Brincar com fogo
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
CAPÍTULO
1
Lúcia e Maria chamavam-se as duas moças. A
segunda era antes conhecida pelo diminutivo Mariquinhas que neste caso estava
perfeitamente com a estatura da pessoa.
Mariquinhas era pequenina, refeitinha e
bonitinha; tinha a cor morena, os olhos pretos, ou quase pretos, mãos e pés
pouco menos invisíveis. Entrava nos seus dezoito anos, e contava já cerca de
seis namoros consecutivos. Atualmente não tinha nenhum.
Lúcia era de estatura meã, tinha olhos e
cabelos castanhos, pés e mãos regulares e proporcionados ao tamanho do corpo, e
a tez clara. Deitava já pelas costas os dezoito e entrava nos dezenove. Namoros
extintos: sete.
Tais eram as duas damas de cuja vida vou
contar um episódio original, que servirá de aviso às que se acharem em iguais
circunstâncias.
Lúcia e Mariquinhas eram muito amigas e quase
parentas. O parentesco não vem ao caso, e por isso bastará saber que a primeira
era filha de um velho médico — velho em todos os sentidos, porque a ciência
para ele estava no mesmo ponto em que ele a conheceu em 1849. Mariquinhas já
não tinha pai; vivia com sua mãe, que era viúva de um tabelião.
Eram íntimas amigas como disse acima, e sendo
amigas e moças, eram naturais confidentes uma da outra. Namoro que uma
encetasse era logo comunicado à outra. As cartas eram redigidas entre ambas,
quando se achavam juntas ou simplesmente comunicadas por cópia no caso
contrário. Algum beijo casual e raro que uma delas houvesse colhido ou
concedido não deixava de ser contado à outra, que fazia o mesmo em idênticas
circunstâncias.
Os namoros de que falo não eram com intenções
casamenteiras. Nenhuma delas se sentia inclinada ao matrimônio — pelo menos,
com os indivíduos escolhidos. Eram passatempos, namoravam para fazer alguma
coisa, para ocupar o espírito ou simplesmente debicar o próximo.
Um dia a coisa seria mais grave, e nesse caso
as confidências seriam menos frequentes e completas. Tal dia, porém, não
chegara ainda, e as duas moças passavam pelas mais atrevidas roedoras de corda
que a natureza pôs no Bairro dos Cajueiros. Lúcia morava na Rua da Princesa, e
Mariquinhas na do Príncipe.
CAPÍTULO
2
Como se visitavam a miúdo, e passavam dias e
dias uma em casa da outra, aconteceu que pela Páscoa do ano de 1868 estavam
ambas à janela da casa de Lúcia, quando viram ao longe uma cara nova. Cara nova
quer dizer petimetre novo, ainda não explorador daquele bairro.
Efetivamente era a primeira vez que o Senhor
João dos Passos penetrava naquela região, conquanto nutrisse há muito tempo
esse desejo. Naquele dia, ao almoço resolveu que iria aos Cajueiros. A ocasião
não podia ser mais própria. Recebera do alfaiate a primeira calça da última
moda, fazenda finíssima, e comprara na antevéspera um chapéu fabricado em
Paris. Estava no trinque. Tinha certeza de causar sensação.
Era João dos Passos um rapaz de vinte e
tantos anos, estatura regular, bigode raro e barba rapada. Não era bonito nem
feio; era assim. Tinha alguma elegância natural, que ele exagerava com uns
meneios e jeito que dava ao corpo na ideia de que ficaria melhor. Era ilusão,
porque ficava péssimo. A natureza tinha-lhe dado uma vista agudíssima; a
imitação deu-lhe uma luneta de um vidro só, que ele trazia pendente de uma fita
larga ao pescoço. Fincava-a de quando em quando no olho esquerdo, sobretudo
quando havia moças à janela.
Tal foi a cara nova que as duas amigas
lobrigaram ao longe.
— Há de ser meu! dizia uma rindo.
— Não, senhora, aquele vem destinado à minha
pessoa, reclamava a outra.
— Fique-se lá com o Abreu!
— E você, porque não se fica com o Antonico?
— Pois seja à sorte!
— Não, há de ser a que ele preferir.
— Caluda!
João dos Passos aproximava-se. Vinha pela
calçada oposta, com a luneta assestada na janela em que as duas moças estavam.
Quando viu que não eram desagradáveis, antes mui simpáticas e galantes,
aperfeiçoou o jeitinho que dava ao corpo e entrou a fazer com a bengala de
junco passagens difíceis e divertidas.
— Bravíssimo! dizia Mariquinhas à amiga.
— Que tal? perguntava Lúcia.
E ambas cravavam os olhos em João dos Passos,
que, pela sua parte, tendo o olho direito desimpedido da luneta, podia ver
claramente que as duas belas olhavam para a sua pessoa.
Foi passando e olhando sem que elas tirassem
dele os olhos, o que sobremaneira comoveu o petimetre a ponto que o obrigou a
voltar a cabeça cinco ou seis vezes. Na primeira esquina, que ficava um pouco
distante, João dos Passos parou, tirou o lenço e enxugou a cara. Não havia
necessidade disso, mas era conveniente dizer uma espécie de adeus com o lenço,
quando o fosse guardar na algibeira. Feito isso, continuou João dos Passos o
seu caminho.
— É comigo! dizia Mariquinhas a Lúcia.
Lúcia
reclamava:
— Boas! Aquilo é comigo. Eu bem vi que ele
não tirava os olhos de mim. É um bonito rapaz...
— Talvez seja...
— Um pouco tolo?
— Não te parece?
— Talvez... Mas bonito é.
— Escusa de estar dizendo isso, porque ele é
meu...
— Não senhora, é meu.
E as duas amigas reclamavam com ardor, e a
rir, a pessoa do adventício gamenho, cuja preferência ainda estava por
declarar. Nesse debate gastaram cerca de vinte minutos quando viram apontar ao
longe a figura de João dos Passos.
— Lá vem ele!
— Está filado!
João dos Passos vinha outra vez pelo lado
oposto; a meio caminho, porém, atravessou a rua, com o fim evidente de
contemplar de perto as duas belas que teriam ao mesmo tempo ocasião de o
examinar melhor. Atrevo-me a dizer isto, porque João dos Passos não duvidava da
sua influência pessoal.
— Agora veremos com quem é a coisa, disse
Lúcia.
— Veremos, assentiu Mariquinhas.
João dos Passos aproximava-se com os olhos na
janela e bengala no ar. As duas moças não tiravam os olhos dele. O momento era
decisivo. Cada uma delas buscava chamar exclusivamente a atenção do rapaz, mas
a verdade é que ele olhava ora para uma, ora para outra, com a mesma expressão.
Na ocasião, porém, em que ele passava
justamente por baixo das janelas da casa, que era assobradada, Mariquinhas com
o ar sonso das namoradeiras de profissão, perguntou à outra:
— Você amanhã há de ir lá passar o dia na Rua
do Príncipe; sim?
A resposta de Lúcia foi dar-lhe um beliscão,
sem que uma nem outra desviassem os olhos de João dos Passos, o qual, chegando
a dez passos de distância, deixou cair a bengala, para ter ocasião de olhar
ainda uma vez para as duas moças. Na próxima esquina, lencinho fora, adeus
disfarçado, e movimento giratório de bengala, até que de todo desapareceu no
horizonte.
CAPÍTULO 3
Como se visitavam a miúdo, e passavam dias e
dias uma em casa da outra, aconteceu que pela Páscoa do ano de 1868 estavam
ambas à janela da casa de Lúcia, quando viram ao longe uma cara nova. Cara nova
quer dizer petimetre novo, ainda não explorador daquele bairro.
Efetivamente era a primeira vez que o Senhor
João dos Passos penetrava naquela região, conquanto nutrisse há muito tempo
esse desejo. Naquele dia, ao almoço resolveu que iria aos Cajueiros. A ocasião
não podia ser mais própria. Recebera do alfaiate a primeira calça da última
moda, fazenda finíssima, e comprara na antevéspera um chapéu fabricado em
Paris. Estava no trinque. Tinha certeza de causar sensação.
Era João dos Passos um rapaz de vinte e
tantos anos, estatura regular, bigode raro e barba rapada. Não era bonito nem
feio; era assim. Tinha alguma elegância natural, que ele exagerava com uns
meneios e jeito que dava ao corpo na ideia de que ficaria melhor. Era ilusão,
porque ficava péssimo. A natureza tinha-lhe dado uma vista agudíssima; a
imitação deu-lhe uma luneta de um vidro só, que ele trazia pendente de uma fita
larga ao pescoço. Fincava-a de quando em quando no olho esquerdo, sobretudo
quando havia moças à janela.
Tal foi a cara nova que as duas amigas
lobrigaram ao longe.
— Há de ser meu! dizia uma rindo.
— Não, senhora, aquele vem destinado à minha
pessoa, reclamava a outra.
— Fique-se lá com o Abreu!
— E você, porque não se fica com o Antonico?
— Pois seja à sorte!
— Não, há de ser a que ele preferir.
— Caluda!
João dos Passos aproximava-se. Vinha pela
calçada oposta, com a luneta assestada na janela em que as duas moças estavam.
Quando viu que não eram desagradáveis, antes mui simpáticas e galantes,
aperfeiçoou o jeitinho que dava ao corpo e entrou a fazer com a bengala de
junco passagens difíceis e divertidas.
— Bravíssimo! dizia Mariquinhas à amiga.
— Que tal? perguntava Lúcia.
E ambas cravavam os olhos em João dos Passos,
que, pela sua parte, tendo o olho direito desimpedido da luneta, podia ver
claramente que as duas belas olhavam para a sua pessoa.
Foi passando e olhando sem que elas tirassem
dele os olhos, o que sobremaneira comoveu o petimetre a ponto que o obrigou a
voltar a cabeça cinco ou seis vezes. Na primeira esquina, que ficava um pouco
distante, João dos Passos parou, tirou o lenço e enxugou a cara. Não havia
necessidade disso, mas era conveniente dizer uma espécie de adeus com o lenço,
quando o fosse guardar na algibeira. Feito isso, continuou João dos Passos o
seu caminho.
— É comigo! dizia Mariquinhas a Lúcia.
Lúcia reclamava:
— Boas! Aquilo é comigo. Eu bem vi que ele
não tirava os olhos de mim. É um bonito rapaz...
— Talvez seja...
— Um pouco tolo?
— Não te parece?
— Talvez... Mas bonito é.
— Escusa de estar dizendo isso, porque ele é
meu...
— Não senhora, é meu.
E as duas amigas reclamavam com ardor, e a
rir, a pessoa do adventício gamenho, cuja preferência ainda estava por
declarar. Nesse debate gastaram cerca de vinte minutos quando viram apontar ao
longe a figura de João dos Passos.
— Lá vem ele!
— Está filado!
João dos Passos vinha outra vez pelo lado
oposto; a meio caminho, porém, atravessou a rua, com o fim evidente de
contemplar de perto as duas belas que teriam ao mesmo tempo ocasião de o
examinar melhor. Atrevo-me a dizer isto, porque João dos Passos não duvidava da
sua influência pessoal.
— Agora veremos com quem é a coisa, disse
Lúcia.
— Veremos, assentiu Mariquinhas.
João dos Passos aproximava-se com os olhos na
janela e bengala no ar. As duas moças não tiravam os olhos dele. O momento era
decisivo. Cada uma delas buscava chamar exclusivamente a atenção do rapaz, mas
a verdade é que ele olhava ora para uma, ora para outra, com a mesma expressão.
Na ocasião, porém, em que ele passava
justamente por baixo das janelas da casa, que era assobradada, Mariquinhas com
o ar sonso das namoradeiras de profissão, perguntou à outra:
— Você amanhã há de ir lá passar o dia na Rua
do Príncipe; sim?
A resposta de Lúcia foi dar-lhe um beliscão,
sem que uma nem outra desviassem os olhos de João dos Passos, o qual, chegando
a dez passos de distância, deixou cair a bengala, para ter ocasião de olhar
ainda uma vez para as duas moças. Na próxima esquina, lencinho fora, adeus
disfarçado, e movimento giratório de bengala, até que de todo desapareceu no
horizonte.
CAPÍTULO 3
Lúcia disse coisas muito feias a Mariquinhas,
por causa da habilidade com que esta indicara ao rapaz a rua em que morava.
Mariquinhas repeliu dignamente as censuras de Lúcia, e ambas ficaram de acordo
em que João dos Passos era pouco menos que desfrutável.
— Se a coisa for comigo, dizia Mariquinhas,
eu prometo trazê-lo de canto chorado.
— E eu também, se a coisa for comigo, acudiu
Lúcia.
Ficou assentado esse plano.
No dia seguinte Mariquinhas voltou para casa,
mas nem na Rua do Príncipe nem na da Princesa, apareceu a figura de João dos
Passos. Aconteceu o mesmo nos outros dias, e já uma e outra das duas amigas
tinham perdido a esperança de o tornarem a ver, quando no domingo próximo
surgiu ele na Rua do Príncipe. Só Lúcia estava à janela, mas nem por isso
deixou de haver o cerimonial do domingo anterior.
— É comigo, pensou Lúcia.
E não se demorou em dar conta do ocorrido a
Mariquinhas num bilhete que às pressas lhe escreveu e remeteu por uma negrinha.
A negrinha partiu, e mal teria tempo de chegar à casa de Mariquinhas, quando um
moleque da casa desta entregava a Lúcia uma cartinha da sinhá-moça.
Dizia
assim: A coisa é comigo! Passou agora mesmo, e… não te digo mais nada.
A carta de Lúcia dizia pouco mais ou menos a
mesma coisa. Imagina-se facilmente o efeito deste caso; e sabido o caráter
galhofeiro das duas amigas facilmente se acreditará que na primeira ocasião
assentassem de caçoar com o petimetre, até então anônimo para elas.
Assim foi.
Na forma dos anteriores namoros ficou
assentado que as duas comunicariam uma à outra o que se fosse passando com o
namorado. Desta vez era a coisa ainda mais picante; a comparação das cartas apaixonadas
do mesmo homem devia ser coisa muito para divertir as duas amigas.
A primeira carta de João dos Passos às duas
moças começava assim: “. Falava-lhes da cor dos cabelos, única parte em que a
carta sofreu modificação. Quanto à ideia de matrimônio, havia um período em que
alguma coisa transluzia, sendo a linguagem a mesma, e igualmente apaixonada.
A primeira ideia de Mariquinhas e Lúcia foi
dar idêntica resposta ao novo namorado; mas a consideração de que semelhante
recurso o desviaria, fez com que repelissem a ideia, limitando-se ambas a
declarar a João dos Passos que alguma coisa sentiam por ele, e animando-o a
persistir na campanha.
João dos Passos não era homem de recusar
namoro. A facilidade que encontrara nas duas moças foi para ele uma grande
animação. Começou então um verdadeiro entrudo epistolar. João dos Passos
respondia pontualmente às namoradas; às vezes não se contentava com uma só
resposta, e mal despedira uma carta, logo carregava e disparava outra, todas
elas fulminantes e mortais. Nem por isso as moças deixavam de gozar perfeita
saúde.
Um dia — duas semanas depois da inauguração
do namoro —, João dos Passos a si mesmo perguntou se não era arriscado escrever
com a mesma letra às duas namoradas.
Sendo amigas íntimas era natural que
mostrassem as cartas uma à outra. Refletiu porém que se já houvessem mostrado
as cartas teriam descoberto o estratagema. Logo, não eram tão íntimas como
pareciam.
E se até agora não mostraram as cartas,
continuou João dos Passos, é provável que nunca mais as mostrem.
Qual era o fim de João dos Passos entretendo
este namoro? perguntará naturalmente o leitor.
Casar? Passar tempo? Uma e outra coisa.
Se dali surdisse um casamento, João dos
Passos o aceitaria de boa vontade, apesar de não lhe dar muito o emprego que
tinha na Casa da Misericórdia.
Se não surdisse casamento ficava ele ao menos
com a satisfação de haver passado alegremente o tempo.
CAPÍTULO
4
O namoro prosseguiu assim durante alguns
meses.
As duas amigas comunicavam regularmente as cartas
e redigiam prontas as respostas. Às vezes divertiam-se em dificultar-lhe a
situação. Por exemplo, uma dizia que iria ver tal procissão da rua tal número
tantos, e que o esperava à janela às tantas horas, ao passo que a outra marcava
a mesma hora para o esperar à janela de sua casa. João dos Passos arranjava
como podia o caso, sem escapar nunca aos arrufos de uma delas, coisa que o
lisonjeava sobremaneira.
As expressões amorosas das cartas de
Mariquinhas e Lúcia eram contrastadas pelas boas caçoadas que faziam do
namorado.
— Como vai o bobo?
— Cada vez melhor.
— Ontem, voltou-se tanto para trás, que
esteve quase a esbarrar com um velho.
— Pois lá na Rua do Príncipe escapou de cair.
— Que pena!
— Não cair?
— Decerto.
— Tens razão. Tinha vontade de vê-lo de
pernas para o ar.
— E eu!
— E o andar dele, já reparaste?
— Ora!
— Parece um boneco de engonço.
— Imposturando com a luneta.
— É verdade; aquilo há de ser impostura.
— Pode ser que não... porque ele tem
realmente a vista curta.
— Isso tem; curtíssima.
Tal era a opinião real que as duas moças
faziam dele, mui diferente da que exprimiam nas cartas que João dos Passos
recebia com o maior prazer deste mundo.
Quando estavam juntas e o viam vir ao longe,
a linguagem delas era sempre do mesmo gênero. Mariquinhas, cujo espírito era
tão buliçoso como o corpo, rompia sempre o diálogo.
— Olha! olha!
— É ele?
— O cujo... Como vem engraçado!
— É verdade. Olha o braço esquerdo!
— E o jeitinho do ombro?
— Jesus! que rosa tamanha no peito!
— Já vem rindo.
— É para mim.
— É para mim.
E João dos Passos aproximava-se nadando num
mar de delícias, e satisfeito de si mesmo, visto estar convencido de que
realmente embaçava as duas moças.
Durou esta situação, como disse, alguns
meses, creio que três. Era tempo suficiente para aborrecer a comédia; ela porém
continuava, com uma modificação apenas.
Qual seria?
A pior de todas.
As cartas de João dos Passos começaram a não
ser comunicadas entre as duas amigas. Lúcia foi a primeira que disse não receber
cartas de João dos Passos, e não tardou que a outra dissesse a mesma coisa. Ao
mesmo tempo já a pessoa do namorado lhes não causava riso, e sendo ele a
princípio o objeto quase exclusivo da conversa de ambas, dessa data em diante
foi assunto interdito.
A razão, como o leitor adivinha, é que as
duas amigas, estando a brincar com fogo, vieram a queimar-se. Nenhuma delas,
entretanto, lendo no seu próprio coração, chegou a perceber que igual coisa se
passava no coração da outra. Estavam convencidas de que se enganavam muito
habilmente.
E ainda mais.
Lúcia refletia assim:
— Ele, que já lhe não escreve e continua a
escrever-me, é porque me ama.
Mariquinhas discorria deste modo:
— Não tem que ver. Ele acabou com o gracejo
de escrever a Lúcia, e a razão naturalmente é que só eu domino no seu coração.
Um dia, a Mariquinhas arriscou esta pergunta:
— Então João dos Passos nunca mais te
escreveu?
— Nunca mais.
— Nem a mim.
— Naturalmente perdeu a esperança.
— Há de ser isso.
— Tenho pena!
— E eu também.
E no seu interior a Lúcia ria da Mariquinhas,
e a Mariquinhas ria da Lúcia.
CAPÍTULO
5
João dos Passos, entretanto, fazia consigo a
reflexão seguinte:
— Onde irá isto parar? Ambas gostam de mim, e
eu, por ora, gosto de ambas. Como só me devo casar com uma delas, tenho de
escolher a melhor, e aqui começa a dificuldade.
O petimetre comparou em seguida as qualidades
das duas namoradas.
O tipo de Lúcia era para ele excelente;
gostava das mulheres claras e de estatura regular. Mas o tipo de Mariquinhas
dominava igualmente em seu coração, porque amara a muitas baixinhas e
moreninhas.
Vacilava na escolha.
E por isso mesmo que vacilava na escolha, é
que não amava verdadeiramente a nenhuma delas, e não amando verdadeiramente a
nenhuma delas, era natural adiar a escolha para as calendas gregas.
As cartas continuavam a ser apaixonadíssimas,
o que lisonjeava extremamente a João dos Passos.
O pai de Lúcia e a mãe de Mariquinhas, que
até agora não entraram no conto, nem entrarão daqui em diante, por não serem
precisos, admiravam-se da mudança que notavam nas filhas. Ambas estavam mais
sérias do que nunca. Há namoro, concluíram eles, e cada um por sua parte
procurou sondar o coração que lhe dizia respeito.
As duas moças confessaram que efetivamente
amavam a um mancebo dotado de eminentes qualidades e merecedor de entrar na
família. Obtiveram consentimento para fazer com que o mancebo de eminentes
qualidades chegasse à fala.
Imagine o leitor o grau de contentamento das
duas moças. Logo nesse dia cada uma delas tratou de escrever a João dos Passos
dizendo que podia ir pedi-la em casamento.
Tenha paciência o leitor e continue a
imaginar a surpresa de João dos Passos quando recebeu as duas cartas contendo a
mesma coisa. Um homem que, ao partir um ovo cozido visse sair de dentro um
elefante, não ficaria mais assombrado do que o nosso João dos Passos.
Sua primeira ideia foi uma suspeita.
Desconfiou que ambas lhe armassem uma cilada, de acordo com as famílias.
Repeliu porém a suspeita, refletindo que em nenhum caso, o pai de uma e a mãe
de outra consentiriam no meio empregado. Compreendeu que era amado igualmente
de uma e outra, explicação que o espelho confirmou eloquentemente quando ele
lhe lançou um olhar interrogativo.
Que faria ele em tal situação?
Era a ocasião da escolha.
João dos Passos considerou o assunto por
todos os lados. As duas moças eram as mais belas do bairro. Não tinham
dinheiro, mas essa consideração desaparecia desde que ele pudesse meter inveja
a meio mundo. A questão era saber a qual delas daria a preferência.
A Lúcia?
A Mariquinhas?
Resolveu estudar o caso mais detidamente; mas
como era necessário mandar imediata resposta, escreveu duas cartas, uma para
Mariquinhas, outra para Lúcia, pretextando uma demora indispensável.
As cartas foram.
A que ele escreveu a Lúcia dizia assim:
Minha querida Lúcia.
Não imaginas o contentamento que me deste com
a tua carta. Vou enfim obter a maior graça do céu, a de poder chamar-te minha
esposa!
Vejo que estás mais ou menos autorizada por
teu pai, esse honrado ancião, de quem serei filho amante e obediente. Obrigado!
Devia ir hoje mesmo à tua casa e pedir-te em
casamento. Uma circunstância, porém, me impede de o fazer. Apenas ela
desapareça, e nunca irá além de uma semana, corro à ordem que o céu me envia pela
mão de um dos seus anjos.
Ama-me como eu te amo.
Adeus!
Teu, etc.
A carta dirigida a Mariquinhas era deste
teor:
Minha Mariquinhas do meu coração.
Faltam-me palavras para dizer o júbilo que me
deu a tua carta. Eu era um desgraçado até há poucos meses. Repentinamente a
felicidade começou a sorrir-me, e agora (oh! céus!) lá me acena com a maior
ventura da terra, a de ser teu esposo.
Estou certo de que a tua respeitável mãe de
algum modo te insinuou o passo que deste. Boa e santa senhora! Anseio por chamá-la
mãe, por adorá-la de joelhos!
Não posso, como devia, ir hoje mesmo à tua
casa.
Há uma razão que mo impede.
Descansa, que é razão passageira. Antes de
oito dias lá estarei, e se Deus nos não tolher o passo, dentro de dois meses
estaremos esposos.
Oh! Mariquinhas, que felicidade!
Adeus!
Teu, etc.
Ambas estas cartas traziam um post-scriptum, marcando a hora em que
nessa noite ele passaria pela casa delas. A hora de Lúcia era às sete, a de
Mariquinhas às oito.
As cartas foram entregues ao portador e
levadas ao seu destino.
CAPÍTULO
6
Neste ponto da narrativa, qualquer outro que
não prezasse a curiosidade da leitora, intercalaria um capítulo de
considerações filosóficas, ou diria alguma coisa a respeito do namoro na
antiguidade.
Eu não quero abusar da curiosidade da
leitora. Minha obrigação é dizer que desenlace teve esta complicada situação.
As cartas foram, mas foram erradas; a de
Lúcia foi entregue a Mariquinhas, e a de Mariquinhas a Lúcia.
Não tenho forças para pintar o
desapontamento, a raiva, o desespero das duas moças, e muito menos os
faniquitos que sobrevieram à crise, coisa indispensável em tal situação.
Se se achassem debaixo do mesmo teto é
possível que o obituário fosse enriquecido com os nomes das duas belas moças.
Felizmente cada uma delas estava em sua casa, pelo que tudo se passou menos
tragicamente.
Os nomes que elas chamaram ao ingrato e
pérfido gamenho podiam escrever-se se houvesse papel suficiente. Os que elas
disseram uma da outra orçavam pela mesma quantidade. Nisto gastaram os oito
dias de prazo marcado por João dos Passos.
Notou este, logo na primeira noite, que
nenhuma delas o esperou à janela conforme fora marcado. No dia seguinte sucedeu
a mesma coisa.
João dos Passos indagou o que havia. Soube
que as duas moças estavam incomodadas e de cama. Ainda assim não atinou com a
causa, e limitou-se a mandar muitas lembranças, que os portadores aceitaram
docilmente, apesar de terem ordem positivamente de não receberem nenhum recado
mais. Há casos, porém, em que um portador de cartas desobedece; um deles é o
caso de remuneração e foi esse o caso de João dos Passos.
No fim de oito dias ainda João dos Passos não
tinha feito a sua escolha; mas o acaso, que governa a vida humana, quando a
providência se cansa de a dirigir, trouxe à casa do petimetre uma prima da
roça, cuja riqueza consistia em dois belos olhos e cinco excelentes prédios.
João dos Passos era doido por olhos bonitos mas não desdenhava os prédios. Os
prédios e os olhos da prima decidiram o nosso perplexo herói, que nunca mais
voltou aos Cajueiros.
Lúcia e Mariquinhas casaram mais tarde, mas
apesar da ingratidão de João dos Passos, e do tempo que decorreu, nunca mais se
deram. Os esforços dos parentes foram baldados. Nenhuma delas seria capaz de
casar em nenhuma hipótese com João dos Passos; e isto poderia levá-las a se
estimarem como dantes. Não foi assim; tudo perdoaram, exceto a humilhação.
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