Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Às vezes, até mesmo com pessoas presentes, lhe acontecia aquela
sensação “afrosa”, como diriam as meninas, na meia-língua franco-brasileira que
se davam agora por divertimento. E as duas garotas pararam a leitura, percebendo
a quarentona estremecer. Se entreolharam. Alba perguntou, meia curiosa mas
também já meia irônica por causa das manias da professora:
— Est-ce que vous avez froid par cette chaleur?...
— Non, ma chère enfant, je...
Hesitava, iniciando uma daquelas reticências que punham sempre as
três tão fogosamente na proximidade do perigo. Lúcia ajudou, tomando ar
maternal:
— Voulez-vous quelque chose?
— Non! non! non!... je... il faut bien que je vous fasse une
confidence, mes petites amies, ah! ah! ah!...
E ria numa das suas risadas atuais, completamente falsas, corando
com volúpia nas faces pálidas, sem "rouge", a que a camada vasta do
pó-de-arroz não disfarçava mais o desgaste. Era o jeito que tinha de não dar
nenhuma importância ao que as três pressentiam ser importantíssimo. Afinal pôde
continuar, entre confusa e misteriosa, dando de ombros:
— Il y a
des jours où je sens à tout moment qu’un... “personnage” me frôle!
E acentuava o “personnage”, que repetia sempre num nojo
despeitado. Mas Lúcia:
— Ça vous fait mal!
— “Mâle”, ma chère enfant, “mâ-le”. N’égratignez pas vos mots
comme ça. “Mâ-le”.
Mas logo um gritinho de surpresa:
— Oh! je vous demande pardon, Lúcia! Je me suis trompée de
lisière! Vous avez parlé du Bien et du Mal, j’ai pensé que vous parliez du
maléfice des hommes, ah! ah! ah!...
E ria bem-aventurada.
Dona Lúcia se acaso soubesse o que estava se passando agora,
decerto não retomava Mademoiselle para professora das filhas. Fora mais longe:
na caridade viciosa a que transportara a sua pobre vida cortada, fizera da
solteirona uma espécie de dama-de-companhia das filhas. Lúcia e Alba estavam
quase moças, dezesseis e quinze anos desenvoltos, que a viagem desbastara
demais, jogadas de criada em criada, de colégio em colégio, de língua em língua,
de esporte em esporte. Seria injusto afirmar que sabiam tudo e mesmo ignoravam
coisas primárias, fáceis de saber, mas que nunca as surpreenderam naquele
aprendizado da malícia, feito ao léu do acaso. Mas isso elas compensavam por um
saber em excesso de coisas imaginosas e irrealizáveis, que ficaríamos bem
estomagados de saber, nós, usadores do mundo.
Além do inglês e do alemão em que Mademoiselle nem de longe podia
agora competir com elas, voltavam falando um francês bem mais moderno e leal
que o da professora, estagnada no ensino e nas suas metáforas suspeitas.
“N’égratignez pas les mots comme ça!”, Mademoiselle vinha com irritação, ciosa
da sua pronúncia. Ou, no horror incontrolável aos cotovelos, saltava: “Effacez
vos coudes, mon enfant!” E agora mais que nunca ela “se trompait de lisière” –
o que tinha uma história. Não vê que desde a infância Mademoiselle cantava uma
canção antiga em que Lisette, indo em busca da primeira “paquerette” da
primavera, topa com um cavaleiro na lisière du bois. Está claro que o cavaleiro
tomava Lisette na garupa e sucedia ser um príncipe trali-lan-lère,
trali-lan-la. Mademoiselle já tinha trinta anos feitos no Brasil, quando
naquela vida mesquinha de lições e pão incerto, principiou se inquietando com a
“paquerette” que ela estava desleixando de colher na primavera. Preocupação não
muito grande, porque ela ainda se sentia moça na higiene excessiva do corpo e a
blusinha professoral, alvíssima, cheia de rendas crespas. Um dia porém, sem
querer, cantarolando a sua canção, no momento em que alcançou a lisière,
Lisette parou sufocada, sem poder mais cantar. O que houve? o que não houve?
Mademoiselle ficara assim, boca no ar, olhos assombrados, na convulsão duma
angústia horrível. Nem podia respirar. Quando pôde respirou fundo, era mais um
suspiro que respiro, e não se compreendeu. Naquele tempo ainda não podia “se
sentir muito freudiana, hoje”, como as meninas vieram da Europa falando.
Mademoiselle apenas não se compreendeu. Porém nunca mais que se lembrou da
canção, nunca mais que a cantou. Poucos dias depois ela principiava a “se
tromper de lisière” a cada confusão que fazia. E eram muitas as confusões.
Das melhores fora aquela quando se encontraram todas em Paris,
porque Mademoiselle, cheia de apreensões, emprestara um dinheiro e partira na
esperança de dizer o último adeus à mãe cardíaca. Mademoiselle chegou
agitadíssima no palace, foi sentando esbaforida, “oh, mes enfants!”, esquecida
até das alegrias do encontro. É que estava no hol do seu hotelzinho quando
entrou um homem de cartola, cavanhaque, fraque, óculos escuros, o cavanhaque
era "pointu, pointu! Je me suis dit: Ce personnage vient tuer quelq’un. Il
monta au salon, pas une minute ne s’était passée, nous entendimes les cinq
coups du pistolet. Dans le ventre!" E se auxiliou desvairada do gesto
homicida: “Poum! poum! poum! et poum!...” Olhou dona Lúcia, olhou as meninas,
assustada, indecisa. E numa das reconsiderações leais, de quando se enganava de
"lisière: J’ai manqué un poum: ça fait cinq."
Dona Lúcia achava graça em Mademoiselle. Quer dizer, talvez nem
achasse graça mais, toda entregue altivamente ao seu drama e à representação
discreta da infelicidade. As crianças ainda tinham ido com pai à Europa, um pai
longínquo, surgindo raro na família e quase sem as enxergar. O dia em que
partiram de Paris para os seis meses na Escócia, dona Lúcia lhes contou que o
pai fora viajar também, noutra direção. Depois acrescentara pensativa que ele
tinha muito negócio, a viagem decerto era comprida... E acabou decidindo que as
filhas não deviam reparar na ausência do pai. Só por isso é que elas repararam.
Mas tinham apenas dez anos de vida reclusa em São Paulo, nem sequer estimavam o
pai: acharam meio esquisito e veio um malestar. Apenas se sentiram mais
sozinhas e lhes passou no espírito uma nuvem interrogativa, um floco. Não
decidiram nada, mas cinco anos de viagens, colégios, camelos, freiras,
Dinamarcas e Palestinas, quando voltaram não supunham mais um pai. Dona Lúcia é
que resolvera ficar eternamente infeliz e ficou.
Mademoiselle fora das primeiras pessoas que visitaram as
recém-chegadas. Tivera um surto inadequado de lágrimas que até divertira as
meninas. Se abraçara muito com elas, soluçando “mes PAUVRES enfants!”, com que
ênfase no “pauvres”! Dona Lúcia até não conseguiu guardar o gesto de
impaciência, e a professora envelhecida ficara muito reta na cadeira,
envergonhada do arroubo anacrônico, aproveitando o esforço das outras visitas
no reerguer da conversa, pra consertar a polvadeira lívida do rosto que as
lágrimas listravam.
Estava mais destratadinha agora, isso via-se, as lições cada vez
menos numerosas. Dona Lúcia voltava de alma fatigada, maternidade incorreta que
aquele vaivém de colégios e hotéis transformara quase num dever. Adorava as
filhas, mas era o êxtase inerte das adorações nacionais. Preferia se meter nas
obras de caridade que a emolduravam de beatas de preto, muito deferentes com a
ricaça. As meninas estavam mocinhas, carecendo mesmo de alguém, quase uma
preceptora que as acompanhasse em festas, visitas, lhes tomasse conta da
educação. E assim ajudavam Mademoiselle, coitada.
E Mademoiselle, sempre na sua blusa alvíssima de rendinhas
crespas, caíra naquele mundo mágico de anseios que era o das duas adolescentes,
como conversaram! Como viajaram e viveram experiências desejadas, aqueles
primeiros dias! Mademoiselle soltava "petits cris" excitadíssima,
pedindo mais detalhes, detalhes, "ces norvégiens!" e esses catalães,
e os árabes, "les touaregs!..."
— Mais nous n’avons pas vu les touaregs, Mademoiselle.
E ela, ar de mistério, sacudindo o dedo profético no ar:
— Heureusement pour vous, mes enfants!
Assim nascera em poucos dias um entrejogo de reticências e
curiosidades malignas que agora devastavam a professora. Tudo não passava duma
ceva divertida de quase imoralidade para as meninas. Um fraseio sem pontos
finais, farto de “vous comprennez”, de “vous savez”, de “n’est-ce pas?”, em que
era sempre Mademoiselle a imaginar imoralidades horrorosas, esbaforida de
sustos.
Na viagem do Mediterrâneo:
—…Mademoiselle
de Lavellais avait un petit mousse qui venait tous les jours dans sa cabine pour
frotter son parquet. Alors… il fallait voir ça, Mademoiselle! ce qu’il
frrrottait conscieusement!
— Ah, ah, ah, ela vinha com o seu riso de disfarce: "p’tite
rabelaisienne, taisez-vous..."
As meninas inventavam palavras para se conversar diante dos
outros. Eram como onomatopeias pressentidas, sem nenhum sentido nítido,
próprias daquele mundo vago em que viviam.
— Vous
savez... Nous avons entendu aujourd’hui une conversation entre une femme et son
mari…
— Oh, mes enfants, interrompia: vous avez une curiosité très
maladive! Je sais parfaitement quelles sont les conversations entre une femme et
son mari, voyons! C’est
quelque chose de honteux.
— Je voudrais bien savoir ce que c’est “tarlataner”. Ils parlaient
tout le temps de “tarlataner”, de “haut tarlatanage”...
— Alba!... Ne prononcez jamais ce verbe intransitif! C’est très
vulgaire.
Vivia resfriada na exigência das blusas brancas. Chegava afrosa,
nariz vermelho, pingando. Lúcia lhe propunha logo um chá, mas com bastante rum "pour
avoir des rêves".
— Je ne veux pas de rêves! ela rufava as rendas, gritandinho, je
ne veux pas de rêves! Les chats me suffisent!
E pressentira uma vergonha que a inundava de remorsos felizes. Pra
que contara o seu olhar na janela enfrestada do quarto, o ouvido, a cara toda
enfim na umidade de setembro, aprendendo o esperanto fácil dos gatos da noite? "J’attrape
mes rhumes à cause de ces chats..." E se resfriava inda mais, devorando
homeopatias. Nos seus quarenta e três anos de idade, Mademoiselle estava tomada
por um vendaval de mal de sexo. Não se compreendia, nunca tivera aquilo em sua
virgindade tão passiva sempre. Amara sim, duas vezes, mas nunca desejara.
Agora, as meninas tinham chegado, era o vendaval, tão estalantes de
experiências próximas, que puseram tuaregues no corpo de Mademoiselle. E
Mademoiselle estava... só um verbo irracional dirá no que Mademoiselle estava:
Mademoiselle estava no cio.
O vendaval. Ela sentia masculinos, “ces personnages” que a frolavam
no escuso do quarto, na fala das meninas, na desvirginação escandalosa das
ruas. Agora Mademoiselle anda de a-pé e procura no jornal onde é o lugar de
encontro das multidões. Mas não vai lá, tem medo. Não é feliz, mas também não
pode-se dizer que ficasse infeliz, Mademoiselle estava gostosa. E nessa
paciência compensadora dos tímidos, ela ia saborear todos os dias nas conversas
com as meninas um naco elástico dos gozos que em pouco elas irão viver. Quase
sempre era assim mesmo: era ela a concluir em malícia as frases inventadas
pelas alunas, que por certo ficariam muito atrapalhadas se a quarentona as
deixasse continuar o que inventavam até um fim inexistente e sequer
pressentido.
— Un après-midi nous avons vu un homme avec une barbe, vous
comprennez... derrière la cathédrale de Rouen... Alors, vous comprennez...
— Ma chère enfant, j’estime que vous allez trop loin. Je vous
défends de continuer! E decisória, pxx: Ce qui se passait derrière la
cathédrale de Rouen, voyons! se passe derrière toutes les cathédrales!
Mas não só ela concluía assim as investigações das meninas. Era
ela mesma a propor os assuntos mais salgados. E quando os propunha, chegando o
instante da verdade, sem coragem pra continuar, ela exclamava o “quelle
sottise” e reticenciava mais claro que tudo:
— Et alors… c’était comme derrière la cathédrale de Rouen.
A catedral contava tudo. E era deliciosamente punidor o tudo que
contava a catedral. Mademoiselle arranjava as rendinhas, agitada. Alba
esperando, se entregara ao cacoete favorito, aquela mania desagradável de
dobrar o pulso, forcejando pra tocar o antebraço com o polegar. Mademoiselle
volta à vida, com a irritação:
— Alba, pourquoi faites-vous ça...
E a menina, entre envergonhada e atacante:
—
Excusez-moi, Mademoiselle... c’est de la cochonnerie.
—
Cochonnerie!
Aquilo a espantava enfim. As meninas andavam empregando
“cochonnerie” sem o menor propósito. Alba trocou o olhar preventivo com a mana,
mas contendo o riso, se escondeu numa inocência espantada, afirmando que a
professora mesmo é que dissera serem “cochonneries” as coisas inúteis.
— Moi,
mon enfant!
— V’oui!
le jour que les ouvriers se donnaient la main!
O caso é que três dias antes elas liam no jardim aproveitando o
solzinho raro daquele setembro chuvoso e passara na rua um casal de operários
se dando a mão. Decerto o rapaz estava querendo dizer coisas bem íntimas,
porque a moça procurava se desprender, ambos forcejavam e riam numas
gargalhadas que enfeitaram toda a rua. Mademoiselle saiu da leitura e se
perdeu, seguindo os namorados com os olhos e a vida. As meninas também tiveram
a atenção chamada pelos risos, mas percebendo o que era, apenas dois namorados,
quiseram voltar à leitura geográfica lhes contando coisas mais novidadeiras.
Mas o perdimento de Mademoiselle despertou a vontade de maliciar. Alba disse:
— Qu’est-ce qu’ils font?
Mademoiselle corou vivo e trouxe os olhos para as duas. Mas assim
pegada em pecado não lhes aguentou o olhar agudo, já rindo muito. Quis
disfarçar, arranjando a rendinha, e murmurou o mais inocente que pôde fingir,
uma resposta que considerou perfeita:
— Ils se
donnent la main. Mas Lúcia no
sufragante:
— Pour quoi faire!
Mademoiselle fitou indignada a menina. Chegou a estremecer na
visão. Pois elas bem não tinham visto o que se passara atrás da catedral de
Ruão! Deu um daqueles muxoxos, meio nojo, meio desnorteamento, que lhe mereciam
todas as cochonerias dessa vida:
−...pour quoi faire... pxx!...
Alba e Lúcia a examinavam deliciadas. Mademoiselle fazia força pra
se acalmar, "pour quoi faire..." Ela bem sabia que não se deve deixar
perguntas de criancinhas sem resposta. Era melhor fingir desinteresse por
aqueles dois “personnages gluants”, se dando a mão com tanta imoralidade. E
voltou ao livro enquanto ainda sussurrava só consigo, aturdida, “pour quoi
faire”...
A leitura continuou, e as meninas se engolfaram nela, num átimo
esquecidas do incidente que não rendera bastante. Mas Mademoiselle eis que
fechava o seu livro de supetão e o põe com ruído na mesinha. A olharam numa
surpresa que logo se transformou em assombro quando viram a cara da mestra.
Naquela calma veludosa de paz Mademoiselle estava completamente transtornada,
olho em desvario pulando de Lúcia pra Alba, de Alba pra Lúcia, boca entreaberta
num esgar, as rugas fantasistamente se mexendo.
— Laissez votre livre de coté, mes enfants! Lá, sur le banc!
As meninas obedeceram maquinais, sem vontade nenhuma de rir, preocupadas.
Mademoiselle afinal exclamava, cheia da vitória:
— Et bien!?...
Não sabiam o que se passava, já meio hirtas agora, garantidas que
se se olhassem não aguentavam, caíam na gargalhada.
— Et bien! Mademoiselle as incitava no triunfo: Avez-vous bien
réfléchi?
— Je ne sais...
— Taisez-vous! Dites! Vous voilà la main dans la main, tout à fait
comme (mastigava sílaba por sílaba, no desprezo colérico) comme ces deux
personnages qui se promenaient tout à l’heure, dites! Qu’ est-ce que vous
sentez, dites!
— Mais...
— Taisez-vous!
Alba, menos capaz, acabou com aquela bobagem:
— Moi, je ne sens rien.
— Et vous, Lúcia! dites! Vous êtes plus agée que votre soeur, vous
devez sentir quelquer chose! triunfante, triunfante.
Mas Lúcia, um bocado irritada, se desprendeu da irmã, dando de
ombros. Irritada apenas? Lhe seria impossível se compreender naquela desilusão
apreensiva, que a deixava numa vaga esperança de chorar. Mademoiselle estava
soberba, muito esguiazinha, magistral. Revelou, se sentindo absolutamente
dominadora:
— Voilà.
On ne sent rien, vous savez! Il y a des gens ignorants qui font ces
cochonneries inutiles, mais on ne sent rien, mes enfants, on ne sent absolument
rien. Retournons à
notre géographie.
De-noite, quando se arranjavam pra deitar, entrava o ar pesado,
oleaginoso, de rosas. Alba se olhou muito no espelho, sentada. Estava velha,
com medo. Suspirou fundo e de repente se enforcou com ambas as mãos. Veio
descendo com elas pelo corpo, pelos seios nascentes, como naquela página do "Médecin
malgré lui" em que Mademoiselle escrevera em vermelho “page condamnée” pra
que as alunas não lessem. Lúcia, escutando o suspiro, chegou-se pra irmã. Alba
recusou vivo o contato, mas lhe veio a frase diária, pra se desculpar da
grosseria:
— Me sinto freudiana, hoje... Acho que vou sonhar tarlatanagens.
Lúcia censurou:
— Olhe, Alba, você carece acabar com essas histórias... Você anda
muito complexenta demais.
Mas perdoou logo. Deu um piparote nos cabelos pesados da mana:
— Cochonneries inutiles.
Caíram na risada as duas. E tanto as cochonneries como as cochonerias
tarlatanaram daí em diante no arrulho dúbio delas.
Mademoiselle ficara tonta com a referência de Alba ao casal de
operários. Recordou imediatamente a cena de que se saíra com tanto
brilhantismo, imaginava. Pois Alba compreendera que o que faziam os dois
namorados eram “cochonneries inutiles”! Estava desnorteada porque "les
cochonneries ne sont pas inutiles, evidemment!" reconhecia no íntimo,
imaginando como sair da enrascada. Enxugou lerdo o nariz. Desistiu. Confessou
devagar, pesando as palavras, conciliatória:
— Ma chère enfant... il ne faut pas dire des choses inutiles que
ce sont des cochonneries, par exemple!... Les cochonneries sont... des
cochonneries! E exaltada de repente, se sacudindo toda: S’embrasser sur la
bouche, voilà une cochonnerie! Une chair vive contre une chair vive, pxxx!
Se ergueu pra partir. Tinha que ir à farmácia homeopática, tomar
dois bondes, e o Angélica dava uma volta enorme até chegar na praça da Sé, se
desculpou. Aquela evocação bruta de carnes vibrantes se ajuntando a escorraçava
aos repelões. Enxugou o nariz.
Descendo do bonde na praça, embora a rua da farmácia ficasse ali
mesmo, Mademoiselle é invadida por um vendaval misterioso, sem nexo. Como é que
estava andando assim noutra direção, subindo a praça, enveredando para a
catedral! O bom-senso a obrigou a se definir, não era possível "se tromper"
tamanhamente "de lisière". Mademoiselle se dirigiu para a farmácia,
inquieta muito, batida por desilusões. Comprou o alho sativo e mais vários
tubinhos de pérolas alvas. Chegou à porta, pôs o embrulho na bolsa, estava
escurecendo e agora a inquietação já se transformava num desvario completo.
Ficou ali, olhando a gente muita que passava apressada. Não sabia. Como que uma
voz a chamava, uma voz fortíssima, atordoando. Não era voz, era o brouhaha dos
bondes, dos autos, da gente. Mas o destino é que mandava os passos dela. Tinha
que voltar e em vez o destino, não era o destino nem a voz não, "quelle
sottise!" em vez estava subindo exagitada, frolando nos homens. Contrária
à sua direção, Mademoiselle sobe, chamada pela catedral. Apressa o passo,
estava quase correndo. O pavor a tomara, era um vento medonho na praça, sopro
de sustos tamanhos que os arranha-céus se desmoronam com fragor. Chega o
fragor. Chega o medo horrível, mil braços que a enforcassem, mil bocas, "une
chair vive contre une chair vive, lhe rasgam a blusinha, no ventre! e ela
trapeça sem poder mais. Tem que parar. Se encostou nas pedras da abside, ia
cair. Os homens passando afobados, meio se viraram na indecisão, sem se decidir
a perguntar se aquela velhota quer alguma coisa. Pode estar doente, pedir
auxílio, perdiam tempo. Passavam. Afinal o guarda deu tento na coitada.
— A senhora precisa alguma coisa?
Mademoiselle tirou a mão dos olhos, muito envergonhada, refeita de
súbito com a pergunta. "Non, merci", mas se percebendo noutra "lisière",
consertou: Não, obrigada. E agora, já sem sustos mais, num desalento vazio,
termina de contornar o "derrière" da catedral. Já não era mais ela
que “bousculava” os outros, como diriam as meninas, a multidão é que a
busculava, a empurrava, a sacode. Mademoiselle não enxerga mais, não sente. Nem
percebe que afinal toma o terceiro ou quarto Angélica chegado. Nunca que
imaginasse o acontecido, o mal de sexo já está grande por demais, e Mademoiselle
precisa duma experiência maior pra alcançar a verdade.
As ruas agora já estavam mais visíveis na entressombra, mais
largas, seguindo por avenidas ricas. Mademoiselle enfim reconheceu com
franqueza que já vinham descendo pela avenida Angélica. Voltava pouco a pouco à
vida. Mas se estivesse no seu natural iria até a rua das Palmeiras e tomava
outro bonde que a levasse à Sebastião Pereira, onde ficava o segundo andar da
sua pensão. Sem elevador. Mademoiselle gosta pouco de caminhar. Mas eis que dá
um puxão brusco na campainha, o bonde para espirrando. Mademoiselle desce e se
lembra de enxugar o nariz, pra que desceu!
Cortando pelas ladeiras oblíquas se dirige à pensão, anda.
Acontece que assim, no crepúsculo caseiro, numa última esperança de antemão
desenganada, Mademoiselle passa pelo "derrière" da igreja de Santa
Cecília. Assim mesmo uns sustinhos a tomaram, o respiro cresceu, foi agradável.
Mademoiselle chega sem muita desolação ao seu segundo andar. Havia
um rol da engomadeira, difícil de ajustar, blusas e blusas. Mademoiselle
examina as rendas com aplicação. De vez em quando para, trata de enxugar o
nariz, ah! o remédio. Se esquecera dos remédios mas agora é tarde. Vamos deixar
o remédio para depois do jantar. Mademoiselle ergueu súbito a cabeça, voltou-a pro
lado, esperando, olhos baixos. Ficou assim por algum tempo, ansiosa, no mal-estar
quase suave, e como nada sucedesse, como sempre, retornou ao cuidado de
encrespar com mais minúcia a rendinha engomada da blusa. Agora vivia assim, na
virulência nova da sua solidão, eis que estremecia. Lhe vinha a sensação até
brutal de ter alguém junto de si. Sobrestava, tinha que sobrestar por força a
ocupação qualquer em que estivesse, meio que se voltava e ficava esperando,
olhos baixos. Nunca que ela olhasse com franqueza o lado, o canto, a porta
donde lhe vinha a presença do homem. Ela desoladamente sabia não haver ninguém
ali.
Mas daquela aventura horrível lhe fica um fraco pelo "derrière"
das igrejas. Não vê igreja solta que não lhe brote a fatalidade de passar por detrás.
A desilusão não a desilude nunca. Mademoiselle passa numa brisa agradável de
apreensões, apesar do pleno dia, que ela nunca sai de-noite mais, tem um medo!
Sabe de-cor os sacristães cuidadosos que não deixam nas reentrâncias das
absides a prova dos homens "gluants" da noite. Não vem mais no seu
bonde, da casa de dona Lúcia até a pensão. Para uma esquina antes do largo de
Santa Cecília. Até imagina que está precisando andar mais a-pé. Vem. Está muito
corretazinha e retazinha. Vem, faz a volta da igreja, lhe bate a brisa de
sustos, é agradável. Mademoiselle estuga o passo e chega ofegante à porta da
sua pensão.
Nesse dia as meninas a atenazaram por demais. A cidade vinha se
arrepiando de pretensões políticas porque afinal tinham lançado mesmo o já
muito proposto partido da oposição, o Democrático. Dona Lúcia embarcara na onda
que lhe trazia um gasto novo de volúpias. Tinha parente importante no P.D. e
nessa tarde, pela primeira vez depois de sete anos, os salões dela se abriam
para o "cocktail" aos chefes do Partido. Dona Lúcia decidiu que as
filhas haviam de aparecer nem que fosse um momento. Fazia questão de se
apresentar ornada de resultados, bem matrona, imponente em seus traços de
infeliz. Mademoiselle devia comparecer, como preceptora.
As meninas ficaram de lado, era natural. A reunião era quase só de
homens, poucas senhoras e vários sonhos políticos de subir. O velho conselheiro
comparecera, na sua figura raçadíssima, "avec une barbe, vous savez".
E assim, olhando de longe tantos homens que a gesticulação política ainda
tornava mais ferozes, Alba e Lúcia tinham caído em cima da professora.
Era no fim daquela primavera, "et alors, vous comprennez",
Mademoiselle chegara mais resfriada que nunca, o nariz até inchara um
pouquinho, e com o embrulho esquisito, um cilindro comprido, pajeado
cuidadosamente junto ao seio. As perguntas das meninas foram tão insistentes,
as suposições tão maliciosas que Mademoiselle precisou confessar. A homeopatia
não lhe dava jeito mais ao resfriado, “bronchite” ela insistia, no eufemismo
contraído de moça, pra evitar de qualquer forma que esses brasileiros falassem
em “constipação” pxx! Pois então se lembrara de comprar aquela garrafa de rum,
confessou envergonhadíssima, “un tout petit peu!” que ela quase gritava
ameaçadora, diante do riso das meninas.
O jogo principiara logo muito esquentado. Estavam as três mais que
freudianas, daquele recanto da saleta espiando tantos homens que deviam ser
importantes, fazendo tudo o que desejavam. Os "cocktails" passavam, "cocktails"
fortes bem pra homem, dona Lúcia se recusava a beber. Mas as meninas
principiaram tarlatanando cada vez mais audaciosas. Mademoiselle não continha
mais ninguém.
−...vous savez pourquoi ils se sont installés au dessus du théatre
Santa Helena, n’est-ce pas?...
— Mais non! Racontez-moi ça.
E Lúcia sem saber onde vai parar:
— Après les spéctacles ils montent au Parti et font de choses
affreuses, vous comprennez, n’est-ce pas!
— Ma chère enfant, taisez-vous. Voyons...
mais qu’est ce qu’ils peuvent bien faire alors?
— Vous
comprennez, n’est-ce pas! Ils ont fait un trou, Mademoiselle, un énorme trou!
Monsieur le Premier Sécrétaire s’est mis tout nu sur un énorme plat, et on l’a
descendu dans le théatre, vous comprennez ce qui se passait…
— Lúcia, je vous défends de continuer! peremptória, à bout.
— Mais,
Mademoiselle, c’est qu’ils commencent tous a roucouler!
— Tais-toi! tais-toi! ela espirrava na sua binaridade autoritária
atual, imagem derradeira da autoridade que ela não conseguia mais ter sobre
aquelas pequenas rabelaisianas da primavera. "Tais-toi! tais-toi!"
pulandinho de gozo entre as duas garotas, no desvão da saleta, emborcando a
taça de "cocktail". Dona Lúcia acabara suspeitando alguma coisa de
anormal na alegria daquelas três, ordenara às meninas que subissem. E se foram
as três para cima, logo calmas na apreensão de algum malfeito grave.
Só agora percebiam que a noite caíra. O relógio antigo do estúdio
marcava oito horas. Um susto gélido de brisa entrou pela janela e invadiu
Mademoiselle. Atchim, ela espirrou estremecendo. Foi se encurtando muito, ficou
pequeninha, quase um nada vivaz de "chair vive", resumida a uma
girândola de espirros em surdina. Teve medo, era muito tarde. Ainda imaginou
esperar que a festa acabasse, estava no fim, e pedir a dona Lúcia que a fizesse
acompanhar por qualquer um dos criados de ocasião. Mas ficou logo horrorizada
com as audácias dele, decerto quis kidnapá-la, mas os outros passageiros do
bonde intervieram, e ele (preferia o que a servira) lhe deu o braço pra descer
e a carregou possante, encostando a mão no peito dela, bem no peito. Criou
juízo e decidiu ir só.
O bonde felizmente vinha cheio até demais, tinha uns seis
passageiros derramados pelos bancos e Mademoiselle, acalentada, se sonha
defendida por eles. Se o criado viesse, eles derramavam sangue na luta,
bastante sangue. E que coragem deles, que luta feroz! Os defensores bufavam de
cólera, os socos caíam, o auto não respeitava o silêncio da noitinha e num
momento, o que foi! os bondes de-noite correm tão desabalados pelos bairros,
era aquele mesmo tumulto da praça da Sé que a tomava. Seria uma voz? seria o
destino? Mademoiselle já mal respira e toca brusco a campainha. O bonde para
com um grito horrível, é um assassinato, aliás, ela corrigiu, “assassínio” em
português. Mademoiselle nem desce, salta, pula, foge, se livrando, faz o
quarteirão sem pensar, não há multidão que a buscule, as árvores, as árvores é
que a machucam, saem sombras kidnapantes delas, os lampiões fazem trous, trous,
doloridíssimos no ar desmaiado.
Mademoiselle percebe nítido, mas com uma nitidez inimaginável de
tão fatal, que chegou no largo de Santa Cecília. Seguirá reto? É só atravessar
o largo pela frente da igreja e, uns cem passos mais, a porta salvadora da
pensão... Mademoiselle sabe disso, decide isso, quer decidir isso, mas agora é
tarde, os passos a contrariam e a conduzem atrás da catedral de Ruão. É um
silêncio de crime, o bairro dorme em paz burguesa. Mas tinha que suceder. Duma
das ruas que desembocam na curva da abside, saltam dois homens, "avec une
barbe?" não viu bem, mas "très louches", que se atiram a
persegui-la.
Atchim! que ela explodiu, exagerando o grito de socorro com
volúpia. "C’est pour les advertir que je suis enrhumée", ela se
pensa, heroicamente, na presciência de que as “constipações” protegem contra os
assaltos à virgindade. E atchim! ela repetiu mais uma vez, sem vontade nenhuma
de espirrar, ameaçadora, se escutando vitoriosa no deserto da praça. Poum...
poum... poum... Os dois perseguidores vinham apressados, passo igual. E o som
dos sapatões possantes, eram possantes, devorava o atchim espavorido da pucela.
E as passadas reboam mais vitoriosas ainda no silêncio infeliz do largo, ninguém
para a salvar, só as árvores inúteis como "cochonneries", enquanto os
dois homens a vão alcançar. Não pode mais. Cairia nos braços deles, e eles a
violariam sem piedade, exatamente como sucedera atrás da catedral de Ruão.
Mademoiselle apressa o passo ainda mais. Mas talvez o temor a
imobilizasse como ao passarinho no olho da cobra: dá uns três passos
corridinhos e logo quase para de andar, esperançosa, sussurrando uns passos
lerdos, curtos. Poum... poum... poum... Ela avistava, era um fragor de catedrais
desmoronando, ela enxergava muito bem os coruchéus despencando em linha reta
sobre ela, arcobotantes agitados se enrijando, a flecha zuninte da abside, o
crime seria hediondo porque ela havia de se debater com quanta força tinha, só
a encontravam no dia seguinte desmaiada, as vestes rotas, sangrentas, o que
diriam as meninas! muito sangue, poum... poum... já lhe punham, se lhe pusessem
as mãos gluantes nos ombros, ela havia de berrar.
Afinal um dos homens agarra-a pelo pescoço. Mas segurara mal.
Mademoiselle deu um galeio pra frente com o pescocinho, mais uma corridinha e
conseguiu se distanciar do monstro. Mas o outro monstro agora alargava muito o
passo e ela percebeu, a intenção dele era estirar a perna de repente, trançar
na dela bem trançado e com a rasteira ela caía de costas pronta e ele tombava
sobre ela na ação imensa. Porém ela fez um esforço ainda, um derradeiro
esforço, deu um pulinho, passou por cima da perna e aqui ela chorava. Quis
correr, não podia, porque o outro monstro veio feito uma fúria, ergueu os
braços políticos e espedaçou-lhe os seios que sangravam. Mademoiselle deu um
último gritinho e virou a esquina.
Mademoiselle virou a esquina da sua rua. Mademoiselle virou a
esquina. Sua rua. Enxergou, era tão oferecidamente próxima a porta da pensão, e
ela não teve mais esperança nenhuma. Nunca mais que havia de passar por trás
das igrejas, e no dia seguinte as meninas desnorteadas topavam com aquela
professorinha de dantes, longínqua, pura, branda. Mademoiselle estava salva,
salva! E por sinal que a porta da pensão também estava alvissareiramente
iluminada ainda, pois eram apenas vinte e uma horas. O copeiro na porta, homem
de seu dever que a defendia se preciso, conversava com as criadas do portão
vizinho. Um cheiro leve de acácias.
Mas isto Mademoiselle não podia sentir, nariz que era um tomate
raçado de cooperativa. Sentiu mas foi que estava irremediavelmente salva pra
toda a vida e então pôde correr. Correu, já num passinho lúcido, sem sofismas,
e o pelo do renard falso lhe fez uma brisa tão irônica no nariz que, quando
parada na porta, primeiro ela teve que atender ao tiroteio dos espirros. E
foram atchim, atchim, atchim e atchim. "J’ai manqué un atchim, n’est-ce
pas?"
Foram cinco. Pois assim mesmo os perseguidores lá vinham chegando
atrás dela. Só que agora Mademoiselle estava mesmo salva pra todo o sempre e
pôde reagir. Os homens vinham chegando em suas conversas distraídas. Se plantou
no meio da calçada, fungou um sexto espirro inteiramente fora de propósito,
tirou mais que depressa dois níqueis da bolsa. Os homens tiveram que parar,
espantados, ante aquela velhota luzente de espirro e lágrima, que lhes impedia
a passagem, ar de desafio. E Mademoiselle soluçava as sílabas, na coragem
raivosa de todas as ilusões ecruladas:
— Mer-ci pour votre bo-nne com-pa-gnie!
E lhes enfiou na mão um níquel pra cada um, pagou! Pagou a bonne
compagnie. Subiu as escadas correndo, foi chorar.
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