Caim, Caim e o resto
(Os Contos de Belazarte)
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Belazarte me contou:
Talvez ninguém reparasse, nem
eles mesmo, porém foi sim, foi depois daquela noite, que os dois começaram
brigando por um nada. Dois manos brigando desse jeito, onde se viu! E dantes
tão amigos... Pois foi naquela noite. Sentados um a par do outro, olhavam a
quermesse. O leilão estava engraçado. O Sadresky dera três mil-réis por um
cravo da Flora, êta mulatinha esperta! Também com cada olhão de jabuticaba
rachada, branco e preto luzindo melado, ver suco de jabuticaba mesmo... onde
estará ela agora? até com seu doutor Cerquinho!...
— Você foi pagar a conta pra ele,
Aldo?
— Já.
Contemplavam o povo entrançado no
largo. Seguiam um, seguiam outro, pensando só com os olhos. Nem trocavam
palavra, não era preciso mais: se conheciam bem por dentro. De repente
viraram-se um pro outro como pra espiar onde que o mano olhava. Aldo fixou
Tino. Tino não quis retirar primeiro os olhos. Olho que não pestaneja cansa
logo, fica ardendo que nem com areia e pega a relampear. Quatro fuzis, meu
caro, quatro fuzis de raiva. Nem raiva, era ódio já. Aldo fez assim um jeito de
muxoxo pro magricela do irmão, riu com desprezo. Tino arreganhou o focinho como
gato assanhado.
Se separaram. Aldo foi falar com
uns rapazes, Tino foi falar com outros. As vinte-e-duas horas tudo se acabava
mesmo... voltaram pra casa. Mas cada qual vinha numa calçada. Braço a torcer é
que nenhum não dava, não vê! Dentro do quarto brigaram. Por um nadinha, questão
de roupa na guarda da cama. Dona Maria veio saber o que era aquilo espantada.
Foi uma discussão temível.
Da discussão aos murros não levou
três dias. E por quê? Ninguém sabia. A verdade é que a vida mudou pra aqueles
três. Inútil a mãe chorar, se lamentar, até insultando os filhos. Quê! nem se o
defunto marido estivesse inda vivo!... Pegou fogo e a vida antiga não voltava mais.
E dantes tão irmãos um do
outro!... Aldo até protegia Tino que era enfezado, cor escura. Herdara o
brasileiro do pai, aquela cor cainha que não dava nada de si e uns musculinhos
que nem o trabalho vivo de pedreiro consertava. Quando tirava fora a camisa pra
se lavar no sábado, qual! mesmo de camisa e paletó, as espáduas pousavam sobre
o dorso curvo como duas asas fechadas.
E era mesmo um anjo o Tino, tão
quietinho! humilde, talhado pra sacristão. Cantava com voz fraca muito bonita,
principalmente a Mamma mia num
napolitano duvidoso de bairro da Lapa. Quando depois da janta, fazendo algum
trabalhinho, lá dentro ele cantava, Aldo junto da janela sentia-se orgulhoso se algum passante parava escutando. Se o tal não parava, Aldo punha este
pensamento na cachola: “Esse não gosta de música... estúpido.” Que alguém não
apreciasse a voz do Tino, isso Aldo não podia pensar porque adorava o mano.
Era bem forte, puxara mais a mãe
que o pai. Só que a gordura materna se transformava em músculos no corpo
vermelho dele. Pois então, percebendo que os outros abusavam do Tino, não
deixava mais que o irmão se empregasse isolado, estavam sempre juntos na
construção da mesma casa. Ganhavam bem.
Naquela casinha do bairro da
Lapa, a vida era de paraíso. Dona Maria lavava o que não dava o dia. O defunto
marido, uma pena morrer tão cedo! fora assinzinho... Homem, até fora bom,
porque isso de beber no sábado, quem que não bebe!... Paciência, lavando também
se ganha. Além disso, logo os filhos tão bonzinhos principiaram trabalhando. Se a Lina fosse viva... que bonita!... Felizmente os filhos a consolavam. Lhe
entregavam todo o dinheiro ganho.
Gente pobre e assim é raro.
— Meus filhos, mas vocês podem
precisar... Então tomem.
Aqueles dois dez mil-réis duravam
quase o mês inteirinho. Fumar não fumavam. Uma guaraná 110 domingo, de vez em
quando a entrada no Recreio ou no Carlos Gomes recentemente inaugurado, nos
dias dos filmes com muito anúncio.
Mas no geral os manos passavam os
descansos junto da mãe. No verão iam pra porta, aquelas noites mansas, imensas
da Lapa.. . Pião, tlão, tralharão, tão, plão, plãorrrrr... bonde passava. E o
silêncio. A casa ficava um pouco apartada, sem vizinhos paredes-meias. Na
frente, do outro lado da rua, era o muro da fábrica, tal-e-qual uma cinta de
couro separando a terra da noite esbranquiçada pela neblina. Chaminés. A
cinquenta metros outras casas. O cachorro latia, uau, uau... uau...
— Pedro diz que vai deixar o
emprego. Silêncio.
— Vamos no jogo domingo, Tino?
— Não vale a pena, o Palestra vai
perder. Bianco não joga.
— Mas Amílcar.
— Você com seu Amílcar! Silêncio.
Tino não queria ir.
— E tanto pessoal, Aldo...
— Você quer, a gente vai cedo.
Silêncio. Aldo acabava fazendo a
vontade do irmão.
Às vezes também algum camarada
vinha conversar.
Agora? até já se comenta. Mãe que
descomponha, que insulte... Mais chora que descompõe, a coitada! Lá estão os
dois discutindo, ninguém sabe por quê. De repente, tapas. E Tino não apanha
mais que o outro, não pense, é duma perversidade inventiva extraordinária. O
irmão acaba sempre sofrendo mais do que ele. Aldo é mais forte e por isso
naturalmente mais saranga. Porém paciência se esgota um dia, e quando se
esgotava era cada surra no irmão! Tino ficava com a cara vermelha de tanta
bofetada. Um pouco tonto dos socos. Aldo porém tinha sempre uma mordida, uma
alfinetada, coisa assim com perigo de arruinar. Os estragos da briga duravam
mais tempo nele.
Não se falavam mais. E agora cada
qual andava num emprego diferente. O mais engraçado é que quando um ia no
cinema o outro ia também. Sempre era o Tino que espiava Aldo sair, saía atrás.
Nunca iam à missa. De religião só
tirar o chapéu quando passavam pela porta das igrejas. Por que tiravam não
sabiam, tinham visto o pai fazer assim e muita gente fazia assim, faziam
também, costume. Isso mesmo quando não estavam com algum companheiro que era
fachista e anticlerical porque lera no Fanfulla. Então passavam muito
indiferentes, mãos nos bolsos talvez. E não sentiam remorso algum.
Pois nesse domingo foram à N. S.
da Lapa outra vez. Agora que estavam maus filhos, maus irmãos, enfim maus
homens, davam pra ir na missa! Quando a reza acabou ficaram ali, no adro da
igreja meia construída, cada um do seu lado, já sabe. Tino à esquerda da porta,
Aldo à direita. Toda a gente foi saindo e afinal tudo acabou. Ficaram apenas
alguns rapazes proseando.
Aldo voltou pra casa com uma
tristeza, Tino com outra que, você vai ver, era a mesma. Até se sentiram mais
irmãos por um minuto. Minuto e meio. Desejos de voltar à vida antiga... Era só
cada um chegar até no meio da rua, pronto: se abraçavam chorando,
“Fratello!...” Que paz viria depois! Mas, e o desespero, então? onde que leva?
Reagiram contra o sentimento bom. Uma raiva do irmão... Uma raiva iminente do
irmão. Dali, iam só procurar o primeiro motivo e agora que tinham mais essa
tristeza por descarregar, temos tapa na certa.
Chegaram em casa e dito-e-feito:
brigaram medonhamente. Porca la miséria, dava medo! Se engalfinharam mudos.
Aldo, subia o sangue no rosto dele, tinha os olhos que nem fogaréu. Derrubou o
mano, agarrou o corpo do outro entre os joelhos e páa! Tino se ajeitando,
rilhava os dentes, muito pálido, engolindo tunda numa conta. A janela estava
aberta... Dona Maria no quintal, não sei se ouviu, pressentiu com certeza,
coitada! era mãe... ia entrar. Porém teve que saudar primeiro a conhecida que
vinha passando no outro lado da rua. Até quis botar um riso na boca pra outra
não desconfiar.
— Sabe, dona Maria, a conhecida
gritava de lá, a Teresinha vai casar! Com o Alfredo.
— Ahn...
— Pois é. De repente. Bom, até
logo.
— Té-logo.
O soco parou no ar, inútil, os
dois manos se olharam. Viram muito bem que não havia mais razão pra brigas
agora. Não havia mesmo, deviam ser irmãos outra vez. A felicidade voltava na
certa e aquele sossego antigo... O soco seguiu na trajetória, foi martelar na
testa do Tino, peim! seco, seco. Tino com um jeito rápido, histérico, não sei
como, virou um bocado entre as pernas de Aldo. Conseguiu com as mãos livres
agarrar o pulso do outro. Encolheu-se todinho em bola e mordeu onde pôde, que
dentada! Aldo puxou a mão desesperado, pleque! sofreu com o estralo do dedo que
não foi vida. Mas por ver sangue é que cegou.
— Morde agora, filho-da-puta!
Na garganta. Apertou. Dona Maria
entrava.
— Meu filho!
— Morde agora!
Tino desesperado buscava com as
mãos alargar aquele nó, sufocava. Encontrou no caminho a mão do outro e uma
coisa pendente, meia solta, molhada, agarrou. E num esforço de última vida,
puxou pra ver se abria a tenaz que o enforcava. Dona Maria não conseguia
separar ninguém. Tino puxou, que eu disse, e de repente a mão dele sem mais
resistência riscou um semicírculo no ar. Foi bater no chão aberta
ensanguentada, atirando pra longe o dedo arrancado de Aldo.
— Morde agora!
Tino se inteiriçando. Abriu com
os dentes uma risada lateral, até corara um pouco. Dona Maria chegava só ao
portãozinho, gritando. Não podia ir mais além, lhe dava aquela curiosidade
amorosa, entrava de novo. Tino se inteiriçando. Ela saía outra vez:
— Socorro! meu filho!
Meu Deus, era domingo! entrava de
novo. Batia com os punhos na cabeça. Pois batesse forte com um pau na cabeça do
Aldo! Mas quem disse que ela se lembrava de bater!
— Socorro! meu filho morre!
Entrava. Saía. Às vezes dava umas
viravoltas, até parecia que estava dançando...
Balancez, tour, era horrível.
O primeiro homem que acorreu já
chegou tarde. E só três juntos afinal conseguiram livrar o morto das mãos do
irmão. Aldo como que enlouquecera, olho parado no meio da testa, boca aberta
com uns resmungos ofegantes.
Levaram ele preso. Dona Maria é
que nem sei como não enlouqueceu de verdade. Berrava atirada sobre o cadáver do
filho, porém quando o outro foi-se embora na ambulância, até bateu nos
soldados. Foram brutos com ela. Esses soldados da Polícia são assim mesmo,
gente mais ordinária que há! uma mãe... compreende-se que tivesse atos
inconscientes! pois tivessem paciência com ela! Que paciência nem mané
paciência! em vez, davam cada empurrão na pobre...
— Fique quieta, mulher, senão
levo você também!
Fecharam a portinhola e a sereia
cantou numa fermata de “Addio” rumo da correição.
Seguiu-se toda a miséria do
aparelho judiciário. Solidão. Raciocínio. O julgamento. Aldo saiu livre. Pra
que vale um dedo perdido? Caso de legítima defesa complicada com perturbação de
sentidos, é lógico, art. 32, art. 27 § 40... A medicina do advogadinho salvou o
réu.
Recomeçou no trabalho. Muito
silencioso sempre, sossegado, parecia bom. Às vezes parava um pouco o gesto
como que refletindo. Afinal todos na obra acabaram esquecendo o passado e Aldo
encontrou simpatias. Camaradagens até. Não: camaradagem não, porque não dava
mais que duas palavras pra cada um. Mas muitos operários simpatizavam com ele.
São coisas que acontecem, falavam, e a culpa fora do mano, a prova é que Aldo
saíra livre. E o dedo.
Mas o caso não terminou. Um dia
Aldo desapareceu e nem semana depois encontraram ele morto, já bem podrezinho,
num campo. Quem seria? Procura daqui, procura dali, a Polícia de São Paulo,
você sabe, às vezes é feliz, acabaram descobrindo que o assassino era o marido
da Teresinha.
E por que, agora! Ninguém não
sabia. A pobre da Teresinha é que chorava agarrada nos dois filhinhos
imaginando por que seria que o marido matara esse outro. De que se lembrava
muito vagamente, é capaz que dancei com ele numa festa? Mas não lembrava bem,
tantos moços... E não pertencera ao grupinho dela. Mas que o Alfredo era bom,
ela jurava.
— Meu marido está inocente!
repetia cem vezes inúteis por dia.
O Alfredo gritava que fora
provocado, que o outro o convidara pra irem ver uma casa, não sei o quê! pra
irem ver um terreno, e de repente se atirara sobre ele quando atravessavam o
campo... Então pra que não veio contar tudo logo! Em vez: continuou tranquilo
indo no serviço todo santo dia, muito satisfeito..., que “facínora”! Toda a
gente estava contra ele, o Aldo tão quieto!...
O advogado devassou a série
completa dos argumentos de defesa própria. E lembrou com termos convincentes
que o Alfredo era bom. Afinal vinte-e-dois anos de honestidade e
bom-comportamento provam alguma coisa, senhores jurados! E a Teresinha com as
duas crianças ali, chorosa... Grupo comovente. O maior, de quinze meses,
procurava enfiar o caracaxá vermelho na boca da mãe. Não brinque com essa
história de isolar sempre que falo em mãe, o caso é triste. Pois tudo inútil, o
criminoso estava com todos os dedos. Foi condenado a nem sei quantos anos de
prisão.
A Terezinha lavava roupa,
costurava, mas qual! com filho de ano e pouco e outro mamando, trabalhava mal.
E, parece incrível! inda por cima com a mãe nas costas, velha, sem valer nada...
Se ao menos soubesse aonde que estavam esses irmãos pelas fazendas... Mas não
ajudariam, estou certo disso, uns desalmados que nunca deram sinal de si...
Então desesperava, ralhava com a mãe, dava nos pequenos que era uma judiaria.
A sogra, essa quando chegava até
o porão da nora, trazia uma esmola entre pragas, odiava a moça. Adivinhava
muito, com instinto de mãe, e odiava a moça. Amaldiçoava os netos. Os dez mil-réis
sobre um monte de insultos ficavam ali atirados, aviltantes, relumeando no
escuro. Teresinha pegava neles, ia comprar coisas pra si, pros filhos, como
ajudavam! Ainda sobrava um pouco pra facilitar o pagamento do aluguel no mês
seguinte. Mas não lhe mitigavam a desgraça.
Também lhe faziam propostas, que
inda restavam bons pedaços de mulher no corpo dela. Recusava com medo do marido
ao sair da prisão, um assassino, credo!
Teresinha era muito infeliz.
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