Aurora sem dia
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Naquele tempo contava Luís Tinoco vinte e um anos. Era um rapaz de estatura meã, olhos vivos, cabelos em desordem, língua inesgotável e paixões impetuosas. Exercia um modesto emprego no foro, donde tirava o parco sustento, e morava com o padrinho cujos meios de subsistência consistiam no ordenado da sua aposentadoria. Tinoco estimava o velho Anastácio e este tinha ao afilhado igual afeição.
Luís Tinoco possuía a convicção de que estava
fadado para grandes destinos, e foi esse durante muito tempo o maior obstáculo
da sua existência. No tempo em que o Dr. Lemos o conheceu começava a arder-lhe
a chama poética. Não se sabe como começou aquilo. Naturalmente os louros
alheios entraram a tirar-lhe o sono. O certo é que um dia de manhã acordou Luís
Tinoco escritor e poeta; a inspiração, flor abotoada ainda na véspera,
amanheceu pomposa e viçosa. O rapaz atirou-se ao papel com ardor e
perseverança, e entre as seis horas e as nove, quando o foram chamar para
almoçar, tinha produzido um soneto, cujo principal defeito era ter cinco versos
com sílabas de mais e outros cinco com sílabas de menos. Tinoco levou a
produção ao Correio Mercantil, que a
publicou entre os a pedidos.
Mal dormida, entremeada de sonhos
interruptos, de sobressaltos e ânsias, foi a noite que precedeu a publicação. A
aurora raiou enfim, e Luís Tinoco, apesar de pouco madrugador, levantou-se com
o sol e foi ler o soneto impresso. Nenhuma mãe contemplou o filho recém-nascido
com mais amor do que o rapaz leu e releu a produção poética, aliás decorada
desde a véspera. Afigurou-se-lhe que todos os leitores do Correio Mercantil estavam fazendo o mesmo; e que cada um admirava a
recente revelação literária, indagando de quem seria esse nome até então
desconhecido.
Não dormiu sobre os louros imaginários. Daí a
dois dias, nova composição, e desta vez saiu uma longa ode sentimental em que o
poeta se queixava à lua do desprezo em que o deixara a amada, e já entrevia no
futuro a morte melancólica de Gilbert. Não podendo fazer despesas, alcançou,
por intermédio de um amigo, que a poesia fosse impressa de graça, motivo este
que retardou a publicação por alguns dias. Luís Tinoco tragou a custo a demora,
e não sei se chegou a suspeitar de inveja os redatores do Correio Mercantil. A poesia saiu enfim; e tal contentamento
produziu no poeta que foi logo fazer ao padrinho a grande revelação.
— Leu hoje o Correio Mercantil, meu padrinho? perguntou ele.
— Homem, tu sabes que eu só lia os jornais no
tempo em que era empregado efetivo. Desde que me aposentei não li mais os
periódicos...
— Pois é pena! disse Tinoco com ar frio;
queria que me dissesse o que pensa de uns versos que lá vêm.
— E de mais a mais versos! Os jornais já não
falam de política? No meu tempo não falavam de outra coisa.
— Falam de política e publicam versos, porque
ambas as coisas têm entrada na imprensa. Quer ler os versos?
— Dá cá.
— Aqui estão.
O poeta puxou da algibeira o Correio Mercantil, e o velho Anastácio
entrou a ler para si a obra do afilhado. Com os olhos pregados no padrinho,
Luís Tinoco parecia querer adivinhar as impressões que produziam nele os seus
elevados conceitos, metrificados com todas as liberdades possíveis e
impossíveis do consoante. Anastácio acabou de ler os versos e fez com a boca um
gesto de enfado.
— Isto não tem graça, disse ele ao afilhado
estupefato; que diabo tem a lua com a indiferença dessa moça, e a que vem aqui
a morte deste estrangeiro?
Luís Tinoco teve vontade de descompor o
padrinho, mas limitou-se a atirar os cabelos para trás e a dizer com supremo
desdém:
— São coisas de poesia que nem todos
entendem; esses versos sem graça são meus.
— Teus? perguntou Anastácio no cúmulo do
espanto.
— Sim, senhor.
— Pois tu fazes versos?
— Assim dizem.
— Mas quem te ensinou a fazer versos?
— Isto não se aprende; traz-se do berço.
Anastácio leu outra vez os versos, e só então
reparou na assinatura do afilhado. Não havia que duvidar: o rapaz dera em
poeta. Para o velho aposentado era isto uma grande desgraça. Esse, ligava à ideia
de poeta a ideia de mendicidade. Tinham-lhe pintado Camões e Bocage, que eram
os nomes literários que ele conhecia, como dois improvisadores de esquina,
expectorando sonetos em troca de algumas moedas, dormindo nos adros das igrejas
e comendo nas cocheiras das casas-grandes. Quando soube que o seu querido Luís
estava atacado da terrível moléstia, Anastácio ficou triste, e foi nessa
ocasião que se encontrou com o Dr. Lemos e lhe deu notícia da gravíssima
situação do afilhado.
— Dou-lhe parte de que o Luís está poeta.
— Sim? perguntou-lhe o Dr. Lemos. E que tal
lhe saiu o poeta?
— Não me importa se saiu mau ou bom. O que
sei é que é a maior desgraça que lhe podia acontecer, porque isto de poesia não
dá nada de si. Tenho medo que deixe o emprego, e fique aí pelas esquinas a
falar à lua, cercado de moleques.
O Dr. Lemos tranquilizou o homem dizendo-lhe
que os poetas não eram esses vadios que ele imaginava; mostrou-lhe que a poesia
não era obstáculo para andar como os outros, para ser deputado, ministro ou
diplomata.
— No entanto, disse o Dr. Lemos, desejarei
falar ao Luís; quero ver o que ele tem feito, porque como eu também fui outrora
um pouco versejador, posso já saber se o rapaz dá de si.
Luís Tinoco foi ter com ele; levou-lhe o
soneto e a ode impressos, e mais algumas produções não publicadas. Estas
orçavam pela ode ou pelo soneto. Imagens safadas, expressões comuns, frouxo
alento e nenhuma arte; apesar de tudo isso, havia de quando em quando algum
lampejo que indicava da parte do neófito propensão para o mister; podia ser ao
cabo de algum tempo um excelente trovador de salas.
O Dr. Lemos disse-lhe com franqueza que a
poesia era uma arte difícil e que pedia longo estudo; mas que, a querer cultivá-la
a todo o transe, devia ouvir alguns conselhos necessários.
— Sim, respondeu ele, pode lembrar alguma
coisa; eu não me nego a aceitar-lhe o que me parecer bom, tanto mais que eu fiz
estes versos muito à pressa e não tive ocasião de os emendar.
— Não me parecem bons estes versos, disse o
Dr. Lemos; poderia rasgá-los e estudar antes algum tempo.
Não é possível descrever o gesto de soberbo
desdém, com que Luís Tinoco arrancou os versos ao doutor e lhe disse:
— Os seus conselhos valem tanto como a
opinião de meu padrinho. Poesia não se aprende, traz-se do berço. Eu não dou
atenção a invejosos. Se os versos não fossem bons, o Mercantil não os publicava.
E saiu.
Daí em diante foi impossível ter-lhe mão.
Tinoco entrou a escrever como quem se despedia
da vida. Os jornais andavam cheios de produções suas, umas tristes, outras
alegres, não daquela tristeza nem daquela alegria que vem diretamente do
coração, mas de uma tristeza que fazia sorrir, e de uma alegria que fazia
bocejar. Luís Tinoco confessava singelamente ao mundo que fora invadido do
ceticismo byroniano, que tragara até às fezes a taça do infortúnio, e que para
ele a vida tinha escrita na porta a inscrição dantesca. A inscrição era citada
com as próprias palavras do poeta, sem que aliás Luís Tinoco o tivesse lido
nunca. Ele respingava nas alheias produções uma coleção de alusões e nomes
literários, com que fazia as despesas de sua erudição, e não lhe era preciso,
por exemplo, ter lido Shakespeare para falar do to be or not to be, do balcão de Julieta e das torturas de Otelo.
Tinha a respeito de biografias ilustres noções extremamente singulares. Uma
vez, agastando-se com a sua amada — pessoa que ainda não existia, —
aconteceu-lhe dizer que o clima fluminense podia produzir monstros daquela espécie,
do mesmo modo que o sol italiano dourara os cabelos da menina Aspásia. Lera
casualmente alguns dos salmos do Padre Caldas, e achou-os soporíferos; falava
mais benevolamente da “Morte de Lindóia”, nome que ele dava ao poema de J.
Basílio da Gama, de que só conhecia quatro versos.
Ao cabo de cinco meses tinha Luís Tinoco
produzido uma quantia razoável de versos, e podia, mediante muitos claros e
páginas em branco, dar um volume de cento e oitenta páginas. A ideia de
imprimir um livro sorriu-lhe; e daí a pouco era raro passar por uma loja sem
ver no mostrador um prospecto assim concebido:
GOIVOS E
CAMÉLIAS
POR
LUÍS
TINOCO
Um
volume de 200 páginas... 2$000 rs.
O Dr. Lemos encontrou-o algumas vezes na rua.
Andava com o ar inspirado de todos os poetas novéis que se supõem apóstolos e
mártires. Cabeça alta, olhos vagos, cabelos grandes e caídos; algumas vezes
abotoava o paletó e punha a mão ao peito por ter visto assim um retrato de
Guizot; outras vezes andava com as mãos para trás.
O Dr. Lemos falou-lhe a terceira vez que o
viu assim, porque das duas primeiras o rapaz esquivou-se por modo que não pôde
deter-lhe o passo. Fez-lhe alguns elogios às suas produções. Expandiu-se-lhe o
rosto:
— Obrigado, disse ele; esses elogios são o
melhor prêmio das minhas fadigas. O povo não está preparado para a poesia: as
pessoas inteligentes, como o doutor, podem julgar do merecimento dos outros.
Leu a minha “Flor pálida”?
— Uns versos publicados no domingo?
— Sim.
— Li; são galantíssimos.
— E sentimentais. Fiz aquela poesia em meia
hora, e não emendei nada. Acontece-me isso muita vez. Que lhe parecem aqueles
esdrúxulos?
— Acho-os esdrúxulos.
— São excelentes. Agora vou levar algumas
estrofes que compus ontem. Intitulam-se “À beira de um túmulo”.
— Ah!
— Já assinou o meu livro?
— Ainda não.
— Nem assine. Quero dar-lhe um volume. Sai
brevemente. Estou recolhendo as assinaturas. Goivos e camélias; que lhe parece o título?
— Magnífico.
— Achei-o de repente. Lembraram-me outros,
mas eram comuns. Goivos e Camélias parece que é um título distinto
e original; é o mesmo que se dissesse: tristezas e alegrias.
— Justamente.
Durante esse tempo, ia o poeta tirando do
bolso uma aluvião de papéis. Procurava as estrofes de que falara. O Dr. Lemos
quis esquivar-se, mas o homem era implacável; segurou-lhe no braço. Ameaçado de
ouvir ler os versos na rua, o doutor convidou o poeta a ir jantar com ele.
Foram a um hotel próximo.
— Ah! meu amigo, dizia ele em caminho, não
imagina quantos invejosos andam a denegrir o meu nome. O meu talento tem sido o
alvo de mil ataques; mas eu já estava disposto a isto. Não me espanto. A
enxerga de Camões é um exemplo e uma consolação. Prometeu, atado ao Cáucaso, é
o emblema do gênio. A posteridade é a vingança dos que sofrem os desdéns do seu
tempo.
No hotel procurou o Dr. Lemos um lugar mais
afastado, onde não chamassem muito a atenção das outras pessoas.
— Aqui estão as estrofes, disse Luís Tinoco
conseguindo arrancar de um maço de papéis a poesia anunciada.
— Não lhe parece melhor lê-las à sobremesa?
— Como quiser, respondeu ele; tem razão,
porque eu também estou com fome.
Luís Tinoco era todo prosa à mesa do jantar;
comeu desencadernadamente.
— Não repare, dizia ele de quando em quando;
isto é o animal que se está alimentando. O espírito aqui não tem culpa nenhuma.
À sobremesa, estando na sala apenas uns cinco
fregueses, desdobrou Luís Tinoco o fatal papel e leu as anunciadas estrofes,
com uma melopeia afetada e perfeitamente ridícula. Os versos falavam de tudo,
da morte e da vida, das flores e dos vermes, dos amores e dos ódios; havia mais
de oito ciprestes, cerca de vinte lágrimas, e mais túmulos do que um verdadeiro cemitério.
Os cinco fregueses jantantes voltaram a
cabeça, quando Luís Tinoco começou a recitar os versos; depois começaram a
sorrir e a murmurar alguma coisa que os dois não puderam ouvir. Quando o poeta
acabou, um dos circunstantes, assaz grosseiro, soltou uma gargalhada. Luís
Tinoco voltou-se enfurecido, mas o Dr. Lemos conteve-o dizendo:
— Não é conosco.
— É, meu amigo, disse ele resignado; mas que
lhe havemos de fazer? quem entende a poesia para a respeitar em toda a parte?
— Deixemos este lugar, disse o Dr. Lemos;
aqui não compreendem o que é um poeta.
— Vamos!
O Dr. Lemos pagou a conta e saiu atrás de
Luís Tinoco, que deitou ao rideiro um olhar de desafio.
Luís Tinoco acompanhou-o até à casa.
Recitou-lhe em caminho alguns versos que sabia de cor. Quando ele se entregava
à poesia, não a alheia, que o não preocupava muito, mas a própria, podia-se
dizer que tudo mais se lhe apagava da memória; bastava-lhe a contemplação de si
mesmo. O Dr. Lemos ia ouvindo calado com a resignação de quem suporta a chuva,
que não pode impedir.
Pouco tempo depois saíram a lume os Goivos e Camélias, que todos os jornais
prometeram analisar mais de espaço.
Dizia o poeta no prólogo da obra, que era
audácia da sua parte “vir assentar-se na mesa da comunhão da poesia, mas que
todo aquele que sentia dentro de si o j’ai
quelque chose là, de André Chénier, devia dar à pátria aquilo que a
natureza lhe deu”. Em seguida pedia desculpa para os seus verdes anos, e
afirmava ao público que não tinha sido “embalado em berços de seda”. Concluía
dando a bênção ao livro e chamando a atenção para a lista dos assinantes que
vinha no fim.
Esta obra monumental passou despercebida no
meio da indiferença geral. Apenas um folhetinista do tempo escreveu a respeito
dela algumas linhas que fizeram rir a toda a gente, menos o autor, que foi
agradecer ao folhetinista.
O Dr. Lemos perdeu de vista o seu poeta
durante algum tempo. Digo mal; só perdeu de vista o homem, porque o poeta de
quando em quando lhe aparecia metido em alguma produção literária que o Dr.
Lemos invariavelmente lia para se benzer da estéril pertinácia de Luís Tinoco.
Não havia ocasião, enterro ou espetáculo solene que escapasse à inspiração do
fecundo escritor. Como o número de suas ideias fosse mui limitado, podia-se
dizer que ele só havia escrito um necrológio, uma elegia, uma ode ou uma
congratulação. Os diferentes exemplares de cada uma destas coisas eram a mesma
coisa dita por outro modo. O modo porém constituía a originalidade do poeta,
originalidade que ele não teve a princípio, mas que se desenvolveu muito com o
tempo.
Infelizmente enquanto se entregava com ardor
às lides literárias, esquecia-se o poeta das lides forenses, de onde lhe vinha
o pão. Anastácio queixou-se um dia desta desgraça ao Dr. Lemos, numa carta que
acabava assim: “Não sei, meu amigo Sr. Lemos, aonde irá parar este rapaz. Não
lhe vejo outra conclusão: hospício ou xadrez”.
O Dr. Lemos mandou chamar o poeta.
Elogiou-lhe as suas obras com o fim de lhe dispor o espírito a ouvir o que ia
dizer. O rapaz expandiu-se.
— Ainda bem que eu ouço de quando em quando
alguma voz animadora, disse ele; não sabe o que tem sido a inveja a meu respeito.
Mas que importa? Tenho confiança no futuro; o que me vinga é a posteridade.
— Tem razão, a posteridade é que vinga das
maroteiras contemporâneas.
— Li há dias num papelucho, que eu era um
alinhavador de ninharias. Percebi a intenção. Acusava-me de não meter ombros a
obra de mais largo fôlego. Vou desmentir o papelucho: estou escrevendo um poema
épico!
“Ai!” disse o Dr. Lemos consigo, adivinhando
alguma leitura forçada do poema.
— Podia mostrar-lhe alguma coisa, continuou
Luís Tinoco, mas prefiro que leia a obra quando estiver mais adiantada.
— Muito bem.
— Tem dez cantos, cerca de 10.000 versos. Mas
quer saber a minha desgraça?
— Qual é?
— Estou apaixonado...
— Realmente, é uma desgraça na sua posição.
— Que tem a minha posição?
— Creio que não é excelente. Dizem-me que se
tem descuidado um pouco das suas obrigações do foro, e que brevemente lhe vão
tirar o emprego.
— Fui despedido ontem.
— Já?
— É verdade. Se ouvisse o discurso com que eu
respondi ao escrivão, diante de toda a gente que enchia o cartório! Vinguei-me.
— Mas... de que viverá agora? seu padrinho
não pode, creio eu, com o peso da casa.
— Deus me ajudará. Não tenho eu uma pena na
mão? Não recebi do berço um tal ou qual engenho, que já tem dado alguma coisa
de si? Até agora nenhum lucro tentei tirar das minhas obras; mas era só amador.
Daqui em diante o caso muda de figura; é necessário ganhar o pão, ganharei o
pão.
A convicção com que Luís Tinoco dizia estas
palavras, entristeceu o amigo do padrinho. O Dr. Lemos contemplou durante
alguns segundos — com inveja, talvez, — aquele sonhador incorrigível, tão
desapegado da realidade da vida, acreditando não só nos seus grandes destinos,
mas também na verossimilhança de fazer da sua pena uma enxada.
— Oh! deixe estar! continuou Luís Tinoco; eu
hei de provar-lhes, ao senhor e a meu padrinho, que não sou tão inútil como
lhes pareço. Não me falta coragem, doutor; quando me faltasse, há uma estrela...
Luís Tinoco calou-se, retorceu o bigode, e
olhou melancolicamente para o céu. O Dr. Lemos também olhou para o céu, mas sem
melancolia, e perguntou rindo:
— Uma estrela? Ao meio-dia é raro...
— Oh! não falo dessas, interrompeu Luís
Tinoco; lá é que ela devia estar, ali no espaço azul, entre as outras suas
irmãs, mais velhas do que ela e menos formosas...
— Uma moça?
— Uma moça, é pouco; diga a mais gentil
criatura que o sol ainda alumiou, uma sílfide, a minha Beatriz, a minha
Julieta, a minha Laura...
— Escusa dizê-lo; deve ser muito formosa se
fez apaixonar um poeta.
— Meu amigo, o senhor é um grande homem;
Laura é um anjo, e eu adoro-a...
— E ela?
— Ela ignora talvez que eu me consumo.
— Isso é mau!
— Que quer? disse Luís Tinoco enxugando com o
lenço uma lágrima imaginária; é fado dos poetas arderem por coisas que não
podem obter. É esse o pensamento de uns versos que escrevi há oito dias.
Publiquei-os no Caramanchão Literário.
— Que diacho é isso?
— É a minha folha, que eu lhe mando de quinze
em quinze dias... E diz que lê as minhas obras!
— As obras leio... Agora os títulos podem
escapar. Vamos porém ao que importa. Ninguém lhe contesta talento nem
inspiração fecunda; mas o senhor ilude-se pensando que pode viver dos versos e
dos artigos literários... Note que os seus versos e os seus artigos são muito
superiores ao entendimento popular, e por isso devem ter muito menos aceitação.
Este desenganar com as mãos cheias de rosas
produziu salutar efeito no ânimo de Luís Tinoco; o poeta não pôde sofrear um
sorriso de satisfação e bem-aventurança. O amigo do padrinho concluiu o seu discurso
oferecendo-lhe um lugar de escrevente em casa de um advogado. Luís Tinoco olhou
para ele algum tempo sem dizer palavra. Depois:
— Volto ao foro, não? disse ele com a mais
melancólica resignação deste mundo. Minha inspiração deve descer outra vez a empoeirar-se
nos libelos, a aturar os rábulas, a engrolar o vocabulário da chicana! E a
troco de quê? A troco de uns magros mil-réis que eu não tenho e me são
necessários para viver. Isto é sociedade, doutor?
— Má sociedade, se lhe parece, respondeu o
Dr. Lemos com doçura, mas não há outra à mão, e a menos de não estar disposto a
reformá-la, não tem outro recurso senão tolerá-la e viver.
O poeta deu alguns passos na sala; no fim de
dois minutos estendeu a mão ao amigo.
— Obrigado, disse ele, aceito; vejo que trata
de meus interesses, sem desconhecer que me oferece um exílio.
— Um exílio e um ordenado, emendou o Dr.
Lemos.
Daí a dias estava o poeta a copiar razões de
embargos e de apelação, a lastimar-se, a maldizer da fortuna, sem adivinhar que
daquele emprego devia nascer uma mudança nas suas aspirações. O Dr. Lemos não
lhe falou durante cinco meses. Um dia encontraram-se na rua. Perguntou-lhe pelo
poema.
— Está parado, respondeu Luís Tinoco.
— Deixa-o de mão?
— Conclui-lo-ei quando tiver tempo.
— E a folha?
— Deve saber que acabei com ela; não lha
mando há muito tempo.
— É verdade, mas podia ser um esquecimento.
Muito me conta! Então acabou o Caramanchão
Literário?
— Deixei-o morrer no melhor período de
vitalidade: tinha oitenta assinantes pagantes...
— Mas então abandona as letras?
— Não, mas... Adeus.
— Adeus.
Pareceu simples tudo aquilo; mas tendo-se
ganho alguma coisa, que era empregá-lo, o Dr. Lemos deixou que o próprio poeta
lhe fosse anunciar a causa do seu sono literário. Seria o namoro de Laura?
Esta Laura, preciso é que se diga, não era
Laura, era simplesmente Inocência; o poeta chamava-lhe Laura nos seus versos,
nome que lhe parecia mais doce, e efetivamente o era. Até que ponto existiu
esse namoro, e em que proporções correspondeu a moça à chama do rapaz? A
história não conservou muita informação a este respeito. O que se sabe com
certeza é que um dia apareceu um rival no horizonte, tão poeta como o padrinho
de Luís Tinoco, elemento muito mais conjugal do que o redator do Caramanchão Literário, e que de um só
lance lhe derrubou todas as esperanças.
Não é preciso dizer ao leitor que este
acontecimento enriqueceu a literatura com uma extensa e chorosa elegia, em que
Luís Tinoco metrificou todas as queixas que pode ter de uma mulher um namorado
traído. Esta obra tinha por epígrafe o nessun
maggior dolore do poeta florentino. Quando ele a acabou e emendou, releu-a
em voz alta, passeando na alcova, deu o último apuro a um ou outro verso,
admirou a harmonia de muitos, e singelamente confessou de si para si que era a
sua melhor produção. O Caramanchão
Literário ainda existia; Luís Tinoco apressou-se a levar o escrito ao
prelo, não sem o ler aos seus colaboradores, cuja opinião foi idêntica à dele.
Apesar da dor que o devia consumir, o poeta leu as provas com o maior desvelo e
escrúpulo, assistiu à impressão dos primeiros exemplares da folha, e durante
muitos dias releu os versos até cansar. Do que ele menos se lembrava era da
perfídia que os inspirou.
Esta porém não era a razão do sono literário
de Luís Tinoco. A razão era puramente política. O advogado, cujo escrevente ele
era, tinha sido deputado e colaborava numa gazeta política. O seu escritório
era um centro, onde iam ter muitos homens públicos e se conversava largamente
dos partidos e do governo. Luís Tinoco ouviu a princípio essas conversas com a
indiferença de um deus envolvido no manto da sua imortalidade. Mas a pouco e
pouco foi adquirindo gosto ao que ouvia. Já lia os discursos parlamentares e os
artigos de polêmica. Da atenção passou rapidamente ao entusiasmo, porque
naquele rapaz tudo era extremo, entusiasmo ou indiferença. Um dia levantou-se
com a convicção de que os seus destinos eram políticos.
— A minha carreira literária está feita,
disse ele ao Dr. Lemos quando falaram nisto; agora outro campo me chama.
— A política? Parece-lhe que é essa a sua
vocação?
— Parece-me que posso fazer alguma coisa.
— Vejo que é modesto, e não duvido que alguma
voz interior o esteja convidando a queimar as suas asas de poeta. Mas, cuidado!
Há de ter lido Macbeth... Cuidado com a voz das feiticeiras, meu amigo. Há no
senhor demasiado sentimento, muita suscetibilidade, e não me parece que...
— Estou disposto a acudir à voz do destino,
interrompeu impetuosamente Luís Tinoco. A política chama-me ao seu campo; não
posso, não devo, não quero cerrar-lhe os ouvidos. Não! as opressões do poder,
as baionetas dos governos imorais e corrompidos, não podem desviar uma grande
convicção do caminho que ela mesma escolheu. Sinto que sou chamado pela voz da
verdade. Quem foge à voz da verdade? Os covardes e os ineptos. Não sou inepto
nem covarde.
Tal foi a estreia oratória com que ele
brindou o Dr. Lemos numa esquina onde felizmente não passava ninguém.
— Só lhe peço uma coisa, disse o ex-poeta.
— O que é?
— Recomende-me ao doutor. Quero acompanhá-lo,
e ser seu protegido; é o meu desejo.
O Dr. Lemos cedeu ao desejo de Luís Tinoco.
Foi ter com o advogado e recomendou-lhe o escrevente, não com muita solicitude,
mas também sem excessiva frieza. Felizmente o advogado era uma espécie de São
Francisco Xavier do partido, desejoso como ninguém de aumentar o pessoal
militante; recebeu a recomendação com a melhor cara do mundo, e logo no dia
seguinte, disse algumas palavras benévolas ao escrevente, que as ouviu trêmulo
de comoção.
— Escreva alguma coisa, disse o advogado, e
traga-me para ver se lhe achamos propensão.
Não foi preciso dizer-lho duas vezes. Dois
dias depois, levou o ex-poeta ao seu protetor um artigo extenso e difuso, mas
cheio de entusiasmo e fé. O advogado achou defeitos no trabalho; apontou-lhe
demasias e nebulosidades, frouxidão de argumentos, mais ornamentação que
solidez; todavia prometeu publicá-lo. Ou fosse porque lhe fizesse estas
observações com muito jeito e benevolência, ou porque Luís Tinoco houvesse
perdido alguma coisa da antiga suscetibilidade, ou porque a promessa da
publicação lhe adoçasse o amargo da censura, ou por todas estas razões juntas,
o certo é que ele ouviu com exemplar modéstia e alegria as palavras do
protetor.
— Há de perder os defeitos com o tempo, disse
este mostrando o artigo aos amigos.
O artigo foi publicado e Luís Tinoco recebeu
alguns apertos de mão. Aquela doce e indefinível alegria que ele sentira quando
estampou no Correio Mercantil os seus
primeiros versos, voltou a experimentá-la agora, mas alegria complicada de uma
virtuosa resolução: Luís Tinoco desde aquele dia sinceramente acreditou que
tinha uma missão, que a natureza e o destino o haviam mandado à terra para
endireitar os tortos políticos.
Poucas pessoas se terão esquecido do período
final da estreia política do ex-redator do Caramanchão
Literário. Era assim:
Releve o poder — hipócrita e sanhudo, — que
eu lhe diga muito humildemente que não temo o desprezo nem o martírio. Moisés,
conduzindo os hebreus à terra da promissão, não teve a fortuna de entrar nela:
é o símbolo do escritor que leva os homens à regeneração moral e política, sem
lhe transpor as portas de ouro. Que poderia eu temer? Prometeu atado ao
Cáucaso, Sócrates bebendo a cicuta, Cristo expirando na cruz, Savonarola indo
ao suplício, John Brown esperneando na forca, são os grandes apóstolos da luz,
o exemplo e o conforto dos que amam a verdade, o remorso dos tiranos, e o
terremoto do despotismo.
Luís Tinoco não parou nestas primícias.
Aquela mesma fecundidade da estação literária veio a reproduzir-se na estação
política; o protetor, entretanto, disse-lhe que era conveniente escrever menos
e mais assentado. O ex-poeta não repeliu a advertência, e até lucrou com ela,
produzindo alguns artigos menos desgrenhados no estilo e no pensamento. A
erudição política de Luís Tinoco era nenhuma; o protetor emprestou-lhe alguns
livros, que o ex-poeta aceitou com infinito prazer. Os leitores compreendem
facilmente que o autor dos Goivos e
Camélias não era homem que meditasse uma página de leitura; ele ia atrás
das grandes frases, — sobretudo das frases sonoras — demorava-se nelas,
repetia-as, ruminava-as com verdadeira delícia. O que era reflexão, observação,
análise parecia-lhe árido, e ele corria depressa por elas.
Algum tempo depois houve uma eleição
primária. O publicista sentiu que havia em si um eleitor, e foi dizê-lo
afoitamente ao advogado. O desejo não foi mal aceito; trabalharam-se as coisas
de modo que Luís Tinoco teve o gosto de ser incluído numa chapa e a surpresa de
ficar batido. Batê-lo foi possível ao governo; abatê-lo, não. O ex-poeta, ainda
quente do combate, traduziu em largos e floreados períodos o desprezo que lhe
inspirava aquela vitória dos adversários. A esse artigo responderam os amigos
do governo com um, que terminava assim: “Até onde quererá ir, com semelhante
descomedimento de linguagem, o pimpolho do ex-deputado Z.?”
Luís Tinoco quase morreu de júbilo ao receber
em cheio aquela descarga ministerial. A imprensa adversa não o havia tratado até
então com a consideração que ele desejava. Uma ou outra vez, haviam discutido
argumentos seus; mas faltava o melhor, faltava o ataque pessoal, que lhe
parecia ser o batismo de fogo naquela espécie de campanha. O advogado, lendo o
ataque, disse ao ex-poeta que a sua posição era idêntica à do primeiro Pitt
quando o ministro Walpole lhe respondeu chamando-lhe moço em plena Câmara dos
Comuns, e que era necessário repelir no mesmo tom a ofensa ministerial. Luís
Tinoco ignorava até aquela data a existência de Pitt e de Walpole; achou
todavia muito engenhosa a comparação das duas situações, e com habilidade e
cautela perguntou ao advogado se lhe podia emprestar o discurso do orador
britânico “para refrescar a memória”. O advogado não tinha o discurso, mas deu-lhe
ideia dele, quanto bastou para que Luís Tinoco fosse escrever um longo artigo
acerca do que era e não era pimpolho.
Entretanto, a luta eleitoral lhe descobrira
um novo talento. Como fosse necessário arengar algumas vezes, fê-lo o pimpolho
a grande aprazimento seu e no meio às palmas gerais. Luís Tinoco perguntou a si
mesmo se lhe era lícito aspirar às honras da tribuna. A resposta foi
afirmativa. Esta nova ambição era mais difícil de satisfazer; o ex-poeta o
reconheceu, e armou-se de paciência para esperar.
Aqui há uma lacuna na vida de Luís Tinoco.
Razões que a história não conservou levaram o jovem publicista à província
natal do seu amigo e protetor, dois anos depois dos acontecimentos eleitorais.
Não percamos tempo em conjecturar as causas desta viagem, nem as que ali o
demoraram mais do que queria. Vamos já encontrá-lo alguns meses depois,
colaborando num jornal com o mesmo ardor juvenil, de que dera tanta prova na
capital. Recomendado pelo advogado aos seus amigos políticos e parentes,
depressa criou Luís Tinoco um círculo de companheiros, e não tardou que
assentasse em ali ficar algum tempo. O padrinho já estava morto; Luís Tinoco
achava-se absolutamente sem família.
A ambição do orador não estava apagada pela
satisfação do publicista; pelo contrário, uma coisa avivava a outra. A ideia de
possuir duas armas, brandi-las ao mesmo tempo, ameaçar e bater com ambas os
adversários, tornou-se-lhe ideia crônica, presente, inextinguível. Não era a
vaidade que o levava, quero dizer, uma vaidade pueril. Luís Tinoco acreditava
piamente que ele era um artigo do programa da Providência, e isso o sustinha e
contentava. A sinceridade que nunca teve quando versificava os seus infortúnios
entre suas palestras de rapazes, teve-a quando se enterrou a mais e mais na política.
É claro que, se alguém lhe pusesse em dúvida o mérito político, feri-lo-ia do
mesmo modo que os que lhe contestavam excelências literárias; mas não era só a
vaidade que lhe ofendiam, era também, e muito mais, a fé — fé profunda e
intolerante — que ele tinha de que o seu talento fazia parte da harmonia
universal.
Luís Tinoco mandava ao Dr. Lemos na corte
todos os seus escritos da província, e contava-lhe singelamente as suas novas
esperanças. Um dia noticiou-lhe que a sua eleição para a Assembleia Provincial
era objeto de negociações que se lhe afiguravam propícias. O correio seguinte
trouxe notícia de que a candidatura de Luís Tinoco entrara na ordem dos fatos
consumados.
A eleição fez-se e não deu pouco trabalho ao
candidato fluminense, que à força de muita luta e muito empenho pôde ter a
honra de ser incluído na lista dos vencedores. Quando lhe deram notícia da
vitória, entoou a alma de Luís Tinoco um verdadeiro e solene Te Deum Laudamus. Um suspiro, o mais
entranhado e desentranhado de quantos suspiros jamais soltaram homens,
desafogou o coração do ex-poeta das dúvidas e incertezas de longas e cruéis
semanas. Estava enfim eleito! Ia subir o primeiro degrau do Capitólio.
A noite foi mal dormida, como a da véspera da
publicação do primeiro soneto, e entremeada de sonhos análogos à situação. Luís
Tinoco via-se já troando na Assembleia Provincial, entre os aplausos de uns, as
imprecações de outros, a inveja de quase todos, e lendo em toda a imprensa da
província os mais calorosos aplausos à sua nova e original eloquência. Vinte
exórdios fez o jovem deputado para o primeiro discurso, cujo assunto seria
naturalmente digno de grandes rasgos e nervosos períodos. Ele já estudava
mentalmente os gestos, a atitude, todo o exterior da figura que ia honrar a sala
dos representantes da província.
Muitos grandes nomes da política haviam
começado no parlamento provincial. Era verossímil, era indispensável até, para
que ele cumprisse o mandato imperativo do destino, que saísse dali em pouco
tempo para vir transpor a porta mais ampla da reapresentação nacional. O
ex-poeta ocupava já no espírito uma das cadeiras da Cadeia Velha, e remirava-se
na própria pessoa e no brilhante papel que teria de desempenhar. Via já diante
de si a oposição ou o ministério estatelado no chão, com quatro ou cinco
daqueles golpes que ele supunha saber dar como ninguém, e as gazetas a falarem,
e o povo a ocupar-se dele, e o seu nome a repercutir em todos os ângulos do
império, e uma pasta a cair-lhe nas mãos, ao mesmo tempo que o bastão do comando
ministerial.
Tudo isto, e muito mais imaginava o recente
deputado, embrulhado nos lençóis, com a cabeça no travesseiro e o espírito a
vagar por esse mundo fora, que é a coisa pior que pode acontecer a um corpo
mortificado como estava o dele naquela ocasião.
Não se demorou Luís Tinoco em escrever ao Dr.
Lemos, e contar-lhe as suas esperanças e o programa que tencionava observar,
desde que a fortuna lhe abria mais ampla estrada na vida pública. A carta
tratava longamente do efeito provável da sua primeira oração, e terminava
assim:
Qualquer que seja o posto a que eu suba;
qualquer, entenda bem, ainda aquele que é o primeiro do país, abaixo do
imperador (e creio que irei até lá),
nunca me há de esquecer que ao senhor o devo, à animação que me dispensou, à
recomendação que fez de mim. Parece-me que até hoje tenho correspondido à
confiança dos meus amigos; espero continuar a merecê-la.
Inauguraram-se enfim os trabalhos. Tão
ansioso estava Luís Tinoco de falar que, logo nas primeiras sessões, a
propósito de um projeto sobre a colocação de um chafariz, fez um discurso de
duas horas em que demonstrou por A + B que a água era necessária ao homem. Mas
a grande batalha foi dada na discussão do orçamento provincial. Luís Tinoco fez
um longo discurso em que combateu o governo geral, o presidente, os
adversários, a polícia e o despotismo. Seus gestos eram até então desconhecidos
na escala da gesticulação parlamentar; na província, pelo menos, ninguém tivera
nunca a satisfação de contemplar aquele sacudir de cabeça, aquele arquear de
braço, aquele apontar, alçar, cair e bater com a mão direita.
O estilo também não era vulgar. Nunca se
falou de receita e despesa com maior luxo de imagens e figuras. A receita foi
comparada ao orvalho que as flores recolhem durante a noite, a despesa à brisa
da manhã que as sacode e lhes entorna um pouco do sereno vivificante. Um bom
governo é apenas brisa; o presidente atual foi declarado siroco e pampeiro.
Toda a maioria protestou solenemente contra essa qualificação injuriosa, ainda
que poética. Um dos secretários confessou que nunca do Rio de janeiro lhes fora
uma aura mais refrigerante.
Infelizmente os adversários não dormiam. Um
deles, apenas Luís Tinoco acabou o discurso entre alguns aplausos dos seus
amigos, pediu a palavra e cravou longo tempo os olhos no orador estreante.
Depois sacou do bolso um maço de jornais e um folheto, concertou a garganta e
disse:
— Mandaram-nos do Rio de janeiro o nobre
deputado que me precedeu nesta tribuna. Diziam que era uma ilustração
fluminense, destinada a arrasar os talentos da província. Imediatamente, Sr.
presidente, tratei de obter as obras do nobre deputado.
Aqui tenho eu, Sr. presidente, o Caramanchão Literário, folha redigida
pelo meu adversário, e o volume dos Goivos
e Camélias. Tenho lá em casa mais outras obras. Abramos os Goivos e Camélias.
O SR. LUÍS TINOCO. — O nobre deputado está
fora da ordem! (Apoiados).
O ORADOR: — Continuo, Sr. presidente; aqui
tenho os Goivos e Camélias. Vejamos
um goivo.
A Ela.
Quem és
tu que me atormentas
Com teus
prazenteiros sorrisos?
Quem és
tu que me apontas
As
portas dos paraísos?
Imagem
do céu és tu?
És filha
da divindade?
Ou vens
prender em teus cabelos
A minha
liberdade?
Vê vossa excelência, Sr. presidente, que já
nesse tempo o nobre deputado era inimigo de todas as leis opressoras. A assembleia
tem visto como ele trata as leis do metro.
Todo o resto do discurso foi assim. A minoria
protestou, Luís Tinoco fez-se de todas as cores, e a sessão acabou em risada.
No dia seguinte os jornais amigos de Luís Tinoco agradeceram ao adversário
deste o triunfo que lhe proporcionou mostrando à província “uma antiga e
brilhante face do talento do ilustre deputado”. Os que indecorosamente riram
dos versos, foram condenados com estas poucas linhas: “Há dias um deputado
governista disse que a situação era uma caravana de homens honestos e bons. É
caravana, não há dúvida; vimos ontem os seus camelos”.
Nem por isso Luís Tinoco ficou mais
consolado. As cartas do deputado ao Dr. Lemos começaram a escassear, até que de
todo cessaram de aparecer. Decorreram assim silenciosos uns três anos, ao cabo
dos quais o Dr. Lemos foi nomeado não sei para que cargo na província onde se
achava Luís Tinoco. Partiu. Apenas empossado do cargo, tratou de procurar o
ex-poeta, e pouco tempo gastou, recebendo logo um convite dele para ir a um
estabelecimento rural onde se achava.
— Há de me chamar ingrato, não? disse Luís
Tinoco, apenas viu assomar à porta de casa o Dr. Lemos. Mas não sou; contava ir
vê-lo daqui a um ano; e se lhe não escrevi... Mas que tem, doutor? está
espantado?
O Dr. Lemos estava efetivamente pasmado a
olhar para a figura de Luís Tinoco. Era aquele o poeta dos Goivos e camélias, o eloquente deputado, o fogoso publicista? O que
ele tinha diante de si era um honrado e pacato lavrador, ar e maneiras
rústicas, sem o menor vestígio das atitudes melancólicas do poeta, do gesto
arrebatado do tribuno, — uma transformação, uma criatura muito outra e muito
melhor.
Riram-se ambos, um da mudança, outro do
espanto, pedindo o Dr. Lemos a Luís Tinoco lhe dissesse se era certo haver
deixado a política, ou se aquilo eram apenas umas férias para renovar a alma.
— Tudo lhe explicarei, doutor, mas há de ser
depois de ter examinado a minha casa e a minha roça, depois de lhe apresentar
minha mulher e meus filhos...
— Casado?
— Há vinte meses.
— E não me disse nada!
— Ia este ano à corte e esperava
surpreendê-lo... Que duas criancinhas as minhas... lindas como dois anjos. Saem
à mãe, que é a flor da província. Oxalá se pareçam também com ela nas
qualidades de dona de casa; que atividade! que economia!...
Feita a apresentação, beijadas as crianças,
examinado tudo, Luís Tinoco declarou ao Dr. Lemos que definitivamente deixara a
política.
— De vez?
— De vez.
— Mas que motivo? desgostos, naturalmente.
— Não; descobri que não era fadado para
grandes destinos. Um dia leram-me na assembleia alguns versos meus. Reconheci
então quanto eram pífios os tais versos; e podendo vir mais tarde a olhar com a
mesma lástima e igual arrependimento para as minhas obras políticas, arrepiei
carreira e deixei a vida pública. Uma noite de reflexão e nada mais.
— Pois teve ânimo?...
— Tive, meu amigo, tive ânimo de pisar
terreno sólido, em vez de patinhar nas ilusões dos primeiros dias. Eu era um
ridículo poeta e talvez ainda mais ridículo orador. Minha vocação era esta. Com
poucos anos mais estou rico. Ande agora beber o café que nos espera e feche a
boca, que as moscas andam no ar.
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