Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O sábio Dr. Caruru da Fonseca
despertou naquele dia com o humor igual com que despertava em todos os outros.
Mme. Caruru ainda ficou na cama,
muito certa de que a Inácia daria o café ao seu ilustre marido. Era este uma
sumidade em matéria de psiquiatria, criminologia, medicina legal e outras
coisas divertidas.
Tinha, na nossa democracia, por
ser sumidade e doutor, direito a exercer quatro empregos.
Era lente da Escola de Medicina,
era chefe do Gabinete Médico da Polícia, era subdiretor do Manicômio Nacional e
também inspetor da Higiene Pública.
Caruru tinha mesmo publicado
várias obras, entre as quais se destacava Os
caracteres somáticos da degenerescência — livro que fora muito gabado pelo
estilo saborosamente clássico. Um crítico disse:
O milagre que, no seu livro, conseguiu o Dr. Caruru obter, foi exprimir
ideias e concepções modernas com a sã e enérgica linguagem dos quinhentistas e
mesmo dos seus antecessores. Seguiu, portanto, André Chénier, que desejava
fazer poesias modernas com versos antigos. Cito de memória. Não há como louvar
etc.
Caruru, como esperava a sua
dorminhoca mulher, foi logo servido do café pela dedicada Inácia e não tardou
que lhe viessem os jornais.
Leu o primeiro que lhe caiu sob
os olhos e quase teve um ataque quando deu com um “controlava”.
— Que gente! — disse de si para
si. — Estão a esbodegar esta maravilhosa língua.
Apanhou outro, desprezou a parte política e correu ao noticiário
policial. Deparou-se-lhe a seguinte notícia:
Ontem, ao atravessar a Avenida Central, foi acometido de um ataque o
pintor Francisco Murga, morrendo repentinamente. Murga, que era ainda moço,
pois contava pouco mais de trinta anos, estreou-se com grande brilho há uns dez
anos passados, tendo obtido o prêmio de viagem 278 e tudo fazia crer que ele
continuaria a dar-nos obras-primas, ou quase isso, como foi o seu primeiro
quadro, O banzo.279 Entretanto, tendo se entregado à mais desordenada boemia,
tal não fez, embora não deixasse sempre de produzir etc. etc.
O Dr. Caruru exultou. Que caso!
Devia ser um exemplar típico de dipsomaníaco, de degenerado superior e ele, o
doutor, como chefe do Gabinete da Polícia, ia ter o seu cadáver às ordens, para
bem verificar as suas teorias mais ou menos à Lavater ou Gall.280 A diferença
entre ele e estes dois últimos é que Caruru encontrava seguros indícios do
caráter, da inteligência etc. dos indivíduos em todas as partes do corpo.
O doutor pediu mais uma xícara de
café e não se pôde conter:
— Gertrudes! — gritou para a
mulher. — Tenho hoje um caso excelente. A mulher apareceu em trajes matinais e
ele narrou toda a sua alegria. Caruru vestiu-se e correu à faculdade. Aos
primeiros estudantes que lá apareceram, Caruru os convidou para irem ao
necrotério verificar a certeza das asserções que fazia no seu célebre livro, escrito
no estilo de Rui de Pina e, por pouco, que não o era no da Notícia de partiçam.
Foram estudantes de medicina, de
farmácia, de dentista e até uma dama que estudava para parteira.
Chegado que foi ao necrotério, o Dr.
Caruru armou-se de uma bateria de compassos graduados, de uma porção de réguas,
de todo um arsenal de instrumentos de antropométrica e começou a preleção
diante do cadáver:
— Meus senhores. Estamos
certamente diante de um caso típico de degenerado...
A sua linguagem falada era
diferente da escrita. Ele escrevia clássico ou pré-clássico, mas falava como
qualquer um de nós.
— O indivíduo que está aqui,
bêbedo incorrigível, vagabundo, incapaz de afeições, de dedicações, vai demonstrar
com as injeções que lhe vou fazer, a verdade das minhas teorias. Vejamos os
pés...
Caruru armou-se de uma das tais
réguas, enquanto um servente chorava. Aplicou-a aos pés do defunto e, pouco
depois, exclamou triunfante:
— Vejam só! O pé direito mede
quase mais um centímetro que o esquerdo. Não é o que eu dizia? É um degenerado!
Essa assimetria dos pés...
O servente que chorava
interrompeu-o:
— Vossa excelência só por causa
dos pés do senhor Murga não pode dizer isto. Ele não nasceu assim.
— Como foi então?
— Fui seu amigo e devo-lhe muitos
favores. Eu conto a Vossa Excelência...
“Seu” Murga teve um tumor no pé
direito e foi obrigado a andar com chinelo num pé, durante cerca de dois meses,
enquanto o esquerdo estava calçado. Naturalmente aquele aumentou enquanto o
outro ficava parado. Foi por isso.
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