la depois, convalescente, muito pálida, senti crescer a simpatia que me
ligava a ela, sem perguntar a mim mesmo se uma tal simpatia não começava a ser
outra coisa. Henriqueta tinha uma figura e um rosto que se prestavam às
atitudes moles da convalescença, e a palidez desta não fazia mais do que
acentuar a nota de distinção da sua fisionomia. Ninguém diria ao vê-la, fora,
que era uma mulher de trabalho.
Apareceu por esse tempo um candidato à mão de
Henriqueta. Era um oficial de secretaria, rapaz de vinte e oito anos, sossegado
e avaro. Esta era a fama que ele tinha no bairro; diziam que não gastava mais
de uma quarta parte dos vencimentos, emprestava a juros outra quarta parte, e
aferrolhava o resto. A mãe possuía uma casa: era um bom casamento para
Henriqueta. Ela, porém, recusou; deu como razão que não simpatizava com o
pretendente, e era isso mesmo. A mãe disse-lhe que a simpatia viria depois; e,
uma vez que ele não lhe repugnava, podia casar. Conselhos vãos; Henriqueta
declarou que só casaria com quem lhe merecesse. O candidato ficou triste, e foi
verter a melancolia no seio da irmã de Henriqueta, que não só acolheu a
melancolia, como principalmente o melancólico, e os dois casaram-se no fim de
três meses.
— Então? dizia Henriqueta rindo. O casamento
e a mortalha...
Eu, pela minha parte, fiquei contente com a
recusa da moça; mas, ainda assim, não atinei se era isto uma sensação de amor.
Vieram as férias, e fui para o Sul.
No ano seguinte, tornei à casa de D. Cora. Já
então a outra filha estava casada, e ela morava só com Henriqueta. A ausência
tinha feito adormecer em mim o sentimento mal expresso do ano anterior, mas a
vista da moça acendeu-o outra vez, e então não tive dúvida, conheci o meu
estado, e deixei-me ir.
Henriqueta, porém, estava mudada. Ela era
alegre, muito alegre, tão alegre como a mãe. Vivia cantando; quando não
cantava, espalhava tanta vida em volta de si, que era como se a casa estivesse
cheia de gente. Achei-a outra; não triste, não silenciosa, mas com intervalos
de preocupação e cisma. Achei-a, digo mal; no momento da chegada apenas tive
uma impressão leve e rápida de mudança; o meu próprio sentimento encheu o ar
ambiente, e não me permitiu fazer logo a comparação e a análise.
Continuamos a vida de outro tempo. Eu ia
conversar com elas, à noite, às vezes os três sós, outras vezes com alguma
pessoa conhecida da vizinhança. No quarto ou quinto dia, vi ali um personagem
novo. Era um homem de trinta anos, mais ou menos, bem parecido. Era dono de uma
farmácia do Engenho Velho, e chamava-se Fausto.
Éramos os únicos homens, e não só não nos vimos com prazer, mas até estou que
nos repugnamos intimamente um ao outro.
Henriqueta não me pareceu que o tratasse de
um modo especial. Ouvia-o com prazer, acho eu; mas não me ouvia com desgosto ou
aborrecimento, e a igualdade das maneiras tranquilizou-me nos primeiros dias.
No fim de uma semana, notei alguma coisa mais. Os olhos de ambos procuravam-se,
demoravam-se ou fugiam, tudo de um modo suspeito. Era claro que, ou já se
queriam, ou caminhavam para lá.
Fiquei desesperado. Chamei-me todos os nomes
feios: tolo, parvo, maricas, tudo. Gostava de Henriqueta, desde o ano anterior,
vivia perto dela, não lhe disse nada; éramos como estranhos. Vem um homem
estranho, que nunca a vira provavelmente, e fez-se ousado. Compreendi que a
resolução era tudo, ou quase tudo. Entretanto, refleti que ainda podia ser
tempo de resgatar o perdido, e tratei, como se diz vulgarmente, de deitar barro
à parede. Fiz-me assíduo, busquei-a, cortejei-a. Henriqueta pareceu não
entender, e não me tratou mal; quando, porém, a insistência da minha parte foi
mais forte, retraiu-se um pouco, outro pouco, até chegar ao estritamente
necessário nas nossas relações.
Um dia, pude alcançá-la no quintal da casa, e
perguntei-lhe se queria que me fosse embora.
— Embora? repetiu ela.
— Sim, diga se quer que eu vá embora.
— Mas como é que hei de querer que o senhor
se vá embora?
— Sabe como, disse-lhe eu dando à voz um tom
particular.
Henriqueta quis retirar-se; eu peguei-lhe na
mão; ela olhou espantada para as casas vizinhas.
— Vamos, decida?
— Deixe-me, deixe-me, respondeu ela.
Puxou a mão e foi para dentro. Eu fiquei
sozinho. Compreendi que ela pertencia ao outro, ou pelo menos, não me pertencia
absolutamente nada. Resolvi mudar-me; à noite fui dizê-lo à mãe, que olhou
espantada para mim e perguntou-me se me tinham feito algum mal.
— Nenhum mal.
— Mas então...
— Preciso mudar-me, disse eu.
D. Cora ficou abatida e triste. Não podia
atinar com a causa; e pediu-me que esperasse até o fim do mês; disse-lhe que
sim. Henriqueta não estava presente, e eu pouco depois saí. Não as vi durante
três dias. No quarto dia, achei Henriqueta sozinha na sala; ela veio para mim,
e perguntou-me por que motivo ia sair da casa. Calei-me.
— Sei que é por mim, disse ela.
Não lhe disse nada.
— Mas que culpa tenho eu se...
— Não diga o resto. Que culpa tem de não
gostar de mim? Na verdade, nenhuma culpa; mas, se eu gosto da senhora, também
não tenho culpa, e, nesse caso, para que castigar-me com a sua presença
forçada?
Henriqueta ficou alguns minutos calada,
olhando para o chão. Tive a ingenuidade de supor que ela ia aceitar-me, só para
não ver-me ir; acreditei ter vencido o outro, e iludia-me. Henriqueta pensava
no melhor modo de me dizer uma coisa difícil; e afinal, achou-o, e foi o modo
natural, sem reticências nem alegorias. Pediu-me que ficasse, porque era um
modo de ajudar as despesas da mãe; prometia-me, entretanto, que apareceria o
menos que pudesse. Confesso-lhes que fiquei profundamente comovido. Não achei
nada que responder; não podia teimar, não queria aceitar, e, sem olhar para
ela, sentia que faltava pouco para que as lágrimas lhe saltassem dos olhos. A
mãe entrou; e foi uma fortuna.
CAPÍTULO
3
Veríssimo interrompeu a narração, porque
algumas moças entraram a buscá-la. Faltavam pares; não admitiam demora.
— Dez minutos, ao menos?
— Nem dez.
— Cinco?
— Cinco apenas.
Elas saíram; ele concluiu a história.
— Retirado ao meu quarto, meditei cerca de
uma hora no que me cumpria fazer. Era duro ficar, e eu chegava a achar até
humilhante; mas custava-me desamparar a mãe, desprezando o pedido da filha.
Achei um meio-termo; ficava pensionista como era; mas passaria fora a maior
parte do tempo. Evitaria a combustão.
D. Cora sentiu naturalmente a mudança, ao
cabo de quinze dias; imaginou que eu tinha algumas queixas, rodeou-me de
grandes cuidados, até que me interrogou diretamente. Respondi-lhe o que me veio
à cabeça, dando à palavra um tom livre e alegre, mas calculadamente alegre,
quero dizer com a intenção visível de fingir. Era um modo de pô-la no caminho
da verdade, e ver se ela intercedia em meu favor.
D. Cora, porém, não entendeu nada.
Quanto ao Fausto,
continuou a frequentar a casa, e o namoro de Henriqueta acentuou-se mais.
Candinha, a irmã dela, é que me contava tudo, — o que sabia, ao menos, — porque
eu, na minha raiva de preterido, indagava muito, tanto a respeito de Henriqueta
como a respeito do boticário. Assim é que soube que Henriqueta gostava cada vez
mais dele, e ele parece que dela, mas não se comunicavam claramente. Candinha
ignorava os meus sentimentos, ou fingia ignorá-los; pode ser mesmo que tivesse
o plano de substituir a irmã. Não afianço nada, porque não me sobrava muita
penetração e frieza de espírito. Sabia o principal, e o principal era bastante
para eliminar o resto.
O que soube dele é que era viúvo, mas tinha
uma amante e dois filhos desta, um de peito, outro três anos. Contaram-me mesmo
alguns pormenores acerca dessa família improvisada, que não repito por não
serem precisos, e porque as moças estão esperando na sala. O importante é que a
tal família existia.
Assim se passaram dois longos meses. No fim
desse tempo, ou mais, quase três meses, — D. Cora veio ter comigo muito alegre;
tinha uma notícia para dar-me, muito importante, e queria que eu adivinhasse o
que era, — um casamento.
Creio que empalideci. D. Cora, em todo caso,
olhou para mim admirada, e, durante alguns segundos, fez-se entre nós o mais
profundo silêncio. Perguntei-lhe afinal o nome dos noivos; ela disse-me a custo
que a filha Candinha ia casar com um amanuense de secretaria. Creio que
respirei; ela olhou para mim ainda mais espantada.
A boa viúva desconfiou a verdade. Nunca pude
saber se ela interrogou a filha; mas é provável que sim, que a sondasse, antes
de fazer o que fez daí a três semanas. Um dia, vem ter comigo, quando eu
estudava no meu quarto; e, depois de algumas perguntas indiferentes, variadas e
remotas, pediu-me que lhe dissesse o que tinha. Respondi-lhe naturalmente que
não tinha nada.
— Deixe-se de histórias, atalhou ela. Diga-me
o que tem.
— Mas o que é que tenho?
— Você é meu filho; sua mãe autorizou-me a
tratá-lo como tal. Diga-me tudo; você tem alguma paixão, algum...
Fiz um gesto de ignorância.
— Tem, tem, continuou ela, e há de me dizer o
que tem. Talvez tudo se esclareça se alguém falar, mas não falando, ninguém...
Houve e não houve cálculo nestas palavras de D.
Cora; ou, para ser mais claro, ela estava mais convencida do que dizia. Eu
supunha-lhe, porém, a convicção inteira, e caí no laço. A esperança de poder
arranjar tudo, mediante uma confissão à mãe, que me não custava muito, porque a
idade era própria das revelações, deu asas às minhas palavras, e dentro de
poucos minutos, contava eu a natureza dos meus sentimentos, sua data, suas
tristezas e desânimos. Cheguei mesmo a contar a conversação que tivera com
Henriqueta, e o pedido desta. D. Cora não pôde reter as lágrimas. Ela ria e
chorava com igual facilidade; mas naquele caso, a ideia de que a filha pensara
nela, e pedira um sacrifício por ela, comoveu-a naturalmente. Henriqueta era a
sua principal querida.
— Não se precipite, disse-me ela no fim: eu
não creio no casamento com o Fausto;
tenho ouvido umas coisas... bom moço, muito respeitado, trabalhador e honesto.
Digo-lhe que me honraria com um genro assim; e a não ser você, preferia a ele.
Mas parece que o homem tem umas prisões...
Calou-se, à espera que eu confirmasse a
notícia; mas não respondi nada. Cheguei mesmo a dizer-lhe que não achava
prudente indagar mais nada, nem exigir. Eu no fim do ano tinha de retirar-me; e
lá passaria o tempo. Provavelmente disse ainda outras coisas, mas não me
lembro.
A paixão dos dois continuou, creio que mais
forte, mas singular da parte dele. Não lhe dizia nada, não lhe pedia nada;
parece mesmo que não lhe escrevia nada. Gostava dela; ia lá com frequência,
quase todos os dias.
D. Cora interveio um dia francamente, em meu
favor. A filha não lhe disse coisa diferente do que me dissera, nem com outra
hesitação. Respondeu que não se pertencia, e, quando a mãe exigiu mais, disse
que amava ao Fausto, e casaria com
ele, se ele a pedisse, e nenhum outro, ao menos por enquanto. Ele não a pedia,
não a soltava; toda a gente supunha que a razão verdadeira do silêncio e da
reserva era a família de empréstimo. Vieram as férias; fui para o Rio Grande,
voltei no ano seguinte, e não tornei a morar com D. Cora.
Esta adoeceu gravemente e morreu. Cândida, já
casada, foi quem a enterrou; Henriqueta foi morar com ela. A paixão era a
mesma, o silêncio o mesmo, e a razão provavelmente não era outra, senão a
mesma. D. Cora pediu a Henriqueta, na véspera de expirar, que casasse comigo.
Foi Henriqueta mesma quem me contou o pedido, acrescentando que lhe respondeu
negativamente.
— Mas que espera a senhora? disse-lhe eu.
— Espero em Deus.
O tempo foi passando, e os dois amavam-se do
mesmo modo. Candinha brigou com a irmã. Esta fez-se costureira na tal casa da
Rua da Carioca, honesta, séria, laboriosa, amando sempre, sem adiantar nada,
desprezando o amor e a abastança que eu lhe dava, por uma ventura fugitiva que
não tinha... Tal qual como na trova popular...
— Qual trova! nem meia trova! interromperam
as moças invadindo o gabinete. Vamos dançar.
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