Astúcias de Namorada
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
CAPÍTULO 1
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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CAPÍTULO 1
Havia baile,
ou antes sarau dançante, numa casa em Almada.
Num pequeno
jardim, que se espraiava até a beira dos rochedos pendurados sobre o rio,
vinham os grupos dos convidados descansar um pouco das polcas e das valsas,
respirar, e relancear os olhos pelo delicioso panorama do Tejo, em cujas águas
traçava a lua como que uma estrada argêntea. De quando em quando enchia-se o
jardim de risos, de segredinhos; a lua iluminava por entre as folhas roupas
alvejantes, que passavam flutuando como o véu dos silfos; depois pelas janelas
abertas da sala saía uma bafagem de baronia, proveniente dos primeiros
compassos duns lanceiros, os grupos dispersavam-se e engolfavam-se em turbilhão
pelas portas de vidraças, e o jardim ficava de novo solitário, mas não
silencioso; porque nele se escutava o rumorejar da brisa, o eco da música do
baile, e o murmúrio do rio que gemia docemente embaixo nas fragas.
Num dos
intervalos das polcas, e quando o jardim se povoava de novo com os fugitivos do
baile, um par, mais fatigado talvez que os outros, veio sentar-se numa espécie
de caramanchão, que ficava na extremidade do jardim, mais próximo da orla do
rochedo, e por conseguinte quase suspenso, como um ninho de gaivotas, sobre as
águas. Devo retificar o que disse; não foram ambas as pessoas indispensáveis
para formarem um par, não foram ambas as pessoas que se sentaram; só o fez uma
senhora de vinte e cinco anos talvez, alta, elegante, morena e viva, de olhos
rasgados e cabelos negros, que cintilavam como o ébano à luz brilhante da lua
cheia.
O cavalheiro
ficou de pé, apesar de sua gentil companheira lhe ter visivelmente
proporcionado um lugar junto de si, como se podia deduzir do modo como
aconchegou o vestido, fazendo ocupar à crinoline o menos espaço possível; mas
essas piedosas intenções foram perdidas, porque o seu braceiro não ousou
percebê-las, e conservou-se, como dissemos, em pé, ainda que os seus olhos
ardentes, cravados no rosto da sua companheira, quando esta o não podia ver,
denunciavam que não era a indiferença que o impedia de aproveitar o favor que
se lhe queria conceder.
E contudo esse
tímido moço estava na idade em que esses favores se ambicionam com mais ardor
do que aos trinta e cinco anos a pasta de ministro, estava na idade em que se
devaneiam escadas de seda flutuando ao sopro das auras, serenatas interrompidas
por um amante cioso, amores aventurosos, mil perigos a atravessar para se obter
um sorriso, uma flor, uma palavra, na idade feliz em que se inveja Leandro só
ao pensar quantas vezes se teria acendido o farol de Hero antes da terrível
noite, em que a morte, envolta em horrendas vagas, segundo a admirável
expressão de Bocage, arrojou um cadáver lívido aos pés da torre, em que ainda
não expirara o eco dos beijos da antecedente noite.
E o tímido
rapaz alisava a luva branca, e procurava com frenesi uma palavra qualquer, que
lhe não ocorria em presença dessa formosa senhora, cujos pés desejava beijar; e
pensava que imensa felicidade no seria a sua, se em vez de estar sem ânimo,
embaraçado e vermelho, diante dela, estivesse na outra margem do Tejo, e
tivesse que o atravessar a nado para cair ofegante e exânime junto desse
adorado vulto. Então não seria necessário falar; a sua palidez, os seus olhos
cheios de amor diriam tudo, e muito infeliz seria, se a nova Hero, vendo-o
ensopado por causa dela, lhe não dissesse alguma coisa que lhe desembaraçasse a
língua, e partisse o gelo, que se interpunha obstinadamente a dois corações,
que ansiavam por se unir.
A gentil
senhora esteve um instante olhando para ele com um sorriso meio despeitado,
meio zombeteiro, e afinal, vendo que a malfadada luva branca ainda não parecia
suficientemente alisada, meneou a cabeça com um gesto encantador, que fez
ondular as suas tranças negras, e que espalhou na atmosfera um aroma
inebriante, aspirado com delícias pelo tímido moço. Depois voltou os olhos para
o rio, encostou a face à mão enluvada, e ficou-se a contemplar esse quadro
magnífico.
A noite
estava linda, uma destas noites de luar, como o cálido estio as envia aos
países meridionais. No céu dum azul suavíssimo, algumas nuvens, volteando em
torno da lua, recortadas em mil arabescos pela brisa noturna, embebidas todas
no cândido fulgor do astro da noite, pareciam as maravilhosas ondas do véu
luminoso que Febe arrasta pelo firmamento, em noites assim lânguidas e serenas.
O Tejo desenrolava a sua imensa toalha líquida, prateada no centro pelo luar, e
negra junto do cais, ou à sombra dos mastros dos navios imóveis nos
ancoradouros. Ao longe Lisboa avultava, espraiando a sua casaria à beira do
rio, e pelas faldas das suas sete colinas. As longas fileiras dos seus
candeeiros de gás formavam à borda do Tejo como que uma fila de chamas. Alguns
barcos de pescadores deslizavam silenciosamente, soltando ao sopro da brisa as
suas velas brancas.
Este
panorama, que só tem rivais na baía de Nápoles ou na enseada de Constantinopla,
devia fascinar quem o contemplasse, como a gentil senhora em quem falamos, do
caramanchão dum jardim, cheio de árvores, onde expiravam os últimos ecos duma
valsa, onde o luar, coando-se por entre as folhas, lutava com os luminosos
reflexos, que dimanavam dos lustres, cintilando nas salas.
Parecia ela
efetivamente toda absorvida na sua contemplação, quando a voz trêmula e
profundamente comovida do seu jovem companheiro a fez estremecer.
Essa voz,
toda vibrante de paixão, dizia simplesmente estas palavras:
— Que...
linda... noite!
—
Lindíssima, não é? respondeu ela, voltando para o seu interlocutor o rosto
ainda encostado na mão, o que lhe permitiu erguer os olhos para ele sem
levantar a face, dando assim às pupilas uma expressão voluptuosa, que encerra
um encanto irresistível, um magnetismo fascinador... Como que parecem flutuar
na atmosfera todos os sonhos dos poetas! Sabe no que eu pensava agora, vendo
aquele bote, que resvala à flor das águas, como um cisne da noite? Pensava se
seria esse o barco de Lamartine, e se levaria lambem dois amantes, que fossem
murmurando um ao outro, com as mãos enlaçadas, as doces palavras que tanto nos
encantam, quando o autor do Lago as traduz na melodiosa linguagem da sua
poesia.
— Ah! bem
sei, respondeu o desastrado:
Ainsi
toujours possés vers de nouveaux rivages...
— Oh! meu
Deus, tornou a senhora visivelmente impacientada, conheço os versos, mas, como
não quero privá-lo do prazer de os recitar, peço-lhe que me acompanhe à sala, e
permito-lhe depois que venha de novo confiar à lua e ao Tejo as inspirações de
Lamartine.
E a formosa
menina, rubra de despeito levantou-se, e tomou o braço do seu interlocutor, que
ficara fulminado por aquela inesperada apóstrofe, e que debalde tentava
balbuciar umas palavras sem nexo.
Frederico
era um moço esbelto de vinte e dois para vinte e três anos, duma gentileza
verdadeiramente notável, dum espírito inteligente e cultivado, duma bondade
proverbial, mas também duma timidez invencível. D. Lucinda, a gentil senhora
que entra neste momento na sala, pudera apreciar as brilhantes qualidades de
Frederico, ouvindo-o conversar desembaraçadamente em uma reunião íntima, onde o
seu acanhamento não tivera motivo para se revelar. Deslumbrada por esse
esplêndido conjunto de predicados, Lucinda tentara fixar a atenção do gentil
moço, e a coquete conseguira-o em breve, mas, quando se tratara de dar o passo
decisivo, manifestara-se toda a timidez do espírito virginal de Frederico. Era
o seu primeiro amor, e só os tolos conseguem atravessar afoitamente essas
colunas de Hércules. Lucinda, experimentada nessas questões, compreendera
primeiramente o embaraço do mancebo, e, lisonjeando-se com isso, entendera
também que o devia auxiliar. Mas o que animaria qualquer outro, acanhou ainda
mais, se me permutem o termo, a timidez desconfiada de Frederico. Se Lucinda
fosse uma tímida menina, que corasse como ele corava, que tremesse como ele
tremia, os olhos de ambos falariam tanto, as pálpebras mesmo, abaixando-se a um
tempo, teriam uma linguagem tão eloquente, que afinal os lábios ver-se-iam
obrigados a traduzir em palavras esse mudo idioma. Porém, como podia suceder
semelhante coisa, se o olhar ardente de Lucinda deslumbrava aquele em quem se
fitava, se a sua tranquila superioridade assustava Frederico, e o fazia tremer
a cada instante, com o receio de desempenhar o papel de criança ridícula diante
dessa esplêndida mulher?!
O ridículo,
que espera nos dois extremos da estrada da vida tanto os que avançam como
fanfarrões, como os que recuam com demasiada fraqueza, assustando Frederico que
temia vê-lo diante de si, assaltava-o quando ele para lhe fugir retrogradava
sem ter ânimo para obedecer ao fervido olhar, que lhe dizia:
"Avante". O pobre rapaz, vendo assim de súbito desfeitos em pó os
seus planos estratégicos, preferiria um abismo abrindo-se-lhe debaixo dos pés a
ouvir as palavras friamente zombeteiras de Lucinda.
Entretanto o
baile findara, e os lisbonenses preparavam-se para atravessar o Tejo. Frederico
e a família de Lucinda eram as únicas pessoas, que tinham de empreender essa
excursão. Era pouco mais de uma hora quando Lucinda e sua mãe puseram as capas,
e foram arrancar às delícias do whist o patriarca da tribo, que saiu furioso de
ter de se embrulhar em dez mantas e de ter perdido dez robe consecutivos. Frederico,
depois da cena do caramanchão, bem desejaria ficar, mas a mãe de Lucinda,
sabendo que era ele o único dos cavalheiros presentes que regressava a Lisboa,
reclamou sem cerimônia o auxílio do seu braço para descer a íngreme calçada.
Assim, Frederico viu-se obrigado a pegar no chapéu, e a seguir, suportando o
peso da sua volumosa braceira, o pai de Lucinda, que se apoderara desta para
lhe explicar durante o caminho as infernais combinações que tinham dado em
resultado a derrota memorável dessa noite, verdadeiro Waterloo nos seus anais
de jogador de whist.
As
circunstâncias conspiravam-se todas contra Frederico. Chegados ao cais de
Cacilhas, notou-se que apenas um barco se balouçava nas águas negras, que
batiam murmurando nos degraus da escadaria. Bradou-se pelos barqueiros, que
dormiam no fundo do bote, e, quando estes se levantaram, reconheceu-se que eram
os remadores de Frederico. Os venerandos progenitores de Lucinda protestaram,
em alta voz, contra a insolência dos seus barqueiros, que os tinham posto inconsideradamente
na dolorosa necessidade de atravessarem o Tejo a nado, ou de dormirem ao
relento nas pedras úmidas do cais. Frederico ofereceu imediatamente o seu bote.
Não era possível proceder doutro modo. Por infelicidade o barco era vasto
bastante para que todos coubessem. Frederico viu-se obrigado a entrar e a
sentar-se defronte de Lucinda. O pobre rapaz nem ousava levantar os olhos.
Desfraldou-se a vela, e o barco resvalou silenciosamente à flor das águas.
Os dois
velhos tinham-se sentado na popa do barco. O vento, sem ser forte, era
suficiente para enfunar a vela e para dar ao bote um leve balanço, que foi
suavemente acalentando os dois esposos. Estes principiaram a bocejar
alternadamente; depois foram deixando pender as cabeças até que tocaram quase nos
joelhos. Levantaram-se a um tempo, e olharam espantados, com os olhos meio
abertos, para o céu azul. Depois os olhos fecharam-se de todo, e os
cumprimentos recomeçaram. Pareciam dois mandarins d'étagére. Frederico e
Lucinda a custo sofreavam o riso, e trocavam entre si olhares de inteligência,
que pressagiavam uma reconciliação. Os dois velhos resmungavam palavras
ininteligíveis, e recostavam a cabeça para trás, de forma que a cabeça, em vez
de lhes descair de popa a proa, descaía-lhes de bombordo a estibordo, e de
estibordo a bombordo, movimento bem combinado, que produziu um abalroamento,
que os despertou a ambos.
— Senhor
Azevedo, bradou a matrona indignada, não tem vergonha de vir a dormir no bote?
Já me estragou as flores da cabeça.
— Senhora D.
Leocádia, respondeu o velho com dignidade, veja se dorme com mais cautela para
não amarrotar o chapéu das pessoas, que vão acordadas a cismar nos seus
negócios.
Estas
apóstrofes promoveram a explosão das gargalhadas, já muito reprimidas, de
Frederico e de Lucinda. O velho mirou-os com espanto, embrulhou-se mais na
manta, encostou-se para trás e principiou a ressonar.
— Este
Azevedo sempre foi assim, disse a velha esposa fazendo coro com os dois, dorme
em toda a parte... Como ele ressona!
E dizendo
isto, a boa senhora olhou com desprezo para seu marido, deixou descair a
cabeça, e entrou no dueto ressonando igualmente.
A brisa
refrescara, e, enfunando a vela, fazendo tombar o barco para um lado. Os
marinheiros pediram a Frederico que se fosse sentar junto de Lucinda.
Já veem que
o acaso continuava a fazer das suas.
Foram
calados um instante, com os olhos fitos na lua, que desdobrava a sua plácida
luz pelo céu azulado e pelas águas do rio. A face formosa da antiga Diana
refletia-se no espelho vacilante das ondas encrespadas pela vibração. Ouvia-se
o chapinhar das águas batendo no costado de uma fragata imóvel; um bote de
remos passou rente do barco onde iam os nossos heróis. Os remos, sulcando a
água, erguendo-se e recaindo de novo, pareciam arrancar do seio do rio as
palhetas luminosas com que o matizava a lua, e que depois lhe devolviam numa
chuva de alvas pérolas. Um marinheiro, recostado ou antes deitado à popa, com os
olhos vagamente embebidos no firmamento, dedilhava uma guitarra, e fazia-lhe
vibrar nas cordas algumas dessas melancólicas toadas das nossas canções
populares. Muito tempo a corda fremente da guitarra enviou de longe aos ouvidos
de Frederico e de Lucinda, a sua melodia toda impregnada numa vaga tristeza, e
expirou ao longe nuns quebros de indizível suavidade. Frederico suspirou.
— Pensa nos
seus amores? perguntou Lucinda sorrindo.
— Amores,
balbuciou ele, como, se os não tenho?
— Não os
tem? Quem não tem amores aos vinte e dois anos?
— Eu que sou
um deserdado da fortuna, eu para quem a natureza, mãe benéfica de todos, sempre
se tem mostrado implacável madrasta, eu para quem as flores não tem aroma, nem
luz brilhante o sol, nem suavidade melancólica o luar.
— Oh! meu
Deus, exclamou Lucinda, quererá imitar esses Obermans da moda, que se declaram
céticos, quando ainda não tiveram nem sequer uma ilusão, quanto mais as
decepções que alardeiam?
— Não, minha
senhora, tornou Frederico, tenho muitos ridículos, mas desse livrou-me Deus.
Porém sou um destes entes malfadados, que nunca ousam levar aos lábios a taça
que se lhes apresenta cheia a trasbordar; uma dessas abelhas, a quem as rosas
mostram o cálice entre aberto, e que volteiam em torno delas, sem ousarem ir delibar
o seu mel na redoma flagrante que se lhes apresenta. Sou como Rousseau,
deitando as cerejas no avental de mademoiselle Galley, sem ousar ver os lábios
mais vermelhos do que os frutos, convidando-o e atraindo-o. E o que fez
mademoiselle Galley ao desastrado filósofo? Voltou-lhe as costas, e foi zombar
dele com as suas companheiras, deixando esse Tântalo de amor a amaldiçoar a sua
falta de audácia. Esse riso argentino, que Rousseau ouviu talvez trepado ainda
na cerejeira, ouço-o eu a cada instante nos lábios, que poderiam matar com duas
palavras meigas esta sede que me devora.
— E essas
duas palavras ainda ninguém as proferiu?
— Ninguém,
respondeu Frederico suspirando.
— E com
tudo, tornou Lucinda, conheço eu uma pessoa em cujos lábios elas fremem.
— E quem é
essa pessoa? perguntou ele ansioso.
Lucinda
estacou. Decididamente o próprio selvagem Rousseau perceberia melhor.
— Alguém,
cujo nome lhe não posso dizer.
— Oh! diga
ao menos a primeira letra. Lucinda fez-se vermelha de cólera, e mordeu os
lábios impaciente. Súbito uma ideia qualquer, travessa de certo, iluminou-lhe o
espírito, porque os lábios, que mordera para ocultar o despeito, mordeu-os
afinal para sufocar o riso. Depois respondeu com ar de misteriosa confidência:
— Diga-me;
não passa frequentes vezes pela rua de?...
— Por quê?
perguntou Frederico espantado
— E, levando
os olhos baixos até ao meio do comprimento da rua, quando chega a este ponto
não os levanta instintivamente, e não os crava numa varanda onde não há só
flores nos vasos?
— Assevero-lhe,
minha seu senhora... tornou Frederico estupefato a mais não poder ser.
— Oh! Eu sou
discreta.
—
Juro-lhe...
— Não jure,
mas prometa-me apenas uma coisa.
— Qual é?
—
Escolher-me para confidente dos seus primeiros amores.
— Mas, minha
senhora... bradou Frederico, desesperado por ver fugir-lhe o momento que tanto
ambicionara, e que julgara já tão próximo.
— Silêncio,
respondeu Lucinda pondo-lhe a mão alva e tépida no braço, não vê que estamos em
Lisboa?
Frederico
não sabia se havia de beijar ou morder essa mão travessa, que lhe aproximava da
boca a taça do filtro suave do amor, para lho furtar depois aos lábios
calcinados. Afinal não fez nem uma nem outra coisa.
Mas
efetivamente estavam em Lisboa. Nas águas negras do Tejo, aqui e ali ainda
prateadas por um raio da lua, que se insinuava por entre a intrincada floresta
dos mastros das embarcações, ondeava o reflexo trêmulo dos candeeiros do gás.
Ao choque do barco parando de súbito, acordaram estremunhados os progenitores
de Lucinda. Frederico ainda esperava ao menos poder sentir o doce peso da
gentil menina, ajudando-a a saltar em terra. Mas a volumosa mamã ofereceu-lhe o
braço, e em medos e tremores reteve-o tempo bastante, para que Lucinda, ligeira
como uma gazela, saltasse para o cais, pousando apenas ao de leve os dedos
finos e alvos no braço dum dos remeiros.
Frederico
despediu-se pouco amavelmente dos seus companheiros de viagem, e teve vontade
de mandar passear Lucinda, quando esta lhe disse ao ouvido:
— Não se
esqueça do que prometeu.
É verdade
que o pobre rapaz, voltando a cara com um gesto de amuo, não pode ver o longo
olhar, apenas levemente malicioso, com que Lucinda o seguia.
CAPÍTULO 2
Na véspera
desse dia, em que se passara a cena que narramos recebera Lucinda duma sua
amiga de colégio a seguinte carta:
Minha
querida amiga
Que saudades
eu tenho do nosso tempo de colégio! daqueles bons serões que passávamos juntas,
quando todas já estavam adormecidas, enquanto nós deixávamos divagar a nossa
imaginação por todos os assuntos, por todos os sonhos, por todas as fantasias
deste mundo! como eu tenho impressa na memória a tua palavra eloquente e
colorida, e a audácia com que tu, com a superioridade da tua inteligência,
julgavas tudo e te arrojavas aos devaneios mais longos, chegando a
assustares-me a mim, pobre criança, tímida e frágil, que não ousava seguir-te
nos teus voos, e que ficava, pálida, vendo-te pairar por esses espaços
desconhecidos, e contemplando na chama da tua pupila um reflexo do fogo íntimo,
que te devorava.
Creio que
foi mesmo essa diferença de gênio, que tornou mais forte a nossa ligação. Tu
consagraste à pobre órfã a amizade protetora das mães, eu tive por ti a
veneração e os extremos de filha. Eras o roble e eu o vime, ou antes a hera que
me enroscava a ti.
Mais velha
do que eu, saíste primeiro do colégio, e deixaste a pobre criança, isolada no
meio de companheiras com as quais sempre me ligara pouco. Ah! como o colégio
então me pareceu triste e sombrio, como a regente me pareceu insuportável, como
olhei com raiva e frenesi para os altos muros do jardim, e que ódio tive à hora
do recreio, outrora tão alegre, porque eu, fugindo às brincadeiras das meninas
mais novas, tu às frívolas conversações das da tua idade, procuravam-nos uma à
outra, e passávamos horas infinitas a contarmos as nossas impressões, e a
explicarmos o sentido dos sonhos da nossa noite...
Depois, os
meus dias de júbilo foram aqueles em que recebia as luas cartas: metia-as no
seio, e esperava com impaciência a hora de descer ao jardim para as poder ler à
vontade, longe do frívolo ruído dos jogos das educandas. Assim que ressoavam na
pêndula as bem-aventuradas vibrações, aí descia eu toda jubilosa a escada, e ia
esconder-me naquele caramanchão tão nosso favorito, que ficava junto daquela
fresta gradeada por onde às vezes espreitávamos os raros passeantes que
atravessavam a nossa rua solitária, tu achando sempre no teu espírito fértil um
epigrama para arrojares aos pobres homens que passavam sem suspeitarem a rápida
análise a que num dado instante ficavam sujeitos, eu rindo, como uma louca, das
tuas chistosas malícias.
Aí lia pois,
as tuas cartas, daí te seguia nesse mundo que me pintavas tão belo, como o
espaço imenso assusta a avezinha apenas emplumada, que lança a cabeça fora do
ninho, e que segue em parte com inveja, em parte com receio os graciosos voos
que a mãe descreve nos ares, para a convidar a segui-la. Mas a fascinação do
teu espírito vencia, como sempre, os receios do meu, e ficava com a tua carta
nas mãos, pensando nos bailes, de que tu eras rainha, nos amores, que
voltejavam em torno de ti, como as borboletas em torno da luz, e a que ti,
incorrigível coquete, te comprazias tanto em requeimar as asas.
Daí resultou
que esperei ansiosa, bem que timidamente, a minha saída do colégio, e que os
prismas das tuas cartas me fizeram sonhar um mundo cor de rosa, que está bem
longe, devo confessá-lo, da realidade tal como ela se me tem mostrado nos
quinze dias que já passei fora do ninho da nossa infância.
Efetivamente
minha tia deu a minha educação por acabada, e levou-me para a sua companhia,
muito contra vontade, segundo me parece. Não porque ela me não tenha afeto e
pelo contrário; mas minha tia, ótima senhora no fundo, tem um terrível sestro;
aos cinquenta anos quer ainda inspirar amor, e combate, com uma energia
desesperada, as asserções da sua certidão de batismo. Ora, uma sobrinha de
dezenove anos, filha duma sua irmã mais nova, é um terrível documento, que
protesta contra os cabelos dum ébano artificial, e contra a rebocada lisura do
rosto de minha tia.
Ah! que vida
vai ser a minha, se não acho jeito de diminuir a minha idade, e de usar de novo
fato curto. Minha tia, que ainda aspira dançar com suficiente ligeireza, e que
não deseja entrar no número das suplentes das contradanças, que só se convidam
quando falta algum par para fazer a quadrilha completa, não me leva aos bailes,
porque são, diz ela, perigosos para as meninas da minha idade, até contigo
mesma, perdoa-lhe, minha boa amiga, se não quer relacionar, dando para isso
razões frívolas, mas sendo o verdadeiro motivo os teus vinte e cinco anos que
não podem ficar bem à amiga de colégio duma menina tão nova como eu devo ser,
segundo os meus cálculos.
Aqui vivo,
pois, nesta da rua de... mais triste do que no colégio, depois da tua partida,
sem chegar uma única vez à janela lendo, bordando, desenhando, ou conversando
com o meu piano, enquanto minha tia, preparada, enfeitada e auxiliada por todos
os cosméticos imagináveis, passa o tempo à janela, travando cem namoros por dia,
e apresentando, da altura do seu quarto no segundo andar, a cuja varanda se
coloca de preferência, um rosto juvenil, que ilude um ou outro passeante
ocioso, que anda procurando pelas janelas quem lhe aceite as homenagens.
O que me
consola um pouco da minha vida insípida é um grande jardim, cheio de sombra e
de mistério, de flores e de aromas, onde passo as tardes, e onde muitas vezes
me esqueço e me esquecem à noite, ficando eu largas horas cismando ao luar, e
deixando-me às vezes surpreender pelos primeiros clarões da alvorada.
Aí tens a
vida que eu passo, minha querida Lucinda; não achas que tenho razão para me
lembrar com saudades do colégio? Escreve-me tu ao menos, já que minha tia se
obstina em me ter reclusa, e em não me permitir a doce consolação de te ver e
de te abraçar; escreve-me, porque só as tuas cartas me ajudarão a suportar o
fastio desta existência.
Tua boa
amiga
Adelaide.
Comparem os
leitores o que nesta carta se diz com as indicações dadas a Frederico por
Lucinda, e perceberão qual era a travessa ideia da maliciosa rapariga.
CAPÍTULO 3
Renunciemos
a descrever o despeito de Frederico, quando teve uma prova da completa
indiferença de Lucinda no desprendimento com que ela se fazia intérprete dum
outro amor. Depois folgou de ter encontrado um pretexto para desculpar consigo
mesmo a sua desastrada timidez, e louvou-se de não ter avançado a ponto de se
ver colocado numa posição ridícula com pessoa que a aproveitaria com tão boa
vontade. A todos estes sentimentos, que primeiro lhe tumultuaram no cérebro,
sucedeu o amor próprio ofendido. Pois que! dizia ele, é de mármore esta mulher?
Está junto de mim naquela noite voluptuosa, toda impregnada de lânguidas
emanações, de vagos murmúrios, de maviosíssimos fulgores, sente a minha
respiração abrasada, crava os seus olhos nos meus, aperta as minhas mãos
trementes, deixa-se embalar comigo, comigo como uma crioula na rede, pelo
movimento lascivo das ondazinhas do Tejo, e nada disso a comove, e lhe faz
perder por um instante ao menos, os seus hábitos de coquetterie? A própria
Leonora Falconieri de Feuillet sentiria uma vaga impressão amorosa naquele bote
que resvalava ao lume d'água, todo banhado de luar, abrindo no rio um sulco
fosforescente e Lucinda, depois de me ter abrasado toda a noite com o fogo infernal
das suas pupilas, acaba por me fazer friamente a confidência do amor duma das
suas amigas? Oh! coquette.
"Pois
bem, continuava ele, hei de lhe fazer a vontade, hei de namorar essa mulher
desconhecida, e será Lucinda a minha confidente? Oh! então, quando não tiver o
receio do ridículo que acomete um pretendente desastrado, então serei
audacioso, então falarei com eloquência, então, far-lhe-ei sentir bem tudo o
que ela perdeu, torturá-la-ei se não com os espinhos do ciúme, pelo menos com
os da vaidade ferida, triunfarei... e talvez conseguirei dessa forma atraí-la e
fasciná-la, como ela me fascinou a mim."
E o modesto
moço, acabando este longo monólogo, vestiu-se, alindou-se, e saiu com uns modos
conquistadores, para passar pela rua de...
Logo no
princípio da rua ele ergueu a cabeça, e principiou a revistar as janelas; o
coração pulsava-lhe com violência, mas animou-se com a ideia de que se não
veria obrigado a dizer uma só palavra, e um olhar não era coisa que muito
custasse à sua timidez rebelde.
Efetivamente
no sítio designado estava uma senhora à janela. Frederico fitou os olhos nela,
e achou-a linda, apesar da distância ou por causa dela; voltou a cabeça depois
de passar; e encontrou de novo os olhos da galante menina, que logo os desviou
o mais depressa que pode, mas sem que pudesse evitar o ter sido surpreendida em
flagrante delito. Frederico afastou-se triunfantemente.
Uns poucos
de dias se repetiu esta manobra, sem que Frederico ousasse passar dessas
demonstrações visuais, mas continuando com intrepidez o seu passeio diário.
Afinal chegou a ocasião de ir contar a Lucinda os seus novos amores. A Sra D.
Leocádia de Azevedo encontrou-o na rua, e convidou-o para jantar.
À tarde
desceram todos ao jardim, que tinha muro para a rua, e um pequeno mirante
cercado de madressilvas. Os convidados dispersaram-se em grupos, e Lucinda e
Frederico acharam-se sós no mirante.
A vista que
dali se gozava era linda; via se uma parte da cidade baixa, e do lado do
Ocidente a vista estendia-se desassombrada sobre uma porção do rio, que se
prolongava até ao extremo horizonte.
Era ao cair
da tarde; o sol atufava-se nas águas, e iluminava com um resplendor douro e
púrpura o horizonte, semeando de áureas palhetas o Tejo, rodeando com um nimbo
luminoso o vulto distante da Ajuda, e mais além uma sombra tênue, uma espécie
de vapor doirado, que, pela posição, devia ser vago perfil da torre de Belém.
A brisa
fresca da tarde, ondeando os cabelos de Lucinda, e meneando brandamente os
ramos e as folhas da madressilva, enchia os ares de perfumes. Frederico
cismava.
—
Esqueceu-se da sua promessa? perguntou Lucinda.
— Ainda se
lembra dela? tornou Frederico amargamente.
Um relâmpago
de alegria iluminou os olhos da gentil senhora.
— Se lembro,
tornou ela, sou uma credora inflexível.
— Pois bem,
respondeu Frederico, corando muito, e fazendo um esforço sobre si mesmo
deixe-me agradecer-lhe o ter feito a felicidade da minha existência.
— Sim?
tornou ela ironicamente. Então ama-a loucamente?
— Se a amo!
tornou ele cravando os olhos ardentes na formosa menina que tinha diante de si,
tanto que nem eu supunha que se podia amar assim. Oh! mas é que também é uma
criatura celestial, tão bela que os anjos a invejam.
Lucinda mal
podia sofrear o riso.
— E essa
beleza, é provavelmente como a de Marília, tornou ela, para a pintarem não
bastam as tintas da terra, são necessárias as do céu. Por conseguinte nem ouso
pedir-lhe que ma descreva.
— Por quê?
Não a conhece! perguntou Frederico espantado.
Lucinda
embaraçou-se, mas prontamente recuperou o sangue-frio.
— Somos
amigas íntimas, como sabe; contudo não desgostaria de poder apreciar o seu
talento de pintor.
Frederico
fitou os olhos nos dela, como se tentasse perscrutar o seu pensamento. Lucinda
desviou os seus.
Uma ideia,
que ele julgou louca, passou pela mente de Frederico.
— Vou
tentar, disse o tímido rapaz, com mais animação do que a que lhe era habitual,
e cravando pela primeira vez com firmeza e ardor os seus olhos no rosto de
Lucinda; e para me ser mais fácil a tarefa, permita-me que lhe narre como e
onde me senti verdadeiramente deslumbrado pela sua rara beleza, e como ousei
dizer-lhe com os meus olhos o amor imenso que me enchia a alma. Era à hora do
sol posto; ela estava com a face encostada à mão e como vossa excelência neste
momento. Nos seus olhos negros parecia flutuar a vaga tristeza do crepúsculo;
os cabelos, arfando suavemente com a brisa, enquadravam-lhe uma fronte alva e
límpida, tão límpida, que de vez em quando parecia que nessa testa inundada de
luz se via passar a vaga sombra do pensamento. Rodeava-se de flores, que
formavam ao seu doce vulto uma profunda moldura. Ao vê-la assim, melancólica
como o anjo da tarde, suave e meiga, como a anjo dos celestes amores, pensei
que a ventura suprema seria viver a seus pés, e enviando-lhe a minha alma num
olhar, votei-lhe um afeto, profundo e ardente como os seus negros olhos.
Lucinda
ouvia-o arrebatada; fora isso mesmo o que ela desejara, fora isso mesmo o que
ela tivera em vista acenando-lhe com essa miragem de amor da velha tia, amor
nada perigoso, porque, da mesma forma que a miragem, de longe podia fascinar,
mas de perto conhecia-se o areal... dos cinquenta anos.
Se Frederico
se deixasse arrastar pelo demônio da inspiração, e levantasse um pouco mais o
véu de gaze com que encobrira a sua declaração, Lucinda poderia auxiliá-lo,
confessando-lhe o seu ardil, e quebrando dessa forma o gelo. Mas infelizmente a
maliciosa rapariga, um instante docemente perturbada pela eloquência de
Frederico, pensou de súbito, quando ele findou o seu trecho, na fictícia
inspiradora desse memorável discurso, e deu aos seus lábios uma expressão de
riso reprimido, que bastou para que o espírito sensitivo de Frederico logo se
retraísse, e tremesse de ter avançado tanto.
Lucinda
percebeu o erro, e quis remediá-lo. Já era tarde. Frederico retirou-se
desgostoso. Ela, vendo-o partir, bateu o pé com despeito. A coquette ia-se
enleando nas suas próprias redes.
— É
necessário que esta comédia acabe, murmurou ela com as lágrimas nos olhos,
ainda que eu tenha de me lançar nos seus braços, como uma doida; porque sinto
agora essa comoção desconhecida, de que tanto me falavam, e de que eu tanto
zombava. Amo.
CAPÍTULO 4
Não conhecem
os leitores o caráter de Lucinda, se supuseram que ela se importasse um
instante só com o desejo que a tia de Adelaide manifestara de não se relacionar
com a amiga de colégio de sua sobrinha. Foi ela mesma que tomou a iniciativa;
apresentou-se em casa da sua antiga companheira, não pareceu reparar na frieza
da dona da casa, lisonjeou-a na sua mania de combater a velhice, declarou alto
e bom som que Adelaide era no colégio uma criancinha, de que ela fora não a
companheira, mas a protetora, a segunda mãe. Esteve quase dizendo que a sua
amiguinha entrara para o colégio ainda de mama. Estas asserções iluminaram num
momento o rosto da tia, dissiparam como por encanto a sua frieza, e deram a
Lucinda o lugar de amiga íntima. Esta, afetava sempre tratar D. Mariana com
familiaridade, fazia-lhe confidências imagináveis, e pedia-lhe igual franqueza.
A boa senhora caiu no laço, e, corando pudicamente, principiou a narrar
aventuras não menos supostas, porque os namoros que obtinha desfaziam-se sempre
à luz traidora do dia, quando o desgraçado pretendente, fazendo sentinela à
porta da casa, via a dois passos de distância os encantos que o haviam
fascinado da altura dum segundo andar.
D. Mariana
devia ter sido formosíssima; e dessa formosura extinta conservava olhos, onde
ainda se não apagara de todo o sacro fogo. Eram eles o núcleo em torno do qual
se agrupavam os feitiços artificiais.
Notava,
contudo, Lucinda, uma extraordinária tristeza em Adelaide. Preocupada e
melancólica, a loira criança, em vez de procurar a companhia da sua amiga de
colégio, evitava-a pelo contrário, e parecia estar cada vez mais afeiçoada à
solidão do seu jardim. Debalde Lucinda tentava penetrar o segredo desta preocupação.
Adelaide era impenetrável. Lucinda, devemos confessá-lo, não insistiu muito, e,
pensando unicamente no meio de deslindar a comédia, cuja teia imprudentemente
urdira, depois de cismar alguns instantes na extraordinária melancolia da sua
amiga, não fez mais esforços para penetrar o mistério.
Os seus
amores é que progrediam maravilhosamente. Frederico falava-lhe do seu amor tão
fervidamente, acompanhava as suas confidências com tão ardentes olhares, que
não se podia duvidar que, apesar de toda a sua timidez, um levíssimo impulso
bastava para quebrar os cordões da máscara, e transformar numa declaração
franca e discreta, as confissões que se trocavam enigmaticamente, por meio
dessas bem aventuradas confidências e que se comentavam e explicavam pelo fogo
das pupilas.
Contudo o
momento decisivo aproximava-se, estava já por tal forma retesada a corda do
arco, que por muito que Frederico hesitasse em despedir a flecha inflamada, ela
partiria espontaneamente, num instante de exaltação. Vinte vezes Lucinda
julgara que esse momento cobiçado era chegado enfim, vinte vezes vira Frederico
apertar-lhe a mão convulso, e mover os lábios como se fosse a proferir a
palavra que rasgaria o véu transparente, que encobria esses amores, e vinte
vezes a mão lhe descaíra gélida, e vinte vezes os lábios se tinham cerrado sem
balbuciarem um som. E contudo não era a timidez de Frederico o obstáculo;
nesses instantes estava ele nesse estado de ebriedade doida, em que se não
pensa, em que os sentidos, o espírito, a imaginação, tudo se acha exaltado a
tal ponto que o mais tímido se arroja a audácias que depois o fazem estremecer.
E como esse instante rápido, em que nas batalhas o fumo da pólvora, o troar da
artilharia, os gritos de vitória, o clangor das trombetas exaltam os próprios
covardes e os arrojam, momentaneamente intrépidos, ao centro das fileiras
inimigas. Lucinda estava também demasiadamente comovida para que pudesse gelar
esse entusiasmo fervente com um sorriso irônico, uma palavra mordaz. Mas
parecia que uma voz desconhecida, uma sombra fatal vinha murmurar ao ouvido de
Frederico algumas palavras sinistras, e, remorso ou receio, Frederico ficava
melancólico e sombrio, como os convivas de Lucrecia Bórgia, ouvindo no meio dos
seus cantos báquicos ressoarem as notas fúnebres do coro dos monges.
Lucinda não
percebia esta hesitação de nova espécie, e receando vagamente um novo perigo,
resolvera dar à comédia o seu desenlace.
Duas
palavras de Frederico decidiram-na de todo.
Um dia,
depois de terem feito mil floreados sobre o amor a propósito ou antes a
despropósito de intangível, da vaporosa Laura daquele Petrarca inconstante,
Frederico deixou pender a fronte melancólica, e murmurou:
— Pobre
criança!
Lucinda ia
desatando a rir; a frase "pobre criança" aplicada à quinquagenária tia
era dum efeito cômico, ainda realçado pelo tom sentimental do romântico
mancebo.
Mas, mesmo
tempo, Lucinda sentiu um inexprimível júbilo. Essa frase queria dizer
"Pobre vítima, que julgas ser o alvo dos meus pensamentos, e que não és
mais do que o escudo, que me serve para conquistar, com mais resguardo, o amor
da mulher a quem adoro". Assim, essas suas palavras eram uma confissão
explicita do que se passava na sua alma; encerravam em si a chave do enigma.
Porém,
Lucinda não desejava que esse sentimento de compaixão soasse indefinidamente no
peito de Frederico Nunes; julgara que apesar da distância, o seu namorado
chegasse a tomar a sério o amor de D. Mariana. A pretensiosa ia podia parecer
uma galante senhora, bem conservada nunca uma formosa rapariga. Lucinda sempre
julgara Frederico cúmplice do seu amoroso artifício. Vira que ele precisava dum
meio, por mais tênue que fosse, para falar sem receio, proporcionar-lhe a
ocasião de o obter. Se ele a aceitasse, é porque realmente a amava. Assim
sucedeu, e como, nos termos a que tinham chegado, o véu, além de ser inútil,
era também prejudicial, tratou de o dilacerar.
Para isso
dirigiu-se a D. Mariana, e disse-lhe que um mancebo elegante que nutria por dia
a mais violenta paixão, que se julgava correspondido, se podia acreditar nos
ternos olhares com que da janela o favorecera, sabendo a amizade que as ligava,
e sendo da intimidade de Lucinda, se dirigira a esta para que obtivesse da sua
amiga uma entrevista, em que lhe pudesse declarar o seu afeto e o desejo que
alimentava de o ver coroado por um feliz himeneu. D. Mariana caiu das nuvens.
Tinha distribuído os seus olhares ternos com tanta prodigalidade que não sabia
qual dos felizes mortais contemplados na distribuição, queria dar ao crepúsculo
da sua vida uma ventura raras vezes reservada para essa idade, a dum casamento
por amor.
Escusamos de
dizer que, depois da resistência pudica e indispensável, D. Mariana consentiu
na entrevista. Marcou-se dia, ou antes noite, porque D. Mariana, alegando a
maledicência das vizinhas, mas na realidade para não ter que afrontar senão a
luz mentirosa das velas, exigiu obstinadamente que fosse a essa hora.
Convencionou-se que Lucinda daria a chave do jardim ao aventuroso namorado, e
que passaria aquela noite em sua casa para entreter Adelaide, e velar assim
para que não fosse perturbada a amorosa entrevista.
Combinado
por este lado o plano estratégico, Lucinda dirigiu-se a Frederico. Disse-lhe
que a sua amiga desejava ardentemente falar-lhe, que o encarregava de lhe dizer
que era tão urgente a necessidade duma entrevista que a obrigava a por de parte
a modéstia feminina, e a dirigir-se a ele, fiando-se na sua honra de
cavalheiro. Demais uma senhora respeitável assistirá à entrevista. Concluiu
dizendo-lhe que era na seguinte noite que devia realizar-se a entrevista,
ensinando-lhe a topografia da casa e dando-lhe a chave do jardim.
Lucinda
dissera isto com voz artisticamente suspensa, como se debalde tentasse reprimir
os soluços. Estava preparando uma explosão. Podia ser esse o instante supremo.
Frederico devia talvez cair-lhe aos pés, e o susto que teria, ele o tímido
moço, de ter uma entrevista com uma mulher, apressaria o desenlace. Teria nesse
caso a coragem do medo.
Efetivamente
era esse o caminho que ia tomando as coisas. No primeiro ímpeto Frederico ia
arrojar-se aos pés de Lucinda, atirando para longe de si a chave do jardim. Mas
a reflexão sobreveio, e o estranho rapaz apanhou a chave, e passando a mão pela
testa, disse com voz firme:
— Irei. É um
dever de honra.
Lucinda
amaldiçoou os escrúpulos do seu namorado. O destino obstinava-se; a comédia
tinha de se representar até ao fim.
CAPÍTULO 5
Chegou
finalmente o dia marcado e esperado com impaciência por D. Mariana. Lucinda
andava perturbada, e tanto que nem deu por um redobramento de tristeza que se
tornava bem visível no rosto da sua amiga Adelaide, de quem ela se esquecia
tanto. Adelaide primeiro fugira a escolhê-la para confidente, porque bem
conhecia a sua índole sarcástica, e não queria expor os pobres passarinhos dos
seus sonhos a terem a asa magoada por algum epigrama de Lucinda.
Mas pouco a
pouco Adelaide sentiu-se despeitada, por ver que à sua boa amiga era tão
completamente indiferente o estado do seu espírito. Adelaide, vendo isto,
julgou-se a pessoa mais infeliz deste mundo; tinha na vida, negro o presente, o
passado, e o futuro; o presente ensombrava-lho a ciosa preocupação da sua vida,
o passado, onde ela se engolfava com júbilo quando a realidade da existência a
torturava, enegrecera também com a indiferença de Lucinda, o futuro, esse
devaneara-o ela bem dourado, e bem cheio de luz, um sonho rápido e fragrante
atravessara-lhe, e perfumara-lhe o viver... mas esvaíra-se bem ligeiro como
sonho que era, tornando apenas com a sua luz fugitiva mais espessas as trevas,
que voltaram de novo a enlutar-lhe a mocidade.
A amizade,
que votava à sua companheira de colégio, e a profunda tristeza que a salteara,
venceriam a resolução em que estava de conservar secreto tudo o que se passava
no seu espírito, e o receio que tinha dos sarcasmos de Lucinda, se a
indiferença desta não a ferisse mais do que todos os seus motejos. Mas Lucinda
andava preocupada, Lucinda nem reparava na palidez da sua amiga. Vir ela passar
um dia a sua casa, prometer ficar à noite; e não lhe dirigir durante esse tempo
todo, mais de quatro ou cinco palavras, era uma coisa que a pobre Adelaidezinha
não podia perceber, e ainda menos, a intimidade súbita que se estabelecera
entre sua tia e a sua amiga. Nesse dia andou aquela toda azafamada a
enfeitar-se, a pintar-se, a lustrar o cabelo, a dispor coquetemente a sala de
visitas; Lucinda ajudava-a neste trabalho, e trocava com ela em voz baixa
palavras misteriosas. Perguntou Adelaide, espantada de ver tantos preparativos,
se se esperava alguém nessa noite, recebeu uma resposta seca das duas senhoras
e a pobre menina, sufocada em soluços, e não podendo conter as lágrimas,
refugiou-se, levando um livro, no seu caramanchão favorito. Aí desafogou,
derramou prantos copiosos, nomeou-se, por decreto próprio, a mais infeliz de todas
as mulheres, e pensou que estava abandonada por todos, e que, órfã desde a
infância, era destino seu caminhar solitária no mundo.
Entretanto,
descia a noite, e dia não pensava em voltar para casa. Lucinda, vagamente
inquieta, não se tirava da janela. Apesar das palavras que Frederico dissera,
ao receber a chave do jardim, Lucinda conhecia bastante a sua timidez orgânica
(se assim podemos dizer) para supor que ele não ousaria nunca transpor o limiar
da porta. Embebida nesses pensamentos, esquecera-se completamente de Adelaide,
e do encargo que recebera de a entreter, enquanto durasse a entrevista. D.
Mariana, inebriada por aquela inesperada aventura, colocava as velas de modo,
que se conservasse na sala a tíbia luz, aconselhada por Garrett, a penumbra tão
útil aos amantes, e duplamente útil, a quem só dispõe desse recurso para
combater, com mais ou menos vantagem, os inconvenientes duma certidão de
batismo, que já podia entrar na classe honrosa dos documentos históricos.
Lucinda,
encostada à janela do seu quarto, cravava os olhos na escuridão, procurando
distinguir o vulto elegante de Frederico. De vez em quando ia espreitar à porta
da sala e ria-se. D. Mariana, sentada no canapé, vestida com o fato mais fresco
e juvenil, esperava majestosamente a visita daquele a quem os seus encantos
tinham rendido.
Afinal,
Lucinda viu um homem que se dirigia, envolto numa capa escura, para a porta do
jardim. As pulsações febris do seu coração indicaram-lhe, mais depressa do que
a vista que era esse o vulto de Frederico.
A noite
estava negra; mas um candeeiro de gás, iluminando em cheio a porta do jardim,
permitia a Lucinda seguir todos os movimentos de Frederico. Viu-o hesitar,
meter a chave na fechadura, tirá-la e afastar-se. Lucinda sorriu-se.
—Deita-a por
cima do muro, e foge, murmurou ela.
Mas
enganava-se: Frederico pareceu tomar uma resolução definitiva, tornou
rapidamente a meter a chave na fechadura, abriu a porta e entrou no jardim.
— Está
predestinado, murmurou Lucinda afastando-se da janela. Os seus tolos escrúpulos
obrigam-no a enterrar-se até à cintura no tremedal do ridículo. E depois quem
sabe? Talvez depois de reconhecer a quinquagenária formosura da Calipso que vai
abandonar, o punge mais os remorsos.
E Lucinda
desatou a rir. Mas a reflexão veio, e uma sombra de melancolia se lhe espalhou
no semblante.
—Esta minha
índole zombeteira, murmurou ela, há de ser sempre um obstáculo à minha
felicidade. Devo fazer penitência. O ridículo, a que expus os dois atores da
cena que se vai passar na sala, é enorme. Eu não o perdoava. Perdoá-lo-á
Frederico? Perdoa de certo, perdoa e com que júbilo, em sabendo o motivo que me
guiou! Mas não devo deixar passar uma noite sobre o seu ressentimento. Agora
mesmo, agora ando esse D. Quixote de donzelas cinquentonas estar malferido da
sua justa cortês, farei como Altisidora, ousarei pôr de parte o pudor feminino
para lhe dizer "Amo-te" e para o consolar com essa palavra só do
encantamento da nova Dulcineia.
E a travessa
rapariga, desatando a rir, desceu a escada que ia ter ao jardim.
Não havia
ainda luar como dissemos, porém, enquanto não surgia a rainha da noite no seu
carro triunfal de madrepérola, as estrelas cintilavam com vivíssima luz no céu
azul, e insinuavam os seus raios d'ouro pálido por entre a folhagem das
árvores, que a brisa meneava.
Lucinda
esteve alguns instantes cismando tristemente. A coquette lamentava talvez o
ter-se enleado, para conseguir o seu fim, nesse tão complicado enredo, que afinal
a nada remediara, porque se via obrigada a dar o primeiro passo, exatamente
como se não tivesse ideado tantas combinações maquiavélicas para obrigar esse
tímido César, que podia chegar, ver e vencer, a passar o Rubicão.
Nisto um
vulto de homem apareceu, vindo do lado da habitação, cosendo-se com os troncos
de árvores, mas fugindo ligeiramente. Devia ser Frederico.
Lucinda
avançou para ele, com o coração a pulsar-lhe violentamente.
— Frederico!
balbuciou ela.
O homem
parou.
Sou eu, sou
Lucinda, continuou a ousada menina nesse momento mais tímida do que ele, eu que
venho expiar a minha culpa, e fazer-lhe a confissão que me absolve. Sim
di-lo-ei, sem temer que me acusem de imodesta: "Amo-o".
E as suas
mãos procuravam as de Frederico. Mas coisa notável, ou mãos deste se lhe
esquivavam, ou D. Mariana, arranjando uma variante à mulher de Putifar, em vez
de lhe arrancar a capa, lhe arrancara as mãos.
Mas quando
Lucinda passava do espanto à cólera, recebeu um impulso violento que a fez ir,
cambaleando, segurar-se a um ramo de jasmineiro, e ouviu uma voz grosseira e
avinhada, que lhe dizia;
— Você, além
de ser descarada, é ladra também? Dize-me ternuras, minha Filis, mas larga os
tímidos voláteis.
Lucinda
soltou um grito terrível, e fugiu como louca na direção de casa. A esse grito
somaram-se passos precipitados, que vinham do fundo do jardim. Um outro homem
lançou-se às goelas do interlocutor de Lucinda, e uma outra voz juvenil de
senhora começou a bradar por socorro.
A este
barulho correram os criados e destrancaram-se as portas, o jardim inundou-se de
luz. D. Mariana apareceu com esplêndida toilette à porta de casa, o causador
deste tumulto fugiu por cima do muro, deixando os seus despojos nas mãos do seu
contendor, e Lucinda, que ficara ofegante à sombra de uma alta figueira que se
aferrava ao muro, pode ver, com doloroso espanto, a seguinte cena.
Frederico
vitorioso, mas vermelho de cólera e vergonha, tinha nas mãos, como troféus da
sua glória, duas galinhas. A pouca distância estava Adelaide escondendo o rosto
nas mãos. D. Mariana ficara como que petrificada, os criados riam e segredavam.
CAPÍTULO 6
Voltemos
agora ao instante em que vimos Frederico desaparecer no jardim.
Os cálculos
de Lucinda pecavam pela base. A autora deste enredo não podia acostumar-se a considerar
Adelaide, que tinha menos seis anos do que ela, como uma mulher capaz de amar e
de ser amada, não suspeitara que por baixo da varanda do segundo andar, onde
estava Mariana, havia uma janela de peitos, que nessa janela, por maior que
fosse a reclusão em que Adelaide vivesse, ia esta espairecer por alguns
instantes, que seria exatamente numa dessas ocasiões que Frederico passaria, e
que o vulto elegante e nobre deste moço não produziria menos impressão na
criança de dezenove anos, do que produzira na mulher de vinte e cinco.
Frederico
amava realmente Lucinda, e aproveitara com avidez a ocasião que se lhe oferecia
de vencer a sua timidez, e da ter com a esplêndida coquette essas longas
conversações de amor, que nunca ousaria encetar se esse pretexto se lhe não
proporcionasse. Mas a suave figura de Adelaide não deixara de lhe fazer
impressão, e a tristeza que principiava a ver na fisionomia dela, à medida que
os dias iam correndo, sem que essa troca de olhares tivesse resultados,
causara-lhe um vago remorso.
Parecia-lhe
que essa formosa menina merecia mais do que servir de pretexto à poesia, de que
era outra o objeto verdadeiro; parecia-lhe que ele cometia um crime, povoando
de sonhos d'ouro aquela juvenil imaginação, para depois só os esmagar com a
massa brutal do desdém.
Portanto
aceitara a entrevista, como se aceita o cálice de amargura, que um dever nobre
e elevado nos impõe a obrigação de bebermos. Queria falar com Adelaide,
confessar-lhe tudo, mostrar-lhe uma franqueza tal, humilhar-se tanto, que, senão
lhe pudesse amortecer a dor, lhe lisonjeasse pelo menos o amor próprio e o
impedisse de se ferir no doloroso espinho, que lhe ia fazer brotar na tenra
haste dessa namorada flor da fantasia. No mesmo dia da entrevista (era um
domingo) entrava ele numa igreja. Acabava a missa, e no templo solitário
estavam apenas duas mulheres, uma, elegante e airosa, parecia absorvida numa
prece fervente, a outra, que era uma criada velha, mostrava impaciência visível
de se retirar.
Finalmente a
devota senhora ergueu-se, e os seus olhos encontraram os olhos de Frederico,
que reconheceu com espanto a mulher, cuja imagem o perseguia como um remorso.
Estava pálida, os olhos azuis lânguidos e tristes denunciavam lágrimas enxutas
de pouco. Fitou um longo olhar em Frederico; este pálido e trêmulo curvou-se
respeitosamente levando a mão ao coração, como se uma dor súbita o ferisse, e
desviando os olhos dela, afastou-se rapidamente.
Nessa noite,
como vimos, estava ele à porta do jardim. Entrou, e, apenas dera dez passos
numa pequena alameda, encontrou um vulto feminino, que se dirigia vagarosamente
para casa. À luz do candeeiro de gás, que iluminava uma pequena porção da
alameda, os dois reconheceram-se. Adelaide recuou um passo, soltou um pequeno
grito.
— O senhor
aqui! bradou ela com voz que debalde procurava tornar firme e austera. Ah!
percebo, continuou ela como que ferida por uma ideia, e desatando a chorar,
julga talvez que sou uma dessas mulheres levianas, com as quais basta empregar
a audácia...
Não pôde
dizer mais. Os soluços sufocaram-na. Audácia! Era a primeira vez que Frederico
ouvia uma mulher dirigir-lhe semelhante acusação.
— Oh!
juro-lhe que se engana; exclamou ele caindo-lhe aos pés e não reparando até no
incompreensível espanto dessa mulher, que, segundo ele julgava, fosse a
primeira a conceder-lhe um rendez-vous, a ninguém neste mundo merece mais
respeito. Sou culpado, bem o sei, mas tudo vou resgatar corri a minha franqueza
extrema e sem limites.
Adelaide não
o ouvia; pendia-lhe desfalecida nos braços; não ousamos dizer que fosse
completamente involuntário esse desfalecimento.
Frederico,
consternado, olhou em torno de si, e viu um banco ao fundo da alameda.
Segurando com o braço na cintura de Adelaide, foi-a levando para esse lado.
Adelaide
caiu sentada no banco, e escondeu o rosto entre as mãos.
Frederico
ficou silencioso junto dela. Sentia dele uma desconhecida perturbação. Aquele
encontro inesperado, a solidão e a noite, o perfume das flores, combinado com
essas vagas e voluptuosas emanações das noites de estio, esse vulto flexível e
airoso de mulher que lhe pendera nos braços, tudo isso, sobrevindo dum modo tão
imprevisto, o inebriava e entontecia.
Vendo aquela
mulher tão linda, com o rosto banhado de lágrimas, o ânimo desfaleceu-lhe; como
havia ele de dizer a essa criatura do céu, quando estava ele mesmo sujeito ao
indizível magnetismo, à fascinação do seu olhar, como havia ele de lhe dizer:
"Iludi-a, sacrifiquei-a a uma coquette, fiz do seu vulto gracioso e
angélico, anteparo, que me resguardasse do fogo duns olhos audazes, que me
fascinavam e me queimavam?"
Impossível!
Completamente impossível!
Por isso
Frederico pôde apenas balbuciar:
—
Perdoa-me?...
Ela abaixou
para ele os olhos, em que através das lágrimas transparecia um amor imenso, e
com voz suave, tremente, doce e suavíssima, como vibração longínqua de harpa
eólia, murmurou:
—
Perdoar-lhe! Como lhe não hei de perdoar, se por este momento ansiava, se o meu
desejo era vê-lo ali onde está, e ouvir a sua voz? Oh! Meu Deus bem sei que me
vai julgar mal, bem sei que o devia repelir, que devia estranhar o seu
proceder? Que quer? Não tenho ânimo. Há tanto tempo que a ventura me foge, que
não posso fugir-lhe agora que ela me surge de súbito! Depois eu sei que é
cavalheiro, sei que me ama, li-o no seu olhar, e esse livro misterioso para nós
outras mulheres não tem segredos. Confio na sua honra, e sequiosa há tanto
desta suprema felicidade, ouso dizer-lhe: "Obrigada por ter vindo,
obrigada por ter prevenido o meu secreto desejo, obrigada por ter lido nas
minhas faces pálidas, nos meus olhos amortecidos a ansiedade que me devorava,
por ter adivinhado que morria longe de si, como a flor, a que falta o orvalho,
como a árvore a que falta o sol."
Frederico, arrastado
por esta eloquência ardente, fascinadora, auxiliada por uma indescritível
melodia de voz, pelos murmúrios dulcíssimos do jardim, sentia abrasar-se-lhe a
imaginação, e o vulto de Lucinda, que por momentos flutuava diante dele,
esvaía-se ao longe como um sonho ao romper da alvorada, e as palavras dela, que
primeiro se haviam interposto ao seu ouvido, e à voz de Adelaide, pareciam-lhe
agora tão frias e descoradas, comparando-as com essas frases veementes, que lhe
iam ferir o coração, porque do coração partiam!...
— Minha
senhora... balbuciou ele.
— Oh!
chame-me Adelaide, tornou ela, apertando-lhe as mãos com ímpeto febril, e
diga-me o seu nome para que os meus sonhos o saibam, e mo venham repetir à
noite, depois de eu adormecer balbuciando-o.
— Adelaide,
que me enlouquece, bradou o mancebo com a cabeça em fogo.
— O seu
nome, o seu nome!
— Frederico!
murmurou ele e tão próximo dela, que os lábios de Adelaide pareceram aspirar
essa palavra, assim que saiu da boca do seu amado, como se temesse que a surpreendesse
a brisa.
As árvores
meneavam as suas folhudas copas impelidas pelo sopro da viração; a luz das
estrelas tremia no céu azul, e os seus pálidos raios, coando-se por entre os
ramos, iluminavam frouxamente a alva fronte de Adelaide.
Súbito soou
um grito de mulher ansioso e dilacerante.
Frederico
levantou-se dum ímpeto, e correu para o sítio donde partia o brado; na
escuridão topou um homem que fugia, estendeu as mãos a aferrou-se-lhe ao
pescoço
O resto
sabem-no os leitores.
.......................................
D. Mariana,
que, sentada no sofá, vestida, enfeitada, e colocada na sombra, debalde
esperava a prometida visita, correu ao jardim, ouvindo o grito, e já lá
encontrou os criados.
Viu então o
ladrão das galinhas fugir por cima do muro, deixando os seus despojos no campo
de batalha, Frederico empunhando os voláteis, e junto dele Adelaide.
A tia ficou
fula de cólera, notando que sua sobrinha estava num rendez-vous, enquanto ela
esperava debalde o seu. Era possível mesmo que os dois não fizessem senão um.
— O que é
isto? bradou ela. A menina com um homem no quintal!
— Minha
senhora, disse Frederico abandonando as galinhas, confesso que fomos culpados
ocultando a vossa excelência os nossos amores, mas estamos a tempo de reparar
essa culpa, porque tenho a honra de pedir a vossa excelência a mão de sua
sobrinha.
— O lugar é
impróprio bastante, respondeu secamente D. Mariana, queira portanto sair. E a
menina recolha-se ao seu quarto e seja mais prudente.
Debalde a
pobre tia pedia explicações a Lucinda. Esta furiosa declarou-lhe que nada
percebia, e no dia seguinte retirou-se para sua casa.
Daí a quinze
dias recebia uma carta de Adelaide, a qual, como podem supor, ignorava tudo o
que se passara.
A carta
dizia o seguinte:
"Minha
boa amiga.
Caso-me
daqui a um mês. Não podes imaginar como sou feliz. Quero falar contigo muito,
muito e muito."
Lucinda
rasgou a carta, e pisou-a aos pés com lágrimas de raiva. Ao outro dia tanto
instou com seu pai, tão doente disse que estava que o resolveu, apesar da
extrema repugnância da Sra. D. Leocádia em deixar Lisboa, a irem passar o resto
do verão numa quinta que possuíam no Ribatejo.
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