11/03/2017

Canção eslava (Conto), de Virgílio Várzea


Canção eslava
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Junto à borda oscilante, sobre a larga tolda do vapor, num recanto isolado dos balaustres de popa, onde se erguia o camarim do comando e o homem do leme fazia girar vivamente as malaquetas da roda, em meio de contínuos balanços, ele olhava tristemente, pela vez derradeira, as formas recortadas e vagas das montanhas da costa, que se esfuminhavam docemente à distância, no azulamento fosco do céu. E, torturado de saudade, o espírito abatido, numa imensa desolação, sob aquele apartamento cruel, que o destino lhe impusera subitamente, com a costumada possança esmagadora, calado, a cabeça pendida, indiferente a tudo e a todos, como num sonambulismo, o pobre rapaz sonhador ia desfiando lentamente em silenciosas convulsões de choro, que o sufocavam por vezes, a romanza enternecedora de todos os afetos, que vicejavam já, em estelar florescência, a primeira estância deliciosa da sua mocidade de ouro.

O crepúsculo caía para os lados da proa, em vasta faixa purpúrea, que se esbatia no alto num cor de rosa saudoso. As águas, aí, nesse limite aparente e longínquo do oceano, estavam sulcadas de longos tuyautés tremulantes de mica. E lá acima, no zênite do firmamento, as primeiras sombras da noite rolavam já, em todas as direções, com a sua gaze leve e flutuante de cinza. Em volta, no convés balouçante, em recantos afastados, alguns passageiros mais rijos, que o enjoo não dispersara ainda, apesar dos vagalhões, olhavam também melancolicamente, numa vaga palração cismadora, ora o esplendor do crepúsculo dolente, ora a barra escura da costa, recuando aos poucos, recuando sempre, ao longe...

E o rapaz, isolado e soturno, cada vez mais alheado de tudo, fixava ainda os lados onde o litoral se afundava, num profundo recolhimento, sob o bando das recordações. Em seu cérebro desolado, bailavam agora, numa pungência nostálgica, todas as queridas visões da sua infância passada. E nesse embevecimento íntimo e nessa dolorosa saudade, as angústias daquela separação pareciam adormecer por instantes, como embaladas na doçura inefável de um carinho ou de uma bênção, no fundo da sua alma sangrando. Mas a noite descia, muda e lutulenta, envolvendo céu e mar num pó denso de carvão. E o ar todo foi-se cobrindo lentamente de uma miríade infinita de pontos de ouro flamante, que riscavam aqui e além dum traço vivo de fogo a cava funda das ondas.

Ele então, debruçado da balaustrada oscilante, ergueu para o alto, instintivamente, os seus olhos melancólicos — e quedou-se a olhar as incomparáveis estrelas, juncando faustosamente o Espaço de pedrarias estranhas.

O seu espírito ficou pairando longo tempo, todo preso no esplendor sideral e numa mística abstração, invadido de um profundo sabaísmo, quando um cântico soou de repente à proa, lá embaixo no convés, por entre-vante da tolda — trêmulo e rouco como uma canção de degredo, ou um gemer arrastado e opresso de almas anelantes. Eram os imigrantes eslavos, cantando em coro uma dessas canções nevoentas e saudosas, mas cheias de uma idealidade afetiva, das suas terras brancas do Norte. Saturados ainda da tristeza da vasta travessia atlântica, a alma pesada de nostalgia, na recordação embaladora e perpétua da Pátria distante, expandiam-se resignadamente, deixando voar para o Azul, para as constelações, numa vaga melopeia rítmica, a sua dor de exilados, que se fundia por vezes desoladoramente, nos sonoros smorzandos, com a plangente sinfonia dos cabos e o ciciar funerário do vento nas vergas.

Arrancado subitamente assim, ao êxtase constelar do seu Sonho rolando pelas estrelas, baixou os olhos tristemente sobre aquela massa fervilhante de gente, apertada entre as amuradas de proa como um humilde rebanho, e de onde se erguia aquele canto dolente que reavivava em seu peito as puas finas da dor. A noite, em redor, tornara-se mais densa na sua negrura de tinta, enquanto no alto as gotas de ouro dos astros radiavam, mais vívidas e trêmulas. O mar todo tinha a suntuosidade trágica de um manto de veludo sinistro, estendendo-se sobre uma planura sem fim e cujas dobras movediças ondulavam continuamente, aqui e além, recamadas de clarões azulinos e de um vago reluzir de lantejoulas.

O canto cessara como alados gemidos sem bênção, e tudo recaiu num leve murmúrio de ondas e nos ruídos esparsos do vapor, singrando vigorosamente para vante, contra a aragem do largo, que aumentava de sinfonia gemente. No horizonte, a Leste, vinha apontando agora uma tênue barra de claridade láctea, que vestia as águas, ao longe, de vastas placas argênteas. E, daí a instantes, a lua surgia maravilhosamente, cobrindo a amplidão com o seu imenso velário de tule.

Então, à proa, junto ao castelo, na amurada de bombordo, onde batia em cheio o luar, uma figura esguia e branca de mulher ergueu-se, do meio da massa negra fervilhante dos imigrantes eslavos: e uma voz suavíssima abriu voo na noite, num ritmo lento e balançado, como um fio de melodia saudosa.

Era uma dessas canções gemedoras de terras rurais nalgum platô do Kerson, onde o homem se bate com o solo, ao vento e à chuva, ao calor e à neve, numa labuta constante. Os versos diziam, na sua cadência vagarosa e lânguida, o custoso revolver da terra ao clarear das manhãs, o sulcar das charruas para as primeiras plantações, a capinação incessante dos terrenos gramosos, o verdejar alegre das plantas, o crescer florescente das hastes, o amadurecer das espigas, o amoroso cantar das ceifeiras e o reluzir profuso dos grãos, em montões alterosos, no meio da palha fofa. Tudo isso de envolta com as alegrias, as esperanças, as tristezas e as desgraças dos pobres mujiques louros. E as estrofes finais davam a emoção psicológica, o esquisso vago e vaporoso de um idílio de campo, na amplidão rasa de uma estepe sem termo, ao badalar plangente do Ângelus numa torre de campanário longínquo, à margem de um rio espelhante, onde dois jovens se enlaçam e beijam enternecidamente, num último adeus de colheita acabada, sob um poente de sangue...

Todos, à ré, já haviam adormecido no silêncio das cabines, sob a sonolência das altas horas de bordo, em meio aos contínuos balanços. Só, sobre a tolda, o rapaz enlevava-se, sonhando os seus amores passados na sua aldeia distante, embalado espiritualmente pelo som acariciador e bendito da campesina canção. E a rapariga eslava, magnífica ao luar, numa alvura de Visão, de pé contra a borda, apoiada às enxárcias, o belo rosto de opala voltado para o céu, como num embevecimento, soltava ao vento e às ondas, apaixonadamente, as notas deliciosas daquela balada branca...

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