Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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A noite, lunarmente clara, envolvia em prata
o recinto virginal, em que, sem aceder ao sono, Cristina se divertia, mostrando
ao astro lúbrico os tons róseos de sua carnação perfeita como se talhada em
mármore rosado e úmido.
Aquele silêncio luarento povoava as sombras
de tétricas visões; mas sofrendo o conflito das ideias de uma traição de Narciso
e da lealdade perquiridora de Stela, a desacordada mulher caprichou de não
dormir enquanto a espiona não tornasse do baile à fantasia.
***
— Reconheceu-te,
Stela?
— Como me
reconhecer?... Quem te disse estar ele no baile?
— Não o
viste?
— Compreendo-te,
agora; empolgou-te a ideia de que Narciso estaria no baile, e, escrava dessa
suposição, criaste todo um sistema de desconfianças, que começaram de
traduzir-se, muito naturalmente, naquela tua frase.
— Viste-o?
— Vi-o.
Por que arregalas deste modo os olhos? Não esperavas esta notícia?
— Esperava.
Mas, como todo o mundo que espera a nova de um desastre com uma pontinha de
esperança em contrário, supus sempre que não pusesses os olhos sobre ele.
Embora traída, eu quereria não ser sabedora do mal...
— Arrependo-me
de ter sido exata. É prudente, Cristina, que te não obstines em agravar o
acaecido. Não remediarás o mal, não é assim? Pois, coração à larga. Narciso
foi. Eu o vi. Medi-lhe as ações. Acompanhei-o por toda a parte. E, nem sequer,
ele maldou de que uma pierrot o
acompanhasse. Se tu lhe falas, terás de dizer-lhe quem foi espionar-lhe os
passos de homem livre...
— É o que
te parece: livre?...
— Pois
não é livre Narciso?
— Digo-te
que não!
— O teu
noivo não tem a liberdade comum a todos os homens do mesmo estado?
— Repito-te
que não.
— Pois,
minha amiga, para o meu sentir, todos os noivos, longe das vistas da mulher
amada, ficam sendo o que são: homens solteiros...
— Narciso
difere dos outros...
— Ufa!...
Cristina!... Vou tirando o pierrot
que me acalora as carnes...
— O
noivado é um começo de intimidades, que se distendem, mais ou menos, conforme
as razões de ser do amor vigiado. Naquele avarandado semiescuro, onde passamos
todas as noites, por isso mesmo que estamos assegurados na nossa posição, com a
possível presença imediata de todos os de casa, as nossas intimidades seguem
uma derrota que me dá o direito de exigir de Narciso maiores fidelidades do que
tu pensas...
— Olha, Cristina,
como o cetim vermelho desbotou e nodoou rubramente o colete... Oh!...
envermelheceu-me o colo também... Que fazenda ordinária, esta!
— Isto
larga... Dois meses, depois, de noivado, Stela, as confidências das almas
passaram às do corpo... Ah!... O primeiro beijo ainda foi mais cedo... Tinha eu
três dias de pedida... Na hora do adeus, deserta a rua, os seus lábios roçaram
sobre os meus olhos, e os seus bigodes produziram-me um frisson nas carnes, com
o qual eu me teria entregue ao mais terroroso dos homens. E Narciso, pelos
estremecimentos de meus dedos que ele segurava entre os seus, sorriu—um sorriso
mais lindo do que um raio de sol! — e, sem o querermos, talvez, por certo
instintivamente, os nossos lábios se encontraram...
— Vê, Cristina,
como ficaram as minhas calças...
— Desbotou
nelas o cetim?
— Alguma
coisa. A cor amarela é mais fixa do que a vermelha... Mas, estão para ser
exprimidas... Que sudorífico!
— Despe-te
logo. Pareces, com os teus costumes, que os teus olhos são de um homem que
acompanhasse o desnudamento dos segredos de teu corpo... Avia-te, a fim de que
me contes o que viste...
— Dir-te-ei
centos de coisas novas...
— Apeteço
o conhecimento do que sabes. É uma infelicidade ter-se um pai, como o meu, que
se indignaria contra mim, tolamente, se soubesse que eu fora a um baile público
espionar os desvarios de meu noivo... Ah!... Como eu seria venturosa, se
pudesse ir, como tu, a toda a parte que cobiço...
— Nem tu
calculas palidamente o que por lá se vive...
— Apressa-te,
Stela!
— Acaba,
primeiramente, o que contavas... Não quero perder a boa hora de confidências
que inauguraste...
— Pouco
mais tenho para te dizer... Depois do primeiro beijo, os contatos... Em
seguida, as mútuas confianças, mais um arregaçamento hoje, mais uma ternura
amanhã... Um dia, porém, por mais que eu lhe resistisse, desejou ver-me o começo
das pernas... Intimidades, Stela, intimidades, próprias, comuns e infalíveis
entre todos os noivos... Eram elas que me garantiam, até hoje, a constância de
Narciso, e, quando vejo, como agora, que o que lhe faço já se torna pouco para
o prender na fidelidade acordada, adianto-lhe um pouco mais, sem contudo deixar
que ele perceba o manejo de fazer crescerem as concessões, na medida em que
venha o seu enfartamento pelas anteriores... Conta, agora, o que tu viste...
— Deitemo-nos,
primeiro... A fadiga luxuriosa me alquebra os membros e o corpo quer
distender-se nervosamente num leito macio...
— E onde
ficou Alberto?
— O meu
primo?
— Sim.
— Deixou-me
ao entrar aqui. Pela nossa compostura fomos dois pierrots da maior sensação! Nem calculas como é deliciosa a companhia
do meu primo nestes momentos... Ao depois, relembrou-me, com um calculado
jeito, pelo caminho, tudo quanto mais impressionou os meus sentidos. Soube
corresponder à minha excitação, não cometendo maiores pecados do que me beijar
nas passagens mais sombrias das ruas...
— Invejo-te,
Stela!
— Bem
poderias ter ido...
— Qual
nada!
— Entrei
e sair sem que teu pai desse tento, pois não foi?
— Isto é
fácil para ti...
— Procurou-te
o teu pai durante a minha ausência?...
— Não!
— Aí
está! Tinhas ido comigo e seríamos duas a comentar o que víssemos... Lá estava
Narciso... Foi um dos juízes no julgamento do baile. Custei a topar com ele. Só
em meio da festa deparei com ele numa das banquinhas do buffet. Mais de vinte homens e mulheres...
— Mulheres,
também?
— E
então? Tu pensas que haverá quem resista à solidão naquele caos de sensações
estranhas? O Lourival, marido da Conchinha, mais o Ramalho, casado com a
Lucinda, lá estavam, cada qual com a sua mascarada...
— Narciso
também?
— Não te
espantes senão se eu te disser que ele era o único que não tinha uma mulher
fantasiada ao seu flanco...
— Como
isto me incomoda! Quando o vi, aqui, promover o arrufo, pensei logo na traição.
Aquele semblante enfarruscado não era sincero...
— Ao seu
lado estava uma écuyère italiana:
deves gabar-te do gosto de teu noivo. Não se acompanha de mulher feia. É sério...
— Era
bonita a que o seguia?
— Linda, Cristina:
mignon, alva, loura, e, com um
arrebatador decote, exibindo um colo mais branco do que um pedaço de neve, do
meio da qual, como uma abelha sobre uma pétala de gardênia, um negro sinal era
tido como mascote...
— Já
agora me penso feliz por não ter ido lá.
— Que
teria se tu tivesses ido?
— Não me
conteria.
— Ora, Cristina!
Serias a primeira a deixar tudo para veres como o teu noivo sabe gozar uma
mulher. Não dirias nem uma palavra, mas lhe acompanharias a pessoa como a sua
sombra. Quando não te agradasse fecharias os olhos. Vi-o, por exemplo, encher a
boca de champagne...
— Nada
mais natural.
— É o teu
erro. Quem não sabe é como quem não vê. Pensas, então, que ele tomou a bebida
de dentro da taça?
— Sim.
— Pois
não! A divette foi quem lhe passou o champagne colando os seus nos lábios
dele... Garanto-te que não sabias deste modo de acariciar...
— Confesso-te
que não.
— Aí
está. Verias a droiture com que o teu
noivo se curvou, encostou nas suas as faces da encantadora mulher, colou-lhe os
lábios e sugou-lhe a entontecedora bebida...
— Como
deve ser bom esse carinho!
— Ao
depois, beijaram-se...
— Aos
olhos do público?
— Sim.
— Ah!...
Se eu estivesse lá...
— Não
farias senão nada. Eu, pelo menos, nessas ocasiões de grande excesso, ali mesmo
me voltava, e, se não fossem as nossas máscaras, creio que, incondescendente,
devoraria Alberto de beijos... Não conheço, Cristina, nada que excite mais do
que aquelas danças. Um conto de Calibã é menos excitante, e um par dançando é
bem um conto luxurioso escrito com a alma e a carne mais quentes, para ter o
ponto final de um beijo. Os corpos estreitavam-se brutalmente, as pernas se
entrançavam, as mãos, servindo de opressores, estreitavam os troncos e cada
par, assim enlaçado, cabeça descaída sobre cabeça, parecia um corpo só com a
monstruosidade de quatro pernas... Esquisito, sem igual... Homens e mulheres
não se distinguiam na fúria dos sentidos...
— E
Narciso dançou?
— Não.
Nem todos dançam. À parte, pelo jardim e nas mesas do buffet, os que não estavam fantasiados, se divertiam à grande, mas
um pouco retraídos das vistas do grosso público, porque só no salão eles
escandalizariam...
— Todavia,
vingar-me-ei...
— Poupa-o,
Stela... O pecado é divino... Vinga-te em mim...
***
As duas mulheres, num longo beijo,
abraçaram-se e confundiram-se, cada qual na ideia mais fixa de ter ao seu lado
um outro ente...
A lua, devassamente, iluminou-lhes, até
quando quis, os seus belos corpos de uma seminudez pagã...
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