Antes a Rocha Tarpeia
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Como é que me achei ali em cima? Era um
pedaço de telhado, inclinado, velho, estreitinho, com cinco palmos de muro por
trás. Não sei se fui ali buscar alguma coisa; parece que sim, mas qualquer que
ela fosse, tinha caído ou voado, já não estava comigo. Eu é que fiquei ali no
alto, sozinho, sem nenhum meio de voltar abaixo.
Começara a entender que era pesadelo. Já lá
vão alguns anos. A rua ou estrada em que se achava aquela construção era
deserta. Eu, do alto, olhava para todos os lados sem descobrir sombra de homem.
Nada que me salvasse; pau nem corda. Ia aflito de um para outro lado, vagaroso,
cauteloso, porque as telhas eram antigas, e também porque o menor descuido
far-me-ia escorregar e ir ao chão. Continuava a olhar ao longe, a ver se
aparecia um salvador; olhava também para baixo, mas a ideia de dar um pulo era
impossível; a altura era grande, a morte certa. De repente, sem saber de onde
tinham vindo, vi embaixo algumas pessoas, em pequeno número, andando, umas da
direita, outras da esquerda. Bradei de cima à que passava mais perto:
— Ó senhor! acuda-me!
Mas o sujeito não ouviu nada, e foi andando.
Bradei a outro e outro; todos iam passando sem ouvir a minha voz. Eu, parado,
cosido ao muro, gritava mais alto, como um trovão. O temor ia crescendo, a
vertigem começava; e eu gritava que me acudissem, que me salvassem a vida, pela
escada, corda, um pau, pedia um lençol, ao menos, que me apanhasse na queda.
Tudo era vão. Das pessoas que passavam só restavam três, depois duas, depois
uma. Bradei a essa última com todas as forças que me restavam:
— Acuda! acuda!
Era um rapaz, vestido de novo, que ia andando
e mirando as botas e as calças. Não me ouviu, continuou a andar, e desapareceu.
Ficando só, nem por isso cessei de gritar.
Não via ninguém, mas via o perigo. A aflição era já insuportável, o terror
chegara ao paroxismo... Olhava para baixo, olhava para longe, bradava que me
acudissem, e tinha a cabeça tonta e os cabelos em pé... Não sei se cheguei a
cair; de repente, achei-me na cama acordado.
Respirei à larga, com o sentimento da pessoa
que sai de um pesadelo. Mas aqui deu-se um fenômeno particular; livre de
perigo, entrei a saboreá-lo. Em verdade, tivera alguns minutos ou segundos de
sensações extraordinárias; vivi de puro terror, vertigem e desespero, entre a
vida e a morte, como uma peteca entre as mãos destes dois mistérios. A certeza,
porém, de que tinha sido sonho dava agora outro aspecto ao perigo, e trazia à
alma o desejo vago de achar-me nele outra vez. Que tinha, se era sonho?
Ia assim pensando, com os olhos fechados,
meio adormecido; não esquecera as circunstâncias do pesadelo, e a certeza de
que não chegaria a cair acendeu de todo o desejo de achar-me outra vez no alto
do muro, desamparado e aterrado. Então apertei muito os olhos para não
despertar de todo, e para que a imaginação não tivesse tempo de passar a outra
ordem de visões.
Dormi logo. Os sonhos vieram vindo, aos
pedaços, aqui uma voz, ali um perfil, grupos de gente, de casas, um morro, gás,
sol, trinta mil coisas confusas, que se cosiam e descosiam. De repente vi um
telhado, lembrei-me do outro, e como dormira com a esperança de reatar o
pesadelo, tive uma sensação misturada de gosto e pavor. Era o telhado de uma
casa; a casa tinha uma janela; à janela estava um homem; este homem
cumprimentou-me risonho, abriu a porta, fez-me entrar, fechou a porta outra vez
e meteu a chave no bolso.
— Que é isto? perguntei-lhe.
— É para que nos não incomodem, acudiu ele
risonho.
Contou-me depois que trazia um livro entre
mãos, tinha uma demanda e era candidato a um lugar de deputado: três matérias
infinitas. Falou-me do livro, trezentas páginas, com citações, notas,
apêndices; referiu-me a doutrina, o método, o estilo, leu-me três capítulos.
Gabei-os, leu-me mais quatro. Depois, enrolando o manuscrito, disse-me que
previa as críticas e objeções; declarou quais eram e refutou-as uma por uma.
Eu, sentado, afiava o ouvido, a ver se aparecia alguém; pedia a Deus um
salteador ou a justiça, que arrombasse a porta. Ele, se falou em justiça, foi
para contar-me a demanda, que era uma ladroeira do adversário, mas havia de
vencê-lo a todo custo. Não me ocultou nada; ouvi o motivo, e todos os trâmites
da causa, com anedotas pelo meio, uma do escrivão que estava vendido ao
adversário, outra de um procurador, as conversações com os juízes, três
acórdãos e os respectivos fundamentos. À força de pleitear, o homem conhecia
muito texto, decretos, leis, ordenações, citava os livros e os parágrafos,
salpicava tudo de perdigotos latinos. Às vezes, falava andando, para descrever
o terreno, — era uma questão de terras, — aqui o rio, descendo por ali, pegando
com o outro mais abaixo; deste lado as terras de Fulano, daquele as de Sicrano...
Uma ladroeira clara; que me parecia?
— Que sim.
Enxugou a testa, e passou à candidatura. Era
legítima; não negava que pudesse haver outras aceitáveis; mas a dele era a mais
legítima. Tinha serviços ao partido, não era aí qualquer coisa, não vinha pedir
esmola de votos. E contava os serviços prestados em vinte anos de lutas
eleitorais, luta de imprensa, apoio aos amigos, obediência aos chefes. E isso
não se premiava? Devia ceder o seu lugar a filhos? Leu a circular, tinha três
páginas apenas; com os comentários verbais, sete. E era a um homem destes que
queriam deter o passo? Podiam intrigá-lo; ele sabia que o estavam intrigando,
choviam cartas anônimas... Que chovessem! Podiam vasculhar no passado dele, não
achariam nada, nada mais que uma vida pura, e, modéstia à parte, um modelo de
excelentes qualidades. Começou pobre, muito pobre; se tinha alguma coisa era
graças ao trabalho e à economia, — as duas alavancas do progresso.
Uma só dessas velhas alavancas que ali
estivesse bastava para deitar a porta abaixo; mas nem uma nem outra, era só
ele, que prosseguia, dizendo-me tudo o que era, o que não era, o que seria, e o
que teria sido e o que viria a ser, — um Hércules, que limparia a estrebaria de
Augias, — um varão forte, que não pedia mais que tempo e justiça. Fizessem-lhe
justiça, dando-lhe votos, e ele se incumbiria do resto. E o resto foi ainda
muito mais do que pensei... Eu, abatido, olhava para a porta, e a porta calada,
impenetrável, não me dava a menor esperança. Lasciati ogni speranza...
Não, cá está mais que a esperança; a
realidade deu outra vez comigo acordado, na cama. Era ainda noite alta; mas nem
por isso tentei, como da primeira vez, conciliar o sono. Fui ler para não
dormir. Por quê? Um homem, um livro, uma demanda, uma candidatura, por que é
que temi reavê-los, se ia antes, de cara alegre, meter-me outra vez no telhado
em quê? ...
Leitor, a razão é simples. Cuido que há na
vida em perigo um sabor particular e atrativo; mas na paciência em perigo não
há nada. A gente recorda-se de um abismo com prazer; não se pode recordar de um
maçante sem pavor. Antes a rocha Tarpeia que um autor de má nota.
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