As Academias de Sião
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Conhecem as academias de Sião? Bem sei que em Sião nunca houve academias: mas suponhamos que sim, e que eram quatro, e escutem-me.
CAPÍTULO
1
As estrelas, quando viam subir, através da
noite, muitos vaga-lumes cor de leite, costumavam dizer que eram os suspiros do
rei de Sião, que se divertia com as suas trezentas concubinas. E, piscando o
olho umas às outras, perguntavam:
— Reais suspiros, em que é que se ocupa esta
noite o lindo Kalaphangko?
Ao que os vaga-lumes respondiam com
gravidade:
— Nós somos os pensamentos sublimes das
quatro academias de Sião; trazemos conosco toda a sabedoria do universo.
Uma noite, foram em tal quantidade os
vaga-lumes, que as estrelas, de medrosas, refugiaram-se nas alcovas, e eles
tomaram conta de uma parte do espaço, onde se fixaram para sempre com o nome de
Via-láctea.
Deu lugar a essa enorme ascensão de
pensamentos o fato de quererem as quatro academias de Sião resolver este
singular problema: — por que é que há homens femininos e mulheres másculas? E o
que as induziu a isso foi a índole do jovem rei. Kalaphangko era virtualmente
uma dama. Tudo nele respirava a mais esquisita feminidade: tinha os olhos
doces, a voz argentina, atitudes moles e obedientes e um cordial horror às
armas. Os guerreiros siameses gemiam, mas a nação vivia alegre, tudo eram
danças, comédias e cantigas, à maneira do rei que não cuidava de outra coisa.
Daí a ilusão das estrelas.
Vai senão quando, uma das academias achou
esta solução ao problema:
— Umas almas são masculinas, outras
femininas. A anomalia que se observa é uma questão de corpos errados.
— Nego, bradaram as outras três; a alma é
neutra; nada tem com o contraste exterior.
Não foi preciso mais para que as vielas e
águas de Bangkok se tingissem de sangue acadêmico. Veio primeiramente a
controvérsia, depois a descompostura, e finalmente a pancada. No princípio da
descompostura tudo andou menos mal; nenhuma das rivais arremessou um impropério
que não fosse escrupulosamente derivado do sânscrito, que era a língua
acadêmica, o latim de Sião. Mas dali em diante perderam a vergonha. A
rivalidade desgrenhou-se, pôs as mãos na cintura, baixou à lama, à pedrada, ao
murro, ao gesto vil, até que a academia sexual, exasperada, resolveu dar cabo
das outras, e organizou um plano sinistro... Ventos que passais, se quisésseis
levar convosco estas folhas de papel, para que eu não contasse a tragédia de
Sião! Custa-me (ai de mim!), custa-me escrever a singular desforra. Os
acadêmicos armaram-se em segredo, e foram ter com os outros, justamente quando
estes, curvados sobre o famoso problema, faziam subir ao céu uma nuvem de
vaga-lumes. Nem preâmbulo, nem piedade. Caíram-lhes em cima, espumando de
raiva. Os que puderam fugir, não fugiram por muitas horas; perseguidos e
atacados, morreram na beira do rio, a bordo das lanchas, ou nas vielas escusas.
Ao todo, trinta e oito cadáveres. Cortaram uma orelha aos principais, e fizeram
delas colares e braceletes para o presidente vencedor, o sublime U-Tong. Ébrios
da vitória, celebraram o feito com um grande festim, no qual cantaram este hino
magnífico: "Glória a nós, que somos o arroz da ciência e a luminária do
universo".
A cidade acordou estupefata. O terror
apoderou-se da multidão. Ninguém podia absolver uma ação tão crua e feia;
alguns chegavam mesmo a duvidar do que viam... Uma só pessoa aprovou tudo: foi
a bela Kinnara, a flor das concubinas régias.
CAPÍTULO
2
Molemente deitado aos pés da bela Kinnara, o
jovem rei pedia-lhe uma cantiga.
— Não dou outra cantiga que não seja esta:
creio na alma sexual.
— Crês no absurdo, Kinnara.
— Vossa Majestade crê então na alma neutra?
— Outro absurdo, Kinnara. Não, não creio na
alma neutra, nem na alma sexual.
— Mas então em que é que Vossa Majestade crê,
se não crê em nenhuma delas?
— Creio nos teus olhos, Kinnara, que são o
sol e a luz do universo.
— Mas cumpre-lhe escolher: — ou crer na alma
neutra, e punir a academia viva, ou crer na alma sexual, e absolvê-la.
— Que deliciosa que é a tua boca, minha doce
Kinnara! Creio na tua boca: é a fonte da sabedoria.
Kinnara levantou-se agitada. Assim como o rei
era o homem feminino, ela era a mulher máscula — um búfalo com penas de cisne.
Era o búfalo que andava agora no aposento, mas daí a pouco foi o cisne que
parou, e, inclinando o pescoço, pediu e obteve do rei, entre duas carícias, um
decreto em que a doutrina da alma sexual foi declarada legítima e ortodoxa, e a
outra absurda e perversa. Nesse mesmo dia, foi o decreto mandado à academia
triunfante, aos pagodes, aos mandarins, a todo o reino. A academia pôs
luminárias; restabeleceu-se a paz pública.
CAPÍTULO
3
Entretanto, a bela Kinnara tinha um plano
engenhoso e secreto. Uma noite, como o rei examinasse alguns papéis do Estado,
perguntou-lhe ela se os impostos eram pagos com pontualidade.
— Ohimé! exclamou ele, repetindo essa palavra
que lhe ficara de um missionário italiano. Poucos impostos têm sido pagos. Eu
não quisera mandar cortar a cabeça aos contribuintes... Não, isso nunca...
Sangue? sangue? não, não quero sangue...
— E se eu lhe der um remédio a tudo?
— Qual?
— Vossa Majestade decretou que as almas eram
femininas e masculinas, disse Kinnara depois de um beijo. Suponha que os nossos
corpos estão trocados. Basta restituir cada alma ao corpo que lhe pertence.
Troquemos os nossos...
Kalaphangko riu muito da ideia, e
perguntou-lhe como é que fariam a troca. Ela respondeu que pelo método Mukunda,
rei dos hindus, que se meteu no cadáver de um brâmane, enquanto um truão se
metia no dele Mukunda, — velha lenda passada aos turcos, persas e cristãos.
Sim, mas a fórmula da invocação? Kinnara declarou que a possuía; um velho bonzo
achara cópia dela nas ruínas de um templo.
— Valeu?
— Não creio no meu próprio decreto, redarguiu
ele rindo; mas vá lá, se for verdade, troquemos... mas por um semestre, não
mais. No fim do semestre destrocaremos os corpos.
Ajustaram que seria nessa mesma noite. Quando
toda a cidade dormia, eles mandaram vir a piroga real, meteram-se dentro e
deixaram-se ir à toa. Nenhum dos remadores os via. Quando a aurora começou a
aparecer, fustigando as vacas rútilas, Kinnara proferiu a misteriosa invocação;
a alma desprendeu-se-lhe, e ficou pairando, à espera que o corpo do rei vagasse
também. O dela caíra no tapete.
— Pronto? disse Kalaphangko.
— Pronto, aqui estou no ar, esperando.
Desculpe Vossa Majestade a indignidade da minha pessoa...
Mas a alma do rei não ouviu o resto. Lépida e
cintilante, deixou o seu vaso físico e penetrou no corpo de Kinnara, enquanto a
desta se apoderava do despojo real. Ambos os corpos ergueram-se e olharam um
para o outro, imagine-se com que assombro. Era a situação do Buoso e da cobra,
segundo conta o velho Dante; as vede aqui a minha audácia. O poeta manda calar
Ovídio e Lucano, por achar que a sua metamorfose vale mais que a deles dois. Eu
mando-os calar a todos três. Buoso e a cobra não se encontram mais, ao passo
que os meus dois heróis, uma vez trocados, continuam a falar e a viver juntos —
coisa evidentemente mais dantesca, em que me pese à modéstia.
— Realmente, disse Kalaphangko, isto de olhar
para mim mesmo e dar-me majestade é esquisito. Vossa Majestade não sente a
mesma coisa?
Um e outro estavam bem, como pessoas que
acham finalmente uma casa adequada. Kalaphangko espreguiçava-se todo nas curvas
femininas de Kinnara. Esta inteiriçava-se no tronco rijo de Kalaphangko. Sião
tinha, finalmente, um rei.
CAPÍTULO
4
A primeira ação de Kalaphangko (daqui em
diante entenda-se que é o corpo do rei com a alma de Kinnara, e Kinnara o corpo
da bela siamesa com a alma do Kalaphangko) foi nada menos que dar as maiores
honrarias à academia sexual. Não elevou os seus membros ao mandarinato, pois
eram mais homens de pensamento que de ação e administração, dados à filosofia e
à literatura, mas decretou que todos se prosternassem diante deles, como é de
uso aos mandarins. Além disso, fez-lhes grandes presentes, coisas raras ou de
valia, crocodilos empalhados, cadeiras de marfim, aparelhos de esmeralda para
almoço, diamantes, relíquias. A academia, grata a tantos benefícios, pediu mais
o direito de usar oficialmente o título de Claridade do Mundo, que lhe foi
outorgado.
Feito isso, cuidou Kalaphangko da fazenda
pública, da justiça, do culto e do cerimonial. A nação começou de sentir o peso
grosso, para falar como o excelso Camões, pois nada menos de onze contribuintes
remissos foram logo decapitados. Naturalmente os outros, preferindo a cabeça ao
dinheiro, correram a pagar as taxas, e tudo se regularizou. A justiça e a
legislação tiveram grandes melhoras. Construíram-se novos pagodes; e a religião
pareceu até ganhar outro impulso, desde que Kalaphangko, copiando as antigas
artes espanholas, mandou queimar uma dúzia de pobres missionários cristãos que
por lá andavam; ação que os bonzos da terra chamaram a pérola do reinado.
Faltava uma guerra. Kalaphangko, com um
pretexto mais ou menos diplomático, atacou a outro reino, e fez a campanha mais
breve e gloriosa do século. Na volta a Bangkok, achou grandes festas esplêndidas.
Trezentos barcos, forrados de seda escarlate e azul, foram recebê-lo. Cada um
destes tinha na proa um cisne ou um dragão de ouro, e era tripulado pela mais
fina gente da cidade; músicas e aclamações atroaram os ares. De noite, acabadas
as festas, sussurrou ao ouvido a bela concubina:
— Meu jovem guerreiro, paga-me as saudades
que curti na ausência; dize-me que a melhor das festas é a tua meiga Kinnara.
Kalaphangko respondeu com um beijo.
— Os teus beiços têm o frio da morte ou do
desdém, suspirou ela.
Era verdade, o rei estava distraído e
preocupado; meditava uma tragédia. Ia-se aproximando o termo do prazo em que
deviam destrocar os corpos, e ele cuidava em iludir a cláusula, matando a linda
siamesa. Hesitava por não saber se padeceria com a morte dela visto que o corpo
era seu, ou mesmo se teria de sucumbir também. Era esta a dúvida de
Kalaphangko; mas a ideia da morte sombreava-lhe a fronte, enquanto ele afagava
ao peito um frasquinho com veneno, imitado dos Bórgias.
De repente, pensou na douta academia; podia
consultá-la, não claramente, mas por hipótese. Mandou chamar os acadêmicos;
vieram todos menos o presidente, o ilustre U-Tong, que estava enfermo. Eram
treze; prosternaram-se e disseram ao modo de Sião:
— Nós, desprezíveis palhas, corremos ao
chamado de Kalaphangko.
— Erguei-vos, disse benevolamente o rei.
— O lugar da poeira é o chão, teimaram eles
com os cotovelos e joelhos em terra.
— Pois serei o vento que subleva a poeira,
redarguiu Kalaphangko; e, com um gesto cheio de graça e tolerância,
estendeu-lhes as mãos.
Em seguida, começou a falar de coisas
diversas, para que o principal assunto viesse de si mesmo; falou nas últimas
notícias do ocidente e nas leis de Manu. Referindo-se a U-Tong, perguntou-lhes
se realmente era um grande sábio, como parecia; mas, vendo que mastigavam a
resposta, ordenou-lhes que dissessem a verdade inteira. Com exemplar
unanimidade, confessaram eles que U-Tong era um dos mais singulares estúpidos
do reino, espírito raso, sem valor, nada sabendo e incapaz de aprender nada.
Kalaphangko estava pasmado. Um estúpido?
— Custa-nos dizê-lo, mas não é outra coisa; é
um espírito raso e chocho. O coração é excelente, caráter puro, elevado...
Kalaphangko, quando voltou a si do espanto,
mandou embora os acadêmicos, sem lhes perguntar o que queria. Um estúpido? Era
mister tirá-lo da cadeira sem molestá-lo. Três dias depois, U-Tong compareceu
ao chamado do rei. Este perguntou-lhe carinhosamente pela saúde; depois disse
que queria mandar alguém ao Japão estudar uns documentos, negócio que só podia
ser confiado a pessoa esclarecida. Qual dos seus colegas da academia lhe
parecia idôneo para tal mister? Compreende-se o plano artificioso do rei: era
ouvir dois ou três nomes, e concluir que a todos preferia o do próprio U-Tong;
mas eis aqui o que este lhe respondeu:
— Real Senhor, perdoai a familiaridade da
palavra: são treze camelos, com a diferença que os camelos são modestos, e eles
não; comparam-se ao sol e à lua. Mas, na verdade, nunca a lua nem o sol
cobriram mais singulares pulhas do que esses treze... Compreendo o assombro de
Vossa Majestade; mas eu não seria digno de mim se não dissesse isto com
lealdade, embora confidencialmente...
Kalaphangko tinha a boca aberta. Treze
camelos? Treze, treze. U-Tong ressalvou tão-somente o coração de todos, que
declarou excelente; nada superior a eles pelo lado do caráter. Kalaphangko, com
um fino gesto de complacência, despediu o sublime U-Tong, e ficou pensativo.
Quais fossem as suas reflexões, não o soube ninguém. Sabe-se que ele mandou
chamar os outros acadêmicos, mas desta vez separadamente, a fim de não dar na
vista, e para obter maior expansão. O primeiro que chegou, ignorando aliás a
opinião de U-Tong, confirmou-a integralmente com a única emenda de serem doze
os camelos, ou treze, contando o próprio U-Tong. O segundo não teve opinião
diferente, nem o terceiro, nem os restantes acadêmicos. Diferiam no estilo; uns
diziam camelos, outros usavam circunlóquios e metáforas, que vinham a dar na
mesma coisa. E, entretanto, nenhuma injúria ao caráter moral das pessoas.
Kalaphangko estava atônito.
Mas não foi esse o último espanto do rei. Não
podendo consultar a academia, tratou de deliberar por si, no que gastou dois
dias, até que a linda Kinnara lhe segredou que era mãe. Esta notícia fê-lo
recuar do crime. Como destruir o vaso eleito da flor que tinha de vir com a
primavera próxima? Jurou ao céu e à terra que o filho havia de nascer e viver.
Chegou ao fim do semestre; chegou o momento de destroçar os corpos.
Como da primeira vez, meteram-se no barco
real, à noite, e deixaram-se ir águas abaixo, ambos de má vontade, saudosos do
corpo que iam restituir um ao outro. Quando as vacas cintilantes da madrugada
começaram de pisar vagarosamente o céu, proferiram eles a fórmula misteriosa, e
cada alma foi devolvida ao corpo anterior. Kinnara, tornando ao seu, teve a
comoção materna, como tivera a paterna quando ocupava o corpo de Kalaphangko.
Parecia-lhe até que era ao mesmo tempo mãe e pai da criança.
— Pai e mãe? repetiu o príncipe restituído à
forma anterior.
Foram interrompidos por uma deleitosa música,
ao longe. Era algum junco ou piroga que subia o rio, pois a música
aproximava-se rapidamente. Já então o sol alagava de luz as águas e as margens
verdes, dando ao quadro um tom de vida e renascença, que de algum modo fazia
esquecer aos dois amantes a restituição física. E a música vinha chegando,
agora mais distinta, até que, numa curva do rio, apareceu aos olhos de ambos um
barco magnífico, adornado de plumas e flâmulas. Vinham dentro os quatorze
membros da academia (contando U-Tong) e todos em coro mandavam aos ares o velho
hino: "Glória a nós, que somos o arroz da ciência e a claridade do
mundo!"
A bela Kinnara (antigo Kalaphangko) tinha os
olhos esbugalhados de assombro. Não podia entender como é que quatorze varões
reunidos em academia eram a claridade do
mundo, e separadamente uma multidão de camelos. Kalaphangko, consultado por
ela, não achou explicação. Se alguém descobrir alguma, pode obsequiar uma das
mais graciosas damas do Oriente, mandando-lha em carta fechada, e, para maior
segurança, sobrescrita ao nosso cônsul em Xangai, China.
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