11/25/2017

Boa medida (Conto), de Lima Barreto


Boa medida
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

 "Boa medida" (Conto), de Lima Barreto

O faustoso sultão de Kambalu, Abbas I, que tinha por avós em linha direta Manuel José Fernandes, de Trás-os-Montes, reino de Portugal, e Japira, índia de nação potiguara, a qual nação habitou antigamente o Império do Brasil e desapareceu, à vista da penúria do seu povo e da fome e da peste que o dizimavam, resolveu certo dia reunir em conclave as pessoas mais gradas do reino, fossem elas de que credo fossem, professassem as teorias que professassem, a fim de se aconselhar e resolver a situação. Vieram um bispo, um mago oriental, um sábio doutor em medicina, uma cartomante, um jurista, um engenheiro e um brâmane.

Abbas I assim falou, abrindo a sessão:

— Meus senhores: todos vós sabeis o motivo da nossa reunião. É a dor e a piedade pelo meu querido povo que me movem a pedir-vos conselho, para lhe dar lenitivo. Falai com franqueza que vos ouvirei com prazer. Falai!

O bispo levantou-se, fez o sinal da cruz, orou durante alguns minutos, contando as contas do rosário e começou:

Ad victum quae flagitat usus — Omnia jam mortalibus esse parata. Precisamos de igrejas, conventos, recolhimentos — Majestade!

O MAGO — Não concordo. A luz é tudo, de luz é feito o mundo, é feito Deus. Precisamos mais luz elétrica.

O DOUTOR — Isto tudo é delírio; é pura paranoia, temperada com psicastenia, frenastenia. Na etiologia da peste há duas frases: primeira, a do aparecimento, dúbio, auroral, das auroras claras de maio, que é imperceptível; depois: manifestação ostensiva, horrível, de um belo horrível que só os médicos conhecem. Keats diz: “Our songs are...”.

O ENGENHEIRO — Que diabo é isto? Uma encampação é mais útil...

A CARTOMANTE — Vou deitar as cartas...

O JURISTA — Cuidado com a polícia! O Código Penal, no seu livro v, art. 1824, parágrafo...

O BRÂMANE — Tudo o que vem de mim. O boi, a vaca...

ABBAS I — Ora bolas! Vocês não me aconselham coisa alguma... São uns tagarelas aborrecidos. Vou decidir por mim; vou construir um palácio magnífico. Vão-se embora, e já!

Abbas I cumpriu a sua palavra. Cobriu o reino de impostos; mandou vir jaspe e ouro e mármore e pórfiro; contratou no estrangeiro hábeis arquitetos e operários; e construiu o palácio, para enriquecimento de seu povo e extinção das moléstias que o dizimavam.

Acabada a construção, meteu-se nele. Daí a dias, porém, nem mais um criado tinha para servi-lo. Toda a gente do país havia morrido de fome e de moléstia; e ele veio também a morrer de fome porque não havia mais quem plantasse, quem colhesse, quem criasse etc. etc.

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