Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Um ar tépido, cheio de luzes meridionais,
rico de aromas novos, instigador do sensualismo mais humano e menos animal, era
o excelente conforto da cela de Frei Patrício.
Um leito acolchoado recebia em cheio a
réstia do sol poente, e, de dedos enclavinhados, um em frente do outro, o
habitante do claustro e o seu afetuoso irmão de ordem, Frei Tomásio, palravam
gostosamente de coisas alegres...
***
—Assim foi que me decidi, sem espanto dos
meus, e por uma resolução improvisada...
— Pois
eu, não! Lutei contra uma grosseira série de vontades, e não venci: fui
derrotado.
— Não
posso crer facilmente.
— É a
verdade, irmão Tomásio... Fiz como um cadáver que entra no sepulcro. Para aqui
trouxe o meu corpo, e, lá fora, borboleteando, sem parar, a minha alma... viveu
sempre muito longe das carnes que ela animava. Enquanto moço, nas minhas preces
só o nome de uma mulher viçava triunfante...
— Também
a mulher...
— Sim.
Preconceitos, preconceitos! A baronia estulta de uma família asfixiou sem dó a
ventura de duas almas... E eu de falar-te, inda hoje, tremo de cólera. Pudesse
eu e a vontade amorosa de Marina, por entre hinos e bendições, tê-la-ia levado,
não à cova, sublevando-se contra os pais, sim ao himeneu, triunfando o seu
amor. Desde que nos vimos, sem cuidados naquilo que outros apreçavam—a feeria
dos títulos nobiliárquicos—vivemos apenas pelas sugestões do sentimento que nos
venceu...
— Os teus
lábios tremem, irmão Patrício, as tuas pupilas se inflamam e olham por sobre
nós para tempos bem distanciados...
— Realmente!
Fuzilam-me eternamente os desejos da vingança que exerci contra mim mesmo,
enclausurando-me. Quando aqui cheguei, Marina vivia ainda, mas respirando
balões de oxigênio. Artifícios da ciência! E três dias depois, desta mesma
janela, vi passar, ali embaixo, naquela tortuosa e acidentada vereda, vi passar
o coche branco, portador do esquife em que desapareceu para sempre a matéria
que tanto amei... A vista anuviou-se-me e, balouçadas pela brisa, as rendas do
esquife me disseram um adeus aflitivo, como as despedidas de uns lenços muito
brancos, molhados de lágrimas... Sucumbi diante da falsa visão e esmaeci... debruçado
sobre aquele leito, onde chorei incansavelmente irado—Deus me perdoe!—como o
mais pecador dos homens...
— Tanto
pode o amor!
— A mola
do mundo, Frei Tomásio, é a mulher. Não há um burel aqui dentro que não seja
trazido por uma delas. E em tudo, como dizem corriqueira e profanamente os
franceses, chercher la femme...
Porventura não professaste como os outros?
— Sem
tirar nem pôr na causa.
— Sempre
assim.
— Mas, tu
procuraste o claustro como um eleito do amor que te distinguiu entre os outros
homens e te elegeu o seu preferido.
— Ah! por
certo.
— Quem me
dera!
— E que
te faltou, Frei Tomásio?
— Justamente
o amor.
— Intrigas-me
deveras.
— Vou
contar-te, pois, a minha história. Lembras-te de que professei mocinho?
— Se me
lembro!...
— Pois
bem! O meu acontecimento foi de alguns anos antes... Eu era menino, e se me
dissessem que o helianto foi obra da pretensão e do desabuso de Hefaestos
querendo, como um Deus, criar sóis e mais sóis, todo o crédito eu daria, porque
não tinha discernimento para me salvar das tentações humanas...
— Que são
as verdadeiras tentações da serpente no Paraíso...
— Fazendo
estudos, eu ia, quotidianamente, para os cursos, como o carreiro que passe todo
o dia pela mesma estrada em busca de acendalhas e ramos para sustentar a
lareira aquecida e feliz... Tinha eu ambições de saber... Embriagavam-me os
livros, e neles mesmos comecei de ler as primeiras coisas de amor...
— E não
lias o Cântico dos Cânticos!
— Ah!
não! Fui sabendo que, como Eva fora criada para acompanhar o primeiro homem, a
mulher vivia para funcionar no amor. Os arrebatamentos vieram pouco a pouco. E
dei para olhar as raparigas com olhos de escaldo...
— Que
maganão!
— E não
peco porque te falo a mais pura verdade. No rebanho de nossas amizades havia
uma ovelhinha, que, por ser linda e mansa, recebia o cortejo dos mocinhos de
minha idade. Se as suas companheiras não tinham as calenturas de um amor, ela
abrasava na abundância das pretensões exaltadas: todos à porfia lhe disputavam
a preferência... Tolamente eu era conduzido entre os fascinados pelo olhar da
moçoila cortejada.
— Estou
vendo que eras o preferido...
— Não
sei, porque não tive capacidade para aquilatar, bem como porque—e daqui se
originou a minha principal história—troquei logo essa expetativa de amor bem
aventurado por uma efetividade de amor bem triste... Mas sei que os olhares dos
meus velhinhos caíam sobre nós dois como punhados de olorosos jasmins, quando
eles nos viam, quais dois noivos conscientes, em falações na varanda arborizada
de nossa casa, amorosamente iluminados pela lua...
— Bem
feliz que ias para a vida entrando, irmão Tomásio?
— Devo
crer-te, muito mais ainda quanto entre os que mais choraram a minha desdita foi
ela a que mais lágrimas chorou... Ora, se a intuição de amar crescia e eu me
tentava a ser amado, olhos outros, mais fulgentes e chispantes, me
sensualizaram todo e a carne arvorou-se em maior do que o sentimento...
— O
pecado!
— Verdadeiramente,
o pecado! Nas idas e vindas dos meus cursos, às vezes ainda peando cigarras e
apedrejando, com rudes instintos, os inofensivos gaturamos, fui prendendo-me às
ardências das esbraseadas pupilas de uma mulher fácil... A princípio, quando o
seu olhar incidia sobre mim, eu cerrava os olhos, abaixava a fronte, e, sem o
querer, pensava nas ternuras da outra. Nada mais. Os dias repetiam-se e as
cenas mudavam-se, crescendo as investidas e diminuindo a resistência. Ao
depois, os meus olhares chocavam-se com os da agressora, eu sentia uma
purpuridão nas faces, mas incólume prosseguia o meu caminho... Mais tempo, e
duas, três, quatro vezes, voltava-me para trocar sorrisos... Em casa, a
presença da outra, começou de aborrecer-me. À noite, por sobre as páginas
abertas dos meus livros, dançavam cabrioladamente as imagens das duas mulheres.
E eu me decidia fragorosamente pela menos conhecida. Um dia, notei que os
lábios da estranha se moviam. Nada percebi, no entanto. Que ela falava, eu
estava certo. Nas passagens seguintes, com os olhares e os sorrisos, ouvi um
termo esquisito. Duas silabas apenas, e, se não te ofendo nem abuso de tua
condescendência, irmão Patrício, dir-to-ei já...
— Faço
mesmo questão de sabê-lo...
— Já que
queres ouvir-me, continuarei...
— Continua...
— A
deslumbrante mulher dizia-me apenas: “Tico”...
— Olá!...
Olha que eu velho assim nunca ouvi esse vocábulo...
— Nada
sei explicar-te, Frei Patrício, senão que corri os dicionários dos meus
estudos, e que todos eles me negaram o conhecimento do termo convencional.
Valeram-me as amizades colegiais, e um condiscípulo investigador, depois de
algumas pesquisas fora da convivência dos colegas, soprou-me segredadamente: “Tico
é um convite... E quando ouvires, responde taco...” Corei diante da revelação e
maldei de tudo. O meu primeiro impulso foi abandonar o meu caminho habitual
para me furtar às seduções de Almira...
— Que
belo nome, e lendário!
— Tive,
porém, de ceder à contingência dos fatos. Não era possível andar por outras
ruas sem alongar o meu viático, diante do que desisti da ideia e afrontei a
tentação. Com o tempo fui cedendo. E, um belo dia, como se diz lá fora,
escorreguei... “Tico!”, disse-me ela, e eu lhe opus murmuradamente quase: “Taco!”
Em resposta, ouvi: “Amanhã!” Que noite, Frei Patrício! Se há caldeiras para
queimar almas, nós as experimentamos quando fazemos a espera de alguma coisa.
Não dormi, confesso. E, para encurtar as razões, só acordei, efetivamente,
quando, advertido por ela de que lá iria chegar o seu homem, me vi escondido
por detrás e entre panos e panos de sacos vazios. Desse esconderijo ouvi as
suspeitas do esposo aparecido, suspeitas que cresceram e motivaram uma busca
nos panos que me ocultavam. Que criatura perversa! Foi às bastonadas, meu
Reverendo, que o bisonho animal me arrancou de debaixo das pilhas de sacos, às
bastonadas, Frei Patrício...
— Ah!...
ah!... ah!... ah!
— Não
rias, Irmão!
— Não te
zangues, Frei Tomásio. Não me posso conter... A tua história é alegre... Ah!...
ah!... ah!... ah!...
— Nem sei
como de maus tratos não me acabaram naquela hora furiosa... E quanto tempo me
esbarrei inutilizado sobre o leito... nem me lembro mais!
— Pudera!...
Ah! ah! ah! ah!...
— Aliás,
não foi tudo, pois que, tempos depois, restabelecido já, e voltando aos
cruzeiros dos meus estudos, a demônia me repetia: “Taco?”... e eu a repelia
instintivamente... “Nem tico, nem taco... nem lá dentro do teu saco...”
— É boa,
é boa!... Ah!... ah!... ah!... ah!...
— Em
seguida...
— Sim...
—...
senti-me humilhado, porque, por toda a parte, a mofa dos conhecidos me
estigmatizava com o escândalo, e sofri, abrasadoramente. Ninita, escandalizada
com a minha queda, definiu-se por outro, que a recebeu como esposa perante
Deus! Por tudo isto, tive nojo de mim mesmo... O mundo era um tédio... Então
pensei no vício...
— Misericórdia!
— Mas,
não era?... Para abafar uma miséria moral, só outra maior... ou o passo que
dei...
***
A brônzea sineta da confraria, não se
retendo na missão avisadora, chamava a Ordem para a humilde refeição da noite.
E
quando Frei Patrício chegou ao salão, na companhia de Frei Tomásio, já se liam,
enfaticamente, as consoantes orações da hora.
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