As borboletas
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
A lenda das borboletas.
---
A lenda das borboletas.
São tão lindas, as borboletas! Quem as vê, que não lhes queira? aí
vagabundando pelo azul dos campos, rasando as corolas frescas, amando-se,
beijando-se, libertas da larva abjeta, como almas de amantes despidas da
miséria terreal, a viajarem no infinito... São tão lindas, as borboletas!...
Mas na China são talvez mais lindas do que todas. É um deslumbramento
surpreendê-las na quietação dos bosques, voejando aos pares, que se tocam, que
se abraçam, e enfiando pelas sombras misteriosas dos bambuais, com as suas
longas asas palpitantes, lanceoladas, em matizes maravilhosos, de negros
aveludados, de azuis meigos, de amarelos quentes, como se as loucas vestissem
cabaias de cetim, de sedas de alto preço...
Choc-In-Toi, a deliciosa Choc-In-Toi, habitava, há longos séculos, uma
pacífica aldeia do Yang-tsze-kiang, não longe do lugar que hoje se diz Xangai.
Como fosse muito dada a estudos literários e as escolas do seu sexo não lhe
satisfizessem a ambição, conseguiu que seus pais lhe permitissem o disfarçar-se
em homem, e assim abalou, a ir frequentar a mais famosa universidade do
império. Volveu ao lar após três anos; volveu tão pura como fora; da sua
inocência há provas irrecusáveis. Para não divagar muito nestas páginas, basta
dizer a quem me queira ouvir, que um lenço de seda branca, que ela enterrara na
lama em presença duma sua cunhada predisposta a vaticinar-lhe rudes lances, foi
depois tirado sem uma só mancha e sem um só farpão, branco, puro, como a alma
da donzela; e basta saber que as flores da sua preferência, que ela deixara no
jardim, rogando aos deuses que as conservassem frescas como ela, assim se
conservaram durante a longa ausência, embora, como consta, a cunhada as fosse
regando com água quente tirada da chaleira.
Durante os três anos de seu estudo, um companheiro, por nome
Leun-San-Pac, intimamente se lhe afeiçoou. Era o seu camarada inseparável, o
seu irmão; dormindo juntos, conversando juntos, estudando juntos, divagando, sonhando;
e o lorpa do mocinho nunca se apercebeu que tinha a seu lado uma mulher.
Quando soou a hora das despedidas, cortava o coração ver o rapaz,
lamentando o futuro isolamento, a perda dum amigo como aquele. A moça
consolava-o. A moça pousava-lhe nos ombros as suas mãos gentis, e exortava-o a
que se enchesse de coragem, a que se entregasse ao amor do estudo, até alcançar
um alto grau de sapiência. — “E depois, dizia-lhe ela entre soluços, e depois,
se com saudade te recordares ainda de mim, abala, vem ver-me à minha aldeia.” —
E dava-lhe indicações precisas do lugar. Despediram-se, entre choros.
A donzela esperou, esperou, esperou, — quem poderá descrever esse
tormento? guardando da família o seu segredo; e o moço não aparecia. Segundo os
usos do país, os pais destinaram-lhe um marido; e ela, a desolada, escrava da
obediência filial, obediência cega, indiscutível, que é a base da vida inteira
moral do povo china, inclinou-se, aceitou, sem que uma só queixa proferisse.
Três dias decorridos depois do contrato nupcial, eis que chega à aldeia
o pobre Leun-San-Pac; pobre, porque a desventura se lhe acerca; mas rico de
erudição, de uma alma culta, e ocupando um lugar proeminente. Encontra o seu
amigo, encontra o seu irmão; mas agora sem disfarces, na graça plena dos seus
enlevos femininos, na gentil elegância das vestes que lhe são próprias, e com
grinaldas de flores na trança negra. De começo, este enigma, pouco a pouco
explicado, confunde-o, desnorteia-o; mas tudo se aclara; da amizade ao amor o
salto é rápido. Oh! ele ama-a agora, ele ama-a de todas as forças do seu ser; e
no olhar de fogo transluzem mil mistérios de adorações e de desejos!... É
tarde. A palavra dada ao feliz noivo não se quebra. Os velhos pais prezam mais
do que tudo, a própria honra.
Ele parte; ele parte para um lugar vizinho, louco, com a alma embebida
no fel dos desesperos. É ainda ela, a doce pomba obediente, que tenta
consolá-lo. Ela escreve-lhe; ela diz-lhe que a vida não é eterna; que a piedade
filial arrasta-a a um consórcio que só lhe vaticina dores e prantos; mas que as
almas são livres, emigram duns corpos para outros; encarnam-se noutros seres;
que ele sossegue, aguarde outra existência, para a qual ela lhe jura será a sua
companheira, toda fidelidade e toda amor. Leun-San-Pac lê, faz um bolo dessa
carta, onde tão demoradamente pousara a mão da sua bela, e engole-o, e
sufoca-se com ele, e exala assim na solidão o último suspiro. Um pouco além,
sobre a montanha, se lhe elevou a sepultura.
Soam bátegas festivas, estalejam nos ares fogos de gala, de alegria; e
pela longa estrada em zigue-zague, bordada aqui e ali de bambus e bananeiras,
doirada pelo sol do meio-dia, serpeia em rutilantes teorias o monumental
cortejo do noivado, caminho do lar feliz.
O estilo de há mil anos é o mesmo estilo de hoje. São os grandes balões,
os estandartes, conduzidos por moços vestidos de vermelho. São os enxovais
primorosos, as cabaias, a coleção dos sapatinhos, tudo disposto nas liteiras
luzentes dos esmaltes. São as colossais peças de doçaria, castelos de açúcar,
dragões de açúcar, coisas espantosas. São os porcos assados, louros,
deliciosos, espalmados sobre os tabuleiros, com laços de fita nos focinhos. São
as orquestras estridentes, de flautas, de rebecas. São as crianças ataviadas em
cetins, em alegorias de cenas de outros tempos, cavalgando alimárias
pachorrentas. É finalmente a liteira da noiva, toda ela ouros, toda ela
esmaltes, fechada como um cofre, furtando à vista dos curiosos o precioso
fardo, Choc-In-Toi.
A noiva solicita do cortejo um curto desvio na sua marcha. A noiva,
antes de entrar no lar e de ser esposa e escrava, quer abeirar-se, além,
daquela sepultura esquecida na montanha, e orar junto dos restos do que morreu
por ela. Quem lhe recusaria tal licença? Ei-la que desce da liteira, nas suas
cabaias deslumbrantes; e ei-la que se prostra, ei-la que beija a terra...
A terra abre-se então, carinhosa, mãe; a terra traga-a, chama-a a si,
chama-a para junto dos ossos do seu querido. A comitiva pasma do milagre. As
mãos avançam a detê-la; mas só logram colher um pedaço do vestido, que se
rasga, e é tudo... O pedaço de seda, de mil matizes, transforma-se de súbito
numa borboleta de mil cores, que voa das mãos rudes, e desaparece no azul,
desaparece!... É desde aquela época que há borboletas neste mundo, tão lindas,
tão cheias de matizes!...
Eu não lhes estou contando uma mentira, meus amigos. Ainda hoje se vê a
sepultura, esboroada pelos séculos, daqueles amorosos. E as esposas desprezadas
além vão em romaria, e daquela terra bendita se suprem às mãos cheias, e dela
provam, e disfarçada com o arroz a ministram aos maridos. Consta que o estranho
tempero, aquela terra, que em alguma coisa participa da essência dos amantes
que ali jazem para sempre, tem virtude consigo, e é sempre eficaz em trazer ao
bom caminho os mariolas, os maridos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...