Babá
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
Por aqueles tempos, eu era
interino no hospital da Misericórdia e, conquanto não fosse de natural mau e
frio, entretanto era do meu grau céptico ser um pouco indiferente ao sofrer das
muitas criaturas que se achavam na minha enfermaria.
Mas não sei por que, ao entrar
aquela nova doente para ela, a minha habitual indiferença de profissional
afeito à dor ficou esquecida e comecei a me inteirar pelo seu martírio e
sofrer.
Era uma preta velha, velha de
mais de cem anos, africana, que, ferida por um achaque próprio da sua alta
velhice, vinha morrer ali aos meus olhos e aos meus cuidados. Era de ver a sua
cabecinha pequena empastada de cabelos brancos, tecidos como uma rama de
algodão, alvejando tristemente no fundo negro de seu rosto, encavado, chupado,
esteriçado, onde dois olhinhos castanhos quase sem brilho passeavam
languidamente, dolorosamente.
Ao começo fiz-lhe perguntas.
Indaguei-lhe da sua idade, da sua origem, se não tinha prole.
E ela vagarosamente, aos pingos,
deixava escorrer fracas respostas na sua meia língua, agora muito enfraquecida
pela moléstia e pela idade.
Era da África, soube, de nação
Moçambique, viera ainda rapariguinha para aqui, onde tivera para seu primeiro
senhor os Carvalhos de São Gonçalo; conhecera d. João vi, e, sobre ele,
desconexamente, contava uma ou outra coisa avaramente guardada naquela
estragada memória. Tivera filhos e me dizia ela, pitorescamente, de várias
cores.
Uns morreram e outros, me
informava a Quirina (era seu nome), se foram por este mundo de Cristo, não
havendo mais deles nem novas nem mandadas, pois que as vicissitudes do
cativeiro os transportava aos quatro cantos do Brasil.
De há muitos anos, ela vivia
encostada numa velha senhora, viúva de seu último senhor, a quem há poucos dias
ela vira morrer trocando antes a última apólice que restava.
E quando, naquele dia, ao saber
aquilo eu fui à noite repousar ao meu quarto não me saía da imaginação aquela
figura doida, cheia de sofrimento e de resignação, que, durante um longo prazo
de seu século fornecera aos que lhe cercavam ternura, amor e trabalho e que
agora, como um esquife vivo, já sem memória e quase sem viver, vinha morrer sem
uma lágrima, sem um ai de alguém, de alguma criatura deste enorme planeta
sublunar.
Estranho destino o daquela
mulher. A raça lhe dava a doentia resignação para morrer miserável, na mesma
terra que o sangue dera o que havia de requerer para amar e de humildade para
obedecer e trabalhar.
E estas considerações fizeram-me
ficar, olhos ao teto, parados e presos, a fumar nervosamente, sonhando na
ventura dos bons, dos mesquinhos e dos oprimidos.
Nada lhes dava a terra, o resto
dos seus semelhantes, como naquela pobre negra, chupava-lhes, sugava-lhes
avidamente, constantemente, reavivosamente durante uma longa existência a
doçura afetuosa do coração e, arrancava-lhe, até o último dia da existência, a
réstia fraquíssima de energia que restasse porventura aos músculos, para depois
atirar-lhes o corpo a morrer num hospital, tal como um delicioso fruto gozado
que se atira depois o bagaço ao lixo. E eu pensava assim, quando, tomado de um
cuidado estranhável, levantei-me e fui, atravessando salas e leitos, salas de
um ar soturno de catacumbas e leitos semelhantes a campas mortuárias, fui até a
cama da mãe Quirina levado até ela irresistivelmente por uma rara força, que me
impelia doidamente, furiosamente.
E como era tudo em volta seu
catre e, delicadamente, nos bicos dos pés, eu, em poucos instantes, me acerquei
dele. O seu corpo magro saía lividamente do aconchego dos lençóis, ali, a meus
olhos, placidamente dormindo, ele tinha na quietude de morto, naquela sua
velhice venerável, o aspecto de uma múmia. Aquele fardel de carnes magras, de
peles enrugadas, coladas aos ossos, embrulhada no linho dos lençóis, me pareceu
ser o cadáver embalsamado de uma antiga rainha da Núbia que a curiosidade
moderna houvesse trazido, de aventura em aventura, de escambo em escambo, até a
estas remotas plagas da Guanabara.
Logo que cheguei ao leito ela
dormia, mas minutos depois despertou e eu, a quem nunca intimidara o olhar de
morimbundos, temi ao ferir-me em cheio o dela, que vinha muito fora do esperado
cheio de energia, de ódio, de angústia e de mistério.
Durou algum tempo isso, bem
depressa, ela, se esteriçando toda, num esforço violento, se pôs em pé sobre o
leito, permaneceu assim calada instantes e depois, uma voz dolorosa, cheia de
modulações de mágoa e ódio, às vezes, outras de desconsolo e pranto, foi
solenemente dizendo em frase que não lhe era isso que ouvi.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...