As Bodas de Luís Duarte
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
Na manhã de um sábado, 25 de abril, andava
tudo em alvoroço em casa de José Lemos. Preparava-se o aparelho de jantar dos
dias de festa, lavavam-se as escadas e os corredores, enchiam-se os leitões e
os perus para serem assados no forno da padaria defronte; tudo era movimento;
alguma coisa grande ia acontecer nesse dia.
O arranjo da sala ficou a cargo de José
Lemos. O respeitável dono da casa, trepado num banco, tratava de pregar à
parede duas gravuras compradas na véspera em casa do Bernasconi; uma
representava a Morte de Sardanapalo;
outra a Execução de Maria Stuart. Houve
alguma luta entre ele e a mulher a respeito da colocação da primeira gravura.
D. Beatriz achou que era indecente um grupo de homem abraçado com tantas
mulheres. Além disso, não lhe pareciam próprios dois quadros fúnebres em dia de
festa. José Lemos que tinha sido membro de uma sociedade literária, quando era
rapaz, respondeu triunfantemente que os dois quadros eram históricos, e que a
história está bem em todas as famílias. Podia acrescentar que nem todas as
famílias estão bem na história; mas este trocadilho era mais lúgubre que os
quadros.
D. Beatriz, com as chaves na mão, mas sem a melena desgrenhada do soneto do
Tolentino, andava literalmente da sala para a cozinha, dando ordens, apressando
as escravas, tirando toalhas e guardanapos lavados e mandando fazer compras, em
suma, ocupada nas mil coisas que estão a cargo de uma dona de casa, máxime num
dia de tanta magnitude.
De quando em quando, chegava Dona Beatriz à
escada que ia ter ao segundo andar, e gritava:
— Meninas, venham almoçar!
Mas parece que as meninas não tinham pressa,
porque só depois das nove horas acudiram ao oitavo chamado da mãe, já disposta
a subir ao quarto das pequenas, o que era verdadeiro sacrifício da parte de uma
senhora tão gorda.
Eram duas moreninhas de truz as filhas do casal
Lemos. Uma representava ter vinte anos, outra dezessete; ambas eram altas e um
tanto refeitas. A mais velha estava um pouco pálida; a outra, coradinha e
alegre, desceu cantando não sei que romance do Alcazar, então em moda. Parecia
que das duas a mais feliz seria a que cantava; não era; a mais feliz era a
outra que nesse dia devia ligar-se pelos laços matrimoniais ao jovem Luís
Duarte, com quem nutria longo e porfiado namoro. Estava pálida por ter tido uma
insônia terrível, doença de que até então não padecera nunca. Há doenças assim.
Desceram as duas pequenas, tomaram a bênção à
mãe, que lhes fez um rápido discurso de repreensão e foram à sala para falar ao
pai. José Lemos, que pela sétima vez trocava a posição dos quadros, consultou
as filhas sobre se era melhor que a Stuart ficasse do lado do sofá ou do lado
oposto. As meninas disseram que era melhor deixá-la onde estava, e esta opinião
pôs termo às dúvidas de José Lemos que deu por concluída a tarefa e foi
almoçar.
Além de José Lemos, sua mulher Dona Beatriz,
Carlota (a noiva) e Luísa, estavam à mesa Rodrigo Lemos e o menino Antonico,
filhos também do casal Lemos. Rodrigo tinha dezoito anos e Antonico seis: o Antonico
era a miniatura do Rodrigo; distinguiam-se ambos por uma notável preguiça, e
nisso eram perfeitamente irmãos. Rodrigo desde as oito horas da manhã gastou o
tempo em duas coisas: ler os anúncios do Jornal
e ir à cozinha saber em que altura estava o almoço. Quanto ao Antonico, tinha
comido às seis horas um bom prato de mingau, na forma do costume, e só se
ocupou em dormir tranquilamente até que a mucama o foi chamar.
O almoço correu sem novidade. José Lemos era
homem que comia calado; Rodrigo contou o enredo da comédia que vira na noite
antecedente no Ginásio; e não se falou em outra coisa durante o almoço. Quando
este acabou, Rodrigo levantou-se para ir fumar; e José Lemos encostando os
braços na mesa perguntou se o tempo ameaçava chuva. Efetivamente o céu estava
sombrio, e a Tijuca não apresentava bom aspecto.
Quando o Antonico ia levantar-se, impetrada a
licença, ouviu da mãe este aviso:
— Olha lá, Antonico, não faças logo ao jantar
o que fazes sempre que há gente de fora.
— O que é que ele faz? perguntou José Lemos.
— Fica envergonhado e mete o dedo no nariz.
Só os meninos tolos é que fazem isto: eu não quero semelhante coisa.
O Antonico ficou envergonhado com a
reprimenda e foi para a sala lavado em lágrimas. D. Beatriz correu logo atrás
para acalentar o seu Benjamim, e todos os mais se levantaram da mesa.
José Lemos indagou da mulher se não faltava
nenhum convite, e depois de certificar-se que estavam convidados todos os que
deviam assistir à festa, foi vestir-se para sair. Imediatamente foi incumbido
de várias coisas: recomendar ao cabeleireiro que viesse cedo, comprar luvas para
a mulher e as filhas, avisar de novo os carros, encomendar os sorvetes e os
vinhos, e outras coisas mais em que poderia ser ajudado pelo jovem Rodrigo, se
este homônimo do Cid não tivesse ido dormir para descansar o almoço.
Apenas José Lemos pôs a sola dos sapatos em
contato com as pedras da rua, D. Beatriz disse a sua filha Carlota que a
acompanhasse à sala, e apenas ali chegaram ambas, proferiu a boa senhora o
seguinte speech:
— Minha filha, hoje termina a tua vida de
solteira, e amanhã começa a tua vida de casada. Eu, que já passei pela mesma
transformação, sei praticamente que o caráter de uma senhora casada traz
consigo responsabilidades gravíssimas. Bom é que cada qual aprenda à sua custa;
mas eu sigo nisto o exemplo de tua avó, que na véspera da minha união com teu
pai, expôs em linguagem clara e simples a significação do casamento e a alta
responsabilidade dessa nova posição...
D. Beatriz estacou; Carlota que atribuiu o
silêncio da mãe ao desejo de obter uma resposta, não achou melhor palavra do que
um beijo amorosamente filial.
Entretanto, se a noiva de Luís Duarte tivesse
espiado três dias antes pela fechadura do gabinete de seu pai, adivinharia que
D. Beatriz recitava um discurso composto por José Lemos, e que o silêncio era
simplesmente um eclipse de memória.
Melhor fora que D. Beatriz, como as outras
mães, tirasse alguns conselhos do seu coração e da sua experiência. O amor
materno é a melhor retórica deste mundo. Mas o Sr. José Lemos, que conservara
desde a juventude um sestro literário, achou que fazia mal expondo a
cara-metade a alguns erros gramaticais numa ocasião tão solene.
Continuou D. Beatriz o seu discurso, que não
foi longo, e terminou perguntando se realmente Carlota amava o noivo, e se
aquele casamento não era, como podia acontecer, um resultado de despeito. A
moça respondeu que amava o noivo tanto como a seus pais. A mãe acabou beijando
a filha com ternura, não estudada na prosa de José Lemos. Pelas duas horas da
tarde voltou este, suando em bica, mas satisfeito de si, porque além de ter
dado conta de todas as incumbências da mulher, relativas aos carros,
cabeleireiro etc., conseguiu que o Tenente Porfírio fosse lá jantar, coisa que
até então estava duvidosa.
O Tenente Porfírio era o tipo do orador de
sobremesa; possuía o entono, a facilidade, a graça, todas as condições
necessárias a esse mister. A posse de tão belos talentos proporcionava ao
Tenente Porfírio alguns lucros de valor; raro domingo ou dia de festa jantava
em casa. Convidava-se o tenente Porfírio com a condição tácita de fazer um
discurso, como se convida um músico para tocar alguma coisa. O Tenente Porfírio
estava entre o creme e o café; e não se cuide que era acepipe gratuito; o bom
homem, se bem falava, melhor comia. De maneira que, bem pesadas as coisas, o
discurso valia o jantar.
Foi grande assunto de debate nos três dias
anteriores ao dia das bodas, se o jantar devia preceder a cerimônia ou
vice-versa. O pai da noiva inclinava-se a que o casamento fosse celebrado
depois do jantar, e nisto era apoiado pelo jovem Rodrigo, que com uma
sagacidade digna de estadista, percebeu que, no caso contrário, o jantar seria
muito tarde. Prevaleceu entretanto a opinião de D. Beatriz que achou esquisito
ir para a igreja com a barriga cheia. Nenhuma razão teológica ou disciplinar se
opunha a isso, mas a esposa de José Lemos tinha opiniões especiais em assunto
de igreja.
Venceu a sua opinião.
Pelas quatro horas começaram a chegar
convidados.
Os primeiros foram os Vilelas, família
composta de Justiniano Vilela, chefe de seção aposentado, D. Margarida, sua
esposa, e D. Augusta, sobrinha de ambos.
A cabeça de Justiniano Vilela, — se se pode
chamar cabeça a uma jaca metida numa gravata de cinco voltas, — era um exemplo
da prodigalidadeda natureza quando quer fazer cabeças grandes. Afirmavam,
porém, algumas pessoas que o talento não correspondia ao tamanho, posto que
tivesse corrido algum tempo o boato contrário. Não sei de que talentofalavam
essas pessoas; e a palavra pode ter várias aplicações. O certo é que um talento
teve Justiniano Vilela, foi a escolha da mulher, senhora que, apesar dos seus
quarenta e seis anos bem puxados, ainda merecia, no entender de José Lemos, dez
minutos de atenção.
Trajava Justiniano Vilela como é de uso em
tais reuniões; e a única coisa verdadeiramente digna de nota eram os seus
sapatos ingleses de apertar no peito do pé por meio de cordões. Ora, como o
marido de D. Margarida, tinha horror às calças compridas, aconteceu que apenas
se sentou deixou patente a alvura de um fino e imaculado par de meias.
Além do ordenado com que foi aposentado,
tinha Justiniano Vilela uma casa e dois molecotes, e com isso ia vivendo menos
mal. Não gostava de política; mas tinha opiniões assentadas a respeito dos
negócios públicos. Jogava o solo e o gamão todos os dias, alternadamente;
gabava as coisas do seu tempo; e tomava rapé com o dedo polegar e o dedo médio.
Outros convidados foram chegando, mas em
pequena quantidade, porque à cerimônia e ao jantar só devia assistir um pequeno
número de pessoas íntimas.
Às quatro horas e meia chegou o padrinho, Dr.
Valença, e a madrinha, sua irmã viúva D. Virgínia. José Lemos correu a abraçar
o Dr. Valença; mas este que era homem formalista e cerimonioso, repeliu
brandamente o amigo, dizendo-lhe ao ouvido que naquele dia toda a gravidade era
pouca. Depois, com uma serenidade que só ele possuía, entrou o Dr. Valença e
foi cumprimentar a dona da casa e as outras senhoras.
Era ele homem de seus cinquenta anos, nem
gordo nem magro, mas dotado de um largo peito e um largo abdômen que lhe davam
maior gravidade ao rosto e às maneiras. O abdome é a expressão mais positiva da
gravidade humana; um homem magro tem necessariamente os movimentos rápidos; ao
passo que para ser completamente grave precisa ter os movimentos tardos e
medidos. Um homem verdadeiramente grave não pode gastar menos de dois minutos
em tirar o lenço e assoar-se. O Dr. Valença gastava três quando estava com
defluxo e quatro no estado normal. Era um homem gravíssimo.
Insisto neste ponto porque é a maior prova da
inteligência do Dr. Valença. Compreendeu este advogado, logo que saiu da
academia, que a primeira condição para merecer a consideração dos outros era
ser grave; e indagando o que era gravidade pareceu-lhe que não era nem o peso
da reflexão, nem a seriedade do espírito, mas unicamente certo mistério do
corpo, como lhe chama La Rochefoucauld; o qual mistério, acrescentará o leitor,
é como a bandeira dos neutros em tempo de guerra: salva do exame a carga que
cobre.
Podia-se dar uma boa gratificação a quem
descobrisse uma ruga na casaca do Dr. Valença. O colete tinha apenas três
botões e abria-se até ao pescoço em forma de coração. Um elegante claque
completava a toilette do Dr. Valença.
Não era ele bonito de feições no sentido afeminado que alguns dão à beleza
masculina; mas não deixava de ter certa correção nas linhas do rosto, o qual se
cobria de um véu de serenidade que lhe ficava a matar.
Depois da entrada dos padrinhos, José Lemos
perguntou pelo noivo, e o Dr. Valença respondeu que não sabia dele. Eram já
cinco horas. Os convidados, que cuidavam ter chegado tarde para a cerimônia,
ficaram desagradavelmente surpreendidos com a demora, e Justiniano Vilela
confessou ao ouvido da mulher que estava arrependido de não ter comido alguma
coisa antes. Era justamente o que estava fazendo o jovem Rodrigo Lemos, desde
que percebeu que o jantar viria lá para as sete horas.
A irmã do Dr. Valença de quem não falei
detidamente por ser uma das figuras insignificantes que jamais produziu a raça
de Eva, apenas entrou manifestou logo o desejo de ir ver a noiva, e D. Beatriz
saiu com ela a sala, deixando plena liberdade ao marido que encetava uma
conversação com a interessante esposa do Sr. Vilela.
— Os noivos de hoje não se apressam, disse
filosoficamente Justiniano; quando eu me casei fui o primeiro que apareceu em
casa da noiva.
A esta observação, toda filha do estômago
implacável do ex-chefe de seção, o Dr. Valença respondeu dizendo:
— Compreendo a demora e a comoção de aparecer
diante da noiva.
Todos sorriram ouvindo esta defesa do noivo
ausente e a conversa tomou certa animação.
Justamente, no momento em que Vilela discutia
com o Dr. Valença as vantagens do tempo antigo sobre o tempo atual, e as moças
conversavam entre si do último corte dos vestidos, entrou na sala a noiva,
escoltada pela mãe e pela madrinha, vindo logo na retaguarda a interessante
Luísa, acompanhada do jovem Antonico.
Eu não seria narrador exato nem de bom gosto
se não dissesse que houve na sala um murmúrio de admiração.
Carlota estava efetivamente deslumbrante com
o seu vestido branco, e a sua grinalda de flores de laranjeira, e o seu
finíssimo véu, sem outra joia mais que os seus olhos negros, verdadeiros
diamantes da melhor água.
José Lemos interrompeu a conversa em que
estava com a esposa de Justiniano, e contemplou a filha. Foi a noiva
apresentada aos convidados, e conduzida para o sofá, onde se sentou entre a
madrinha e o padrinho. Este, pondo o claque em pé sobre a perna, e sobre o
claque a mão apertada numa luva de três mil e quinhentos, disse à afilhada palavras
de louvor que a moça ouviu corando e sorrindo, aliança amável de vaidade e
modéstia.
Ouviram-se passos na escada, e já o Sr. José
Lemos esperava ver entrar o futuro genro, quando assomou à porta o grupo dos
irmãos Valadares.
Destes dois irmãos, o mais velho, que se
chamava Calisto, era um homem amarelo, nariz aquilino, cabelos castanhos e
olhos redondos. Chamava-se o mais moço Eduardo, e só diferençava do irmão na
cor, que era vermelha. Eram ambos empregados numa Companhia, e estavam na flor
dos quarenta para cima. Outra diferença havia: era que Eduardo cultivava a
poesia quando as cifras lho permitiam, ao passo que o irmão era inimigo de tudo
o que cheirava a literatura.
Passava o tempo, e nem o noivo, nem o tenente
Porfírio davam sinais de si. O noivo era essencial para o casamento, e o
tenente para o jantar. Eram cinco e meia quando apareceu finalmente Luís
Duarte. Houve um Gloria in excelsis Deo
no interior de todos os convidados.
Luís Duarte apareceu à porta da sala, e daí
mesmo fez uma cortesia geral, cheia de graça e tão cerimoniosa que o padrinho
lha invejou. Era um rapaz de vinte e cinco anos, tez mui alva, bigode louro e
sem barba nenhuma. Trazia o cabelo apartado no centro da cabeça. Os lábios eram
tão rubros que um dos Valadares disse ao ouvido do outro: parece que os tingiu.
Em suma, Luís Duarte era uma figura capaz de agradar a uma moça de vinte anos,
e eu não teria grande repugnância em chamar-lhe um Adônis, se ele realmente o
fosse. Mas não era. Dada a hora, saíram os noivos, os pais e os padrinhos, e
foram à igreja, que ficava perto; os outros convidados ficaram em casa, fazendo
as honras dela a menina Luísa e o jovem Rodrigo, a quem o pai foi chamar, e que
apareceu logo trajado no rigor da moda.
— É um par de pombos, disse a Sra. D. Margarida
Vilela, apenas saiu a
comitiva.
— É verdade! disseram em coro os dois irmãos
Valadares e Justiniano Vilela.
A menina Luísa, que era alegre por natureza,
alegrou a situação, conversando com as outras moças, uma das quais, a convite
seu, foi tocar alguma coisa ao piano. Calisto Valadares suspeitava que houvesse
uma omissão nas Escrituras, e vinha a ser que entre as pragas do Egito devia
ter figurado o piano. Imagine o leitor com que cara viu ele sair uma das moças
do seu lugar e dirigir-se ao fatal instrumento. Soltou um longo suspiro e
começou a contemplar as duas gravuras compradas na véspera.
— Que magnífico é isto! exclamou ele diante
do Sardanapalo, quadro que ele achava
detestável.
— Foi papai quem escolheu, disse Rodrigo, e
foi essa a primeira palavra que pronunciou desde que entrou na sala.
— Pois, senhor, tem bom gosto, continuou
Calisto; não sei se conhecem o assunto do quadro...
— O assunto é Sardanapalo, disse afoitamente Rodrigo.
— Bem sei, retrucou Calisto, estimando que a
conversa pegasse; mas eu pergunto se...
Não pôde acabar; soaram os primeiros
compassos.
Eduardo, que na sua qualidade de poeta devia
amar a música, aproximou-se do piano e inclinou-se sobre ele na posição
melancólica de um homem que conversa com as musas. Quanto ao irmão, não tendo
podido evitar a cascata de notas, foi sentar-se ao pé de Vilela, com quem
travou conversa, começando por perguntar que horas eram no relógio dele. Era
tocar na tecla mais preciosa do ex-chefe de seção.
— É já tarde, disse este com voz fraca; olhe,
seis horas.
— Não podem tardar muito.
— Eu sei! A cerimônia é longa, e talvez não
achem o padre... Os casamentos deviam fazer-se em casa e de noite.
— É a minha opinião.
A moça terminou o que estava tocando; Calisto
suspirou. Eduardo, que estava encostado ao piano, cumprimentou a executante com
entusiasmo.
— Por que não toca mais alguma coisa? disse
ele.
— É verdade, Mariquinhas, toca alguma coisa
da Sonâmbula, disse Luísa obrigando a
amiga a sentar-se.
— Sim! a Son...
Eduardo não pôde acabar; viu em frente os
dois olhos repreensivos do irmão e fez uma careta. Interromper uma frase e
fazer uma careta podia ser indício de um calo. Todos assim pensaram, exceto
Vilela, que, julgando os outros por si, ficou convencido de que algum grito agudo
do estômago tinha interrompido a voz de Eduardo. E, como acontece às vezes, a
dor alheia despertou a própria, de maneira que o estômago de Vilela formulou um
verdadeiro ultimatum ao qual o homem
cedeu, aproveitando a intimidade que tinha na casa e indo ao interior sob
pretexto de dar exercício às pernas.
Foi uma felicidade.
A mesa, que já tinha em cima de si alguns
acepipes convidativos, apareceu como uma verdadeira fonte de Moisés aos olhos
do ex-chefe de seção. Dois pastelinhos e uma croquette foram os parlamentares que Vilela mandou ao estômago
rebelado e com os quais aquela víscera se conformou.
No entanto D. Mariquinhas fazia maravilhas ao
piano; Eduardo encostado à janela parecia meditar um suicídio, ao passo que o
irmão brincando com a corrente do relógio ouvia umas confidências de D.
Margarida a respeito do mau serviço dos escravos. Quanto a Rodrigo, passeava de
um lado para outro, dizendo de vez em quando em voz alta:
— Já tardam!
Eram seis horas e um quarto; nada de carros;
algumas pessoas já estavam impacientes. Às seis e vinte minutos ouviu-se um
rumor de rodas; Rodrigo correu à janela: era um tílburi. Às seis e vinte e
cinco minutos todos supuseram ouvir o rumor dos carros.
— É agora, exclamou uma voz.
Não era nada. Pareceu-lhes ouvir por um
efeito (desculpem a audácia com que eu caso este substantivo a este adjetivo)
por um efeito de miragem auricular.
Às seis horas e trinta e oito minutos
apareceram os carros. Grande alvoroço na sala, as senhoras correram às janelas.
Os homens olharam uns para os outros como conjurados que medem as suas forças
para uma grande empresa. Toda a comitiva entrou. As escravas da casa, que
espreitavam do corredor a entrada dos noivos, causaram uma verdadeira surpresa
à sinhá moça deitando-lhe sobre a cabeça um dilúvio de folhas de rosa.
Cumprimentos e beijos, houve tudo quanto se faz em tais ocasiões.
O Sr. José Lemos estava contentíssimo, mas
caiu-lhe água na fervura quando soube que o Tenente Porfírio não tinha chegado.
— É preciso mandá-lo chamar.
— A esta hora! murmurou Calisto Valadares.
— Sem o Porfírio não há festa completa, disse
o Sr. José Lemos confidencialmente ao Dr. Valença.
— Papai, disse Rodrigo, eu creio que ele não
vem.
— É impossível!
— São quase sete horas.
— E o jantar já nos espera, acrescentou D.
Beatriz.
O voto de D. Beatriz pesava muito no ânimo de
José Lemos; por isso não insistiu. Não houve remédio senão sacrificar o
tenente.
Mas o tenente era o homem das situações
difíceis, o salvador dos lances arriscados. Mal acabava D. Beatriz de falar, e
José Lemos de assentir mentalmente à opinião da mulher, ouviu-se na escada a
voz do Tenente Porfírio. O dono da casa soltou um suspiro de alívio e
satisfação. Entrou na sala o longamente esperado conviva.
Pertencia o tenente a essa classe feliz de
homens que não têm idade; uns lhe davam 30 anos, outros 35 e outros 40; alguns
chegavam até os 45, e tanto esses como os outros podiam ter igualmente razão. A
todas as hipóteses se prestavam a cara e as suíças castanhas do tenente. Era
ele magro e de estatura meã; vestia com certa graça, e, comparado com um boneco
não havia grande diferença. A única coisa que destoava um pouco era o modo de
pisar; o Tenente Porfírio pisava para fora a tal ponto, que da ponta do pé
esquerdo à ponta do pé direito, quase se podia traçar uma linha reta. Mas como
tudo tem compensação, usava ele sapatos rasos de verniz, mostrando um fino par
de meias de fio-de-escócia mais lisas que a superfície de uma bola de bilhar.
Entrou com a graça que lhe era peculiar. Para
cumprimentar os noivos arredondou o braço direito, pôs a mão atrás das costas
segurando o chapéu, e curvou profundamente o busto, ficando em posição que
fazia lembrar (de longe!) os antigos lampiões das nossas ruas.
Porfírio tinha sido tenente do exército, e dera
baixa, com o que andou perfeitamente, porque entrou no comércio de trastes e já
possuía algum pecúlio. Não era bonito, mas algumas senhoras afirmavam que
apesar disso era mais perigoso que uma lata de nitroglicerina. Naturalmente não
devia essa qualidade à graça da linguagem, pois falava sibilando muito a letra
s; dizia sempre: Asss minhasss botasss...
Quando Porfírio acabou os cumprimentos,
disse-lhe o dono da casa:
— Já sei que hoje temos coisa boa!
— Qual! respondeu ele com uma modéstia
exemplar; quem ousará levantar a voz diante de ilustrações?
Porfírio disse estas palavras pondo os quatro
dedos da mão esquerda no bolso do colete, gesto que ele praticava por não saber
onde havia de pôr aquele fatal braço, obstáculo dos atores novéis.
— Mas por que veio tarde? perguntou D.
Beatriz.
— Condene-me, minha senhora, mas poupe-me a
vergonha de explicar uma demora que não tem atenuante no código da amizade e da
polidez.
José Lemos sorriu olhando para todos e como
se destas palavras do tenente lhe resultasse alguma glória para ele. Mas
Justiniano Vilela que, apesar dos pastelinhos, sentia-se impelido para mesa,
exclamou velhacamente:
— Felizmente chegou à hora de jantar!
— É verdade; vamos para a mesa, disse José
Lemos dando o braço a D. Margarida e a D. Virgínia. Seguiram-se os mais em
procissão.
Não há mais júbilo nos peregrinos da Meca do
que houve nos convivas ao avistarem uma longa mesa, profusamente servida,
alastrada de porcelanas e cristais, assados, doces e frutas. Sentaram-se em boa
ordem. Durante alguns minutos houve aquele silêncio que precede a batalha, e só
no fim dela, começou a geral conversação.
— Quem diria há um ano, quando eu aqui
apresentei o nosso Duarte, que ele seria hoje noivo desta interessante D.
Carlota? disse o Dr. Valença limpando os lábios com o guardanapo, e lançando um
benévolo olhar para a noiva.
— É verdade! disse Beatriz.
— Parece dedo da Providência, opinou a mulher
de Vilela.
— Parece, e é, disse D. Beatriz.
— Se é o dedo da Providência, acudiu o noivo,
agradeço aos céus o interesse que toma por mim.
Sorriu D. Carlota, e José Lemos achou o dito
de bom gosto e digno de um genro.
— Providência ou acaso? perguntou o tenente.
Eu sou mais pelo acaso.
— Vai mal, disse Vilela, que pela primeira
vez levantara a cabeça do prato; isso que o senhor chama acaso não é senão a
Providência. O casamento e a mortalha no céu se talha.
— Ah! o senhor acredita nos provérbios?
— É a sabedoria das nações, disse José Lemos.
— Não, insistiu o Tenente Porfírio. Repare
que para cada provérbio afirmando uma coisa, há outro provérbio afirmando a
coisa contrária. Os provérbios mentem. Eu creio que foi simplesmente um
felicíssimo acaso, ou antes uma lei de atração das almas que fez com que o Sr.
Luís Duarte se aproximasse da interessante filha do nosso anfitrião.
José Lemos ignorava até aquela data se era
anfitrião; mas considerou que da parte de Porfírio não podia vir coisa má.
Agradeceu sorrindo o que lhe pareceu cumprimento, enquanto se servia da
gelatina, que Justiniano
Vilela dizia estar excelente.
As moças conversavam baixinho e sorrindo; os
noivos estavam embebidos com a troca de palavras amorosas, ao passo que Rodrigo
palitava os dentes com tal ruído, que a mãe não pôde deixar de lhe lançar um
desses olhares fulminantes que eram as suas melhores armas.
— Quer gelatina, Sr. Calisto? perguntou José
Lemos com a colher no ar.
— Um pouco, disse o homem de cara amarela.
— A gelatina é excelente! disse pela terceira
vez o marido de D. Margarida, e tão envergonhada ficou a mulher com estas
palavras do homem que não pôde reter um gesto de desgosto.
— Meus senhores, disse o padrinho, eu bebo
aos noivos.
— Bravo! disse uma voz.
— Só isso? perguntou Rodrigo; deseja-se uma
saúde historiada.
— Mamãe! eu quero gelatina! disse o menino Antonico.
— Eu não sei fazer discursos; bebo
simplesmente à saúde dos noivos.
Todos beberam à saúde dos noivos.
— Quero gelatina! insistiu o filho de José
Lemos.
D. Beatriz sentiu ímpetos de Medéia; o
respeito aos convidados impediu que ali houvesse uma cena grave. A boa senhora
limitou-se a dizer a um dos serventes:
— Leva isto a nhonhô...
O Antonico recebeu o prato, e entrou a comer
como comem as crianças quando não têm vontade: levava um colherada à boca e
demorava-se tempo infinito rolando o conteúdo da colher entre a língua e o
paladar, ao passo que a colher, empurrada por um lado formava na bochecha
direita uma pequena elevação. Ao mesmo tempo agitava o pequeno as pernas de
maneira que batia alternadamente na cadeira e na mesa.
Enquanto se davam estes incidentes, em que
ninguém realmente reparava, a conversa continuava seu caminho. O Dr. Valença
discutia com uma senhora a excelência do vinho Xerez, e Eduardo Valadares
recitava uma décima à moça que lhe ficava ao pé.
De repente levantou-se José Lemos.
— Sio! sio! sio! gritaram todos impondo
silêncio.
José Lemos pegou num copo e disse aos
circunstantes:
— Não é, meus senhores, a vaidade de ser
ouvido por tão notável assembleia que me obriga a falar. É um alto dever de
cortesia, de amizade, de gratidão; um desses deveres que podem mais que todos
os outros, dever santo, dever imortal.
A estas palavras a assembleia seria cruel se
não aplaudisse. O aplauso não atrapalhou o orador, pela simples razão de que
ele sabia o discurso de cor.
— Sim, senhores. Curvo-me a esse dever, que é
para mim a lei mais santa e imperiosa. Eu bebo aos meus amigos, a estes
sectários do coração, a estas vestais, tanto masculinas como femininas, do puro
fogo da amizade! Aos meus amigos! à amizade!
A falar a verdade, o único homem que percebeu
a nulidade do discurso de José lemos foi o Dr. Valença, que aliás não era
águia. Por isso mesmo levantou-se e fez um brinde aos talentos oratórios do
anfitrião.
Seguiu-se a estes dois brindes o silêncio de
uso, até que Rodrigo dirigindo-se ao Tenente Porfírio perguntou-lhe se havia
deixado a musa em casa.
— É verdade! queremos ouvi-lo, disse uma
senhora; dizem que fala tão bem!
— Eu, minha senhora? respondeu Porfírio com
aquela modéstia de um homem que se supõe um São João Boca de Ouro.
Distribuiu-se o champagne; e o Tenente Porfírio levantou-se. Vilela, que se achava
um pouco distante, pôs a mão em forma de concha atrás da orelha direita, ao
passo que Calisto fincando um olhar profundo sobre a toalha parecia estar
contando os fios do tecido. José Lemos chamou a atenção da mulher, que nesse
momento servia uma castanha gelada ao implacável Antonico; todos os mais
estavam com os olhos no orador.
— Minhas senhoras! meus senhores! disse
Porfírio; não irei esquadrinhar no âmago da história, essa mestra da vida, o
que era o himeneu nas priscas eras da humanidade. Seria lançar a luva do
escárnio às faces imaculadas desta brilhante reunião. Todos nós sabemos,
senhoras e senhores, o que é o himeneu. O himeneu é a rosa, rainha dos vergéis,
abrindo as pétalas rubras, para amenizar os cardos, os abrolhos, os espinhos da
vida...
— Bravo!
— Bonito!
— Se o himeneu é o que eu acabo de expor aos
vossos sentidos auriculares, não é mister explicar o gáudio, o fervor, os
ímpetos de amor, as explosões de sentimento com que todos nós estamos à roda
deste altar, celebrando a festa do nosso caro e prezadíssimo amigo.
José Lemos curvou a cabeça até tocar com a
ponta do nariz numa pera que tinha diante de si, enquanto D. Beatriz
voltando-se para o Dr. Valença que lhe ficava ao pé, dizia:
— Fala muito bem! parece um dicionário!
José Porfírio continuou:
— Sinto, senhores, não ter um talento digno
do assunto...
— Não apoiado! está falando muito bem!
disseram muitas vozes em volta do orador.
— Agradeço a bondade de vossas excelências;
mas eu persisto na crença de que não tenho o talento capaz de arcar com um
objeto de tanta magnitude.
— Não apoiado!
— Vossas excelências confundem-me, respondeu
Porfírio curvando-se. Não tenho esse talento; mas sobra-me boa vontade, aquela
boa vontade com que os apóstolos plantaram no mundo a religião do Calvário, e
graças a este sentimento poderei resumir em duas palavras o brinde aos noivos.
Senhores, duas flores nasceram em diverso canteiro, ambas pulcras, ambas
recendentes, ambas cheias de vitalidade divina. Nasceram uma para outra; era o
cravo e a rosa; a rosa vivia para o cravo, o cravo vivia para a rosa: veio uma
brisa e comunicou os perfumes das duas flores, e as flores, conhecendo que se
amavam, correram uma para a outra. A brisa apadrinhou essa união. A rosa e o
cravo ali estão consorciados no amplexo da simpatia: a brisa ali está honrando
a nossa reunião.
Ninguém esperava pela brisa; a brisa era o
Dr. Valença.
Estrepitosos aplausos celebraram este
discurso em que o Calvário andou unido ao cravo e à rosa. Porfírio sentou-se
com a satisfação íntima de ter cumprido o seu dever.
O jantar chegava ao fim: eram oito horas e
meia; vinham chegando alguns músicos para o baile. Todavia, ainda houve uma
poesia de Eduardo Valadares e alguns brindes a todos os presentes e a alguns
ausentes. Ora, como os licores iam ajudando as musas, travou-se especial
combate entre o Tenente Porfírio e Justiniano Vilela, que, só depois de animado
pôde entrar na arena. Esgotados os assuntos, fez Porfírio um brinde ao exército
e aos seus generais, e Vilela outro à união das províncias do Império. Nesse
terreno os assuntos não podiam escassear. Quando todos se levantaram da mesa,
lá ficaram os dois brindando calorosamente todas as ideias práticas e úteis deste
mundo, e do outro.
Seguiu-se o baile, que foi animadíssimo e
durou até as três horas da manhã.
Nenhum incidente perturbou esta festa. Quando
muito podia citar-se um ato de mau gosto da parte de José Lemos que, dançando
com D. Margarida, ousou lamentar a sorte dessa pobre senhora cujo marido se
entretinha a fazer saúdes em vez de ter a inapreciável ventura de estar ao lado
dela. D. Margarida sorriu; mas o incidente não foi adiante.
Às duas horas retirou-se o Dr. Valença com a
família, sem que durante a noite, e apesar da familiaridade da reunião,
perdesse um átomo sequer da gravidade habitual. Calisto Valadares esquivou-se
na ocasião em que a filha mais moça de D. Beatriz ia cantar ao piano. Os mais
foram-se retirando a pouco e pouco.
Quando a festa acabou de todo, ainda os dois
últimos Abencerragens do copo e da mesa lá estavam levantando brindes de todo o
tamanho. O último brinde de Vilela foi ao progresso do mundo por meio do café e
do algodão, e o de Porfírio ao estabelecimento da paz universal.
Mas o verdadeiro brinde dessa festa memorável
foi um pecurrucho que viu a luz em janeiro do ano seguinte, o qual perpetuará a
dinastia dos Lemos, se não morrer na crise da dentição.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...