Almas agradecidas
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
CAPÍTULO 1
Havia representação no Ginásio. A peça da
moda era então a célebre Dama das
Camélias. A casa estava cheia. No fim do quarto ato começou a chover um
pouco; do meio do quinto ato em diante, a chuva redobrou de violência.
Quando acabou o espetáculo, cada família
entrou no seu carro; as poucas que não tinham esperavam uma estiada, e,
mediante os guarda-chuvas, lá saíram com as saias arregaçadas,
............aos
olhos dando,
O que às
mãos cobiçosas vão negando.
Os homens abriam os seus guarda-chuvas;
outros chamavam tílburis; e pouco a pouco se foi despejando o saguão, até que
só ficaram dois rapazes, um dos quais abotoara até o pescoço o paletó, e
esperava maior estiada para sair, porque além de não ter guarda-chuva, não via
nenhum tílburi no horizonte.
O outro também abotoara o paletó, mas tinha
guarda-chuva; não parecia, entretanto, disposto a abri-lo. Olhava de esguelha
para o primeiro, que fumava tranquilamente um charuto.
Já o porteiro havia fechado as duas portas
laterais e ia fazer o mesmo à porta central, quando o rapaz do guarda-chuva
dirigiu ao outro estas palavras:
— Para que lado vai?
O interpelado compreendeu que o companheiro
lhe ia oferecer abrigo e respondeu, com palavras de agradecimento, que morava
na Glória.
— É muito longe, disse ele, para aceitar o
abrigo que naturalmente me quer oferecer. Eu esperarei aqui um tílburi.
— Mas a porta vai fechar-se, observou o
outro.
— Não importa, esperarei do lado de fora.
— Não é possível, insistiu o primeiro; a
chuva ainda está forte e pode aumentar mais. Não lhe ofereço abrigo até casa
porque moro na Prainha, que é justamente do lado oposto; mas posso cobri-lo até
ao Rocio, onde encontraremos um tílburi.
— É verdade, respondeu o rapaz que não tinha
guarda-chuva; não me havia ocorrido isto, aceito com prazer.
Saíram os dois rapazes e foram até ao Rocio.
Nem sombra de tílburi
ou caleça.
— Não admira, disse o rapaz do guarda-chuva;
foram todos com gente do teatro. Daqui a pouco haverá algum de volta...
— Mas eu não quisera dar-lhe o incômodo de o
reter mais tempo aqui à chuva.
— Cinco ou dez minutos, talvez; esperaremos.
A chuva veio contrariar estes bons desejos do
rapaz, caindo com furor. Mas o desejo de servir tem mil maneiras de se
manifestar. O rapaz do guarda-chuva propôs um meio excelente de escapar à chuva
e esperar condução: era ir tomar chá ao hotel que mais à mão lhes ficasse. O
convite não era mau; tinha só o inconveniente de vir de um desconhecido. Antes
de lhe responder, o rapaz sem guarda-chuva deitou um rápido olhar ao seu
companheiro, espécie de exame prévio da condição social da pessoa. Parece que a
achou boa, porque aceitou o convite.
— É levar muito longe a sua bondade, disse
ele, mas eu não posso deixar de abusar dela; a noite está inclemente.
— Eu também costumo esquecer o guarda-chuva,
e amanhã estarei nas suas mesmas circunstâncias.
Foram para o hotel e daí a pouco tinham
diante de si um excelente pedaço de rosbife frio, acompanhado de não menos
excelente chá.
— Há de desculpar a minha curiosidade, disse
o rapaz sem guarda-chuva; mas eu desejaria saber a quem devo a obsequiosidade
com que sou tratado há vinte minutos.
— Não somos inteiramente desconhecidos,
respondeu o outro; a sua memória é que é menos conservadora do que a minha.
— Donde me conhece?
— Do colégio. Andamos juntos no colégio Rosa...
— Andei lá, é verdade, mas...
— Não se lembra do Oliveira? Aquele que
trocava as réguas por laranjas? Aquele que desenhava com giz o retrato do
mestre nas costas dos outros meninos?
— Que me diz? É o senhor?
— De carne e osso; eu mesmo. Acha-me mudado,
não?
— Oh! muito!
— Não admira; eu era naquele tempo uma
criança rechonchuda e vermelha; hoje como vê, estou quase tão magro como D.
Quixote; e não foram trabalhos, porque eu não os tenho tido; nem desgostos, que
eu ainda não os experimentei. O senhor, porém, é que não mudou; se não fosse
esse pequeno bigode, pareceria o mesmo daquele tempo.
— E todavia não me hão faltado desgostos,
acudiu o outro; minha vida tem sido atribulada. A natureza tem destas coisas.
— Casou-se?
— Não; e o senhor?
— Também não.
A pouco e pouco começaram as confidências
pessoais; cada um narrou aquilo que podia narrar, por maneira que, ao fim da
ceia, pareciam tão íntimos como no tempo do colégio.
Sabemos destas revelações mútuas, que
Oliveira era bacharel em direito, e começava a advogar com pouco sucesso.
Herdara alguma coisa da avó, última parenta que conservara até então, tendo-lhe
morrido os pais antes de entrar na adolescência. Estava com certo desejo de
entrar na vida política e contava com a proteção de alguns amigos de seu pai,
para ser eleito deputado à Assembleia Provincial Fluminense.
Magalhães era o nome do outro; não herdara de
seus pais dinheiro, nem amigos políticos. Aos 16 anos, achou-se só no mundo;
exercera vários empregos de caráter particular, até que conseguira obter uma
nomeação para o Arsenal de Guerra, onde estava atualmente. Confessou que esteve
a ponto de enriquecer, casando com uma viúva rica; mas não revelou as causas
que lhe impediram essa mudança de fortuna.
A chuva cessara de todo. Já uma parte do céu
se havia descoberto deixando aparecer o rosto da lua cheia, cujos raios pálidos
e frios brincavam nas pedras e nos telhados úmidos.
Saíram os nossos dois amigos.
Magalhães declarou que iria a pé.
— Não chove mais, disse ele; ou, pelo menos,
nesta meia hora; vou a pé até à Glória.
— Pois bem, respondeu Oliveira; já lhe disse
o número da minha casa e do meu escritório; apareça lá algumas vezes; folgarei
de reatar as nossas relações da meninice.
— Também eu; até breve.
Despediram-se na esquina da Rua do Lavradio,
e Oliveira enfiou pela de São Jorge. Ambos foram pensando um no outro.
— Parece ser um excelente rapaz este
Magalhães, dizia o jovem advogado consigo; no colégio, foi sempre um menino
sério. Ainda o é agora, e até parece um pouco reservado, mas é natural porque
sofreu.
CAPÍTULO
2
Três dias depois, apareceu Magalhães no
escritório de Oliveira; falou na sala a um porteiro que lhe pediu o cartão.
— Não tenho cartão, respondeu Magalhães
envergonhado; esqueci-me de o trazer; diga-lhe que é o Magalhães.
— Queira esperar alguns minutos, tornou o
porteiro; ele está conversando com uma pessoa.
Magalhães assentou-se numa cadeira de braços,
enquanto o porteiro assoava silenciosamente o nariz e tomava uma pitada de
rapé, que lhe não ofereceu. Magalhães examinou detidamente as cadeiras, as
estantes, os quadros de gravuras, os capachos e as escarradeiras. A sua
curiosidade era minuciosa e sagaz; parecia estar avaliando o gosto ou a riqueza
de seu ex-colega.
Minutos depois, ouviu-se um rumor de
cadeiras, e não tardou que viesse da sala do fundo um velho alto e empertigado,
vestido com certo apuro, a quem o porteiro fez largos cumprimentos até o
patamar da escada.
Magalhães não esperou que o porteiro fosse
avisar Oliveira; atravessou o corredor que separava as duas salas e foi ter com
o amigo.
— Ora, viva! disse este apenas o viu entrar.
Estimo que não lhe houvesse esquecido a promessa. Sente-se; chegou a casa com
chuva?
— Começou a chuviscar, quando eu me achava a
dois passos da porta, respondeu Magalhães.
— Que horas são?
— Pouco mais de duas, creio eu.
— O meu relógio está parado, disse Oliveira,
lançando o olhar de esguelha para o colete de Magalhães, que não tinha relógio.
Naturalmente, ninguém mais me procurará hoje; e ainda que venham, quero
descansar.
Oliveira tocou a campainha apenas acabou de
proferir estas palavras. Veio o porteiro.
— Se vier alguém, disse Oliveira, não estou
cá.
O porteiro inclinou-se e saiu.
— Estamos livres de importunos, disse o
advogado, apenas o porteiro virou as costas.
Todas estas maneiras e palavras de simpatia e
cordialidade foram angariando a confiança de Magalhães, que começou a parecer
alegre e franco com o seu ex-colega.
Longa foi a conversa, que durou até às 4
horas da tarde. As 5 jantava Oliveira; mas o outro jantava às 3, e se o não
disse, era talvez por deferência, se não fosse por cálculo. Um jantar copioso e
escolhido não era melhor que o ramerrão culinário de Magalhães? Fosse uma ou
outra coisa, Magalhães suportou a fome com admirável denodo. Eram 4 horas da
tarde quando Oliveira deu acordo de si.
— Quatro horas! exclamou ele, ouvindo as
badaladas de um sino próximo. Naturalmente, já você perdeu a hora do jantar.
— Assim é, respondeu Magalhães; eu costumo
jantar às 3 horas. Não importa; adeus.
— Isso é que não; há de ir jantar comigo.
— Não; obrigado...
— Ande cá, jantaremos no hotel mais próximo,
porque a minha casa é longe. Eu ando com ideia de mudar de casa; estou muito
fora do centro da cidade. Vamos aqui ao Hotel de Europa.
Os vinhos eram bons; Magalhães gostava de
vinhos bons. No meio do jantar, tinha-se-lhe desenvolvido completamente a
língua. Oliveira fazia quanto podia para tirar ao amigo da infância toda
espécie de acanhamento. Isso e o vinho deram excelente resultado.
Desta ocasião em diante foi que Oliveira
começou a apreciar o ex-colega. Era Magalhães um rapaz de agudo espírito, boa
observação, conversador ameno, um pouco lido em obras fúteis e correntes.
Tinha, além disso, o dom de ser naturalmente insinuante. Com estas prendas
juntas não era difícil, era antes facílimo angariar as boas graças de Oliveira,
que, à sua extrema bondade, reunia uma natural confiança, ainda não diminuída
pelos cálculos da vida madura. Demais Magalhães tinha sido infeliz; esta
circunstância era aos olhos de Oliveira um realce. Finalmente, o seu ex-colega
já lhe confiara no trajeto do escritório ao hotel, que não contava um amigo
debaixo do sol. Oliveira queria ser esse amigo.
Qual importa mais à vida, ser Dom Quixote ou
Sancho Pança? O ideal ou o prático? A generosidade ou a prudência? Oliveira não
hesitava entre esses dois opostos papéis; nem sequer pensara neles. Estava no
período do coração.
Apertaram-se os laços da amizade entre os
dois colegas. Oliveira mudou-se para a cidade, o que deu azo a que os dois
amigos se encontrassem mais vezes. A frequência veio a uni-los ainda mais.
Oliveira apresentou Magalhães a todos os seus
amigos; levou-o à casa de alguns. A sua palavra afiançava o hóspede que, dentro
em pouco tempo, captava as simpatias de todos.
Nisto era Magalhães superior a Oliveira. Não
faltava ao advogado inteligência, nem maneiras, nem dom para se fazer estimado.
Mas os dotes de Magalhães superavam os dele. A conversa de Magalhães era mais
picante, mais variada, mais atraente. Há muito quem prefira a amizade de um
homem sarcástico, e Magalhães tinha seus longes de sarcástico.
Não se magoava com isto Oliveira, antes
parecia ter certa glória em ver que seu amigo obtinha por seu mérito a estima
dos outros.
Facilmente acreditará o leitor que estes dois
amigos se fizessem confidentes de todas as coisas, principalmente de coisas de
amores. Nada esconderam a este respeito um ao outro, com a diferença de que
Magalhães, não tendo amores atuais, confiou ao amigo apenas algumas proezas
antigas, ao passo que Oliveira, a braços com algumas aventuras, não dissimulou
nenhuma delas, e tudo contou a Magalhães.
E foi bem que o fizesse, porque Magalhães era
homem de bom conselho, dava ao amigo pareceres sensatos, que ele ouvia e
aceitava com grande proveito seu e para maior glória da recíproca amizade.
A dedicação de Magalhães ainda se manifestava
por outro modo. Não era raro vê-lo desempenhar um papel de conciliador,
auxiliar uma inocente mentira, ajudar o amigo em todas as dificuldades que o
amor depara aos seus alunos.
CAPÍTULO
3
Um dia de manhã, leu Oliveira, ainda na casa,
a notícia da demissão de Magalhães, impressa no Jornal do Comércio. Grande foi a sua mágoa, mas ainda maior que a
mágoa foi a raiva que esta notícia lhe causou. Demitir Magalhães! Oliveira mal
podia compreender este ato do ministro. O ministro era necessariamente tolo ou
tratante.
Havia patronato naquilo. Não seria pagamento
a algum eleitor solícito?
Estas e outras conjeturas preocuparam o
advogado até a hora do almoço. Almoçou pouco. O estômago acompanhava a dor do
coração.
Magalhães devia ir nesse dia ao escritório de
Oliveira. Com que ansiedade esperou este a hora marcada! Esteve a ponto de
faltar a um depoimento de testemunhas. Mas a hora chegou e Magalhães não
apareceu. Oliveira estava sobre brasas. Qual a razão da falta? Não atinava com
ela.
Eram quatro horas quando saiu do escritório,
e sua resolução imediata foi meter-se num tílburi e seguir para a Glória.
Assim o fez.
Quando lá chegou, estava Magalhães lendo um
romance. Não parecia abatido pelo golpe ministerial. Todavia não estava alegre.
Fechou o livro lentamente e abraçou o amigo.
Oliveira não podia conter a sua cólera.
— Lá vi hoje, disse ele, a notícia da tua
demissão. É uma patifaria sem nome...
— Por quê?
— Ainda o perguntas?
— Sim; por quê? O ministro é senhor dos seus
atos e responsável por eles; podia demitir-me e fê-lo.
— Mas fez mal, disse Oliveira.
Magalhães sorriu tristemente.
— Não podia deixar de o fazer, disse ele; um
ministro é muitas vezes um amanuense do destino, que só parece ocupar-se em me
perturbar a vida e multiplicar todos os esforços. Que queres? Eu já estou
acostumado, não resisto; dia virá em que estes golpes terão um termo. Dia virá
em que eu possa vencer a má fortuna de uma vez para sempre. Tenho o remédio nas
mãos.
— Deixa-te de tolices, Magalhães.
— Tolices?
— Mais que tolices; sê forte!
Magalhães abanou a cabeça.
— Não custa aconselhar fortaleza, murmurou
ele; mas quem tem sofrido como eu...
— Já não contas com os amigos?
— Os amigos não podem tudo.
— Muito obrigado! Eu te mostrarei se podem.
— Não te iludas, Oliveira; não te esforces a
favor de um homem que a sorte condenou.
— Histórias!
— Sou um condenado.
— És um fracalhão.
— Acreditas que eu...
— Acredito que és um fracalhão, e que não
pareces aquele mesmo Magalhães que sabe conservar o sangue frio em todas as
ocasiões graves. Descansa, eu tirarei desforra brilhante. Antes de quinze dias
estarás empregado.
— Não creias...
— Desafias-me?
— Não; bem conheço de que é capaz teu coração
nobre e generoso... mas...
— Mas o quê?
— Receio que a má fortuna seja mais forte do
que tu.
— Verás.
Oliveira deu um passo para a porta.
— Nada disso impede que venhas jantar comigo,
disse ele, voltando-se para Magalhães.
— Obrigado; já jantei.
— Anda ao menos comigo para ver se te
distrais.
Magalhães recusou; mas Oliveira insistiu com
tão boa vontade que não havia recusar.
Durante a noite seguinte, meditou Oliveira
acerca do negócio de Magalhães. Tinha amigos importantes, os mesmos que
forcejavam por lhe abrir carreira política. Oliveira pensou neles como os mais
próprios para levar a cabo a obra de seus desejos. O grande caso para ele era
empregar Magalhães, em cargo tal que despicasse da prepotência ministerial. O
substantivo prepotência era a exata expressão de Oliveira.
Não lhe ocultaram os amigos que o caso não
era fácil; mas prometeram que a dificuldade seria vencida. Não se dirigiram ao
ministro da Guerra, mas a outro; Oliveira pôs em campo o recurso feminino. Duas
senhoras de seu conhecimento foram em pessoa falar ao ministro, em favor do
feliz candidato.
Não negou o digno membro do poder executivo a
dificuldade de criar um lugar para dar ao pretendente. Seria cometer a injustiça
de tirar o pão a empregados úteis ao país.
Instavam, porém, os padrinhos, audiências e
cartas, pedidos de toda sorte; nada ficou por empregar em favor de Magalhães.
Depois de cinco dias de lutas e solicitações
diárias, declarou o ministro que poderia dar um bom emprego a Magalhães na
Alfândega de Corumbá. Já era boa vontade da parte do ministro, mas os
protetores de Magalhães recusaram a graça.
— O que se deseja de vossa excelência, disse
um deles, é que o nosso afilhado seja empregado aqui mesmo na Corte. Vai nisso
uma questão de honra, e uma questão de comodidade.
Tinha boa vontade o ministro, e entrou a
cogitar no meio de acomodar o pretendente. Havia em uma das repartições a seu
cargo um empregado que durante o ano faltava muitas vezes ao ponto, e na última
peleja eleitoral votara contra o ministro. Caiu-lhe uma demissão em casa, e
para evitar empenhos mais fortes, no mesmo dia em que apareceu a demissão do
empregado vadio, apareceu a nomeação de Magalhães.
Foi o próprio Oliveira que levou a Magalhães
o desejado decreto.
— Dá-me cá um braço, disse ele, e reza aí um mea culpa. Venci o destino. Estás
nomeado.
— Quê! será possível?
— Aqui tens o decreto!
Magalhães caiu nos braços de Oliveira.
A gratidão de quem recebe um benefício é
sempre menor que o prazer daquele que o faz. Magalhães exprimia todo seu
reconhecimento pela dedicação e perseverança de Oliveira; mas a alegria de
Oliveira não tinha limites. A explicação desta diferença está talvez neste
fundo de egoísmo que há em todos nós.
Em todo caso, a amizade dos dois ex-colegas
ganhou com isso maior solidez.
CAPÍTULO
4
O novo emprego de Magalhães era muito melhor
que o primeiro em categoria e lucro.
De maneira que a demissão, longe de lhe ser
um golpe funesto do destino, foi um lance de melhor fortuna.
Passou Magalhães a ter melhor casa e a
alargar um pouco mais a bolsa, pois que a tinha agora mais farta que dantes;
Oliveira observava esta mudança e regozijava-se com a ideia de que contribuíra
para ela.
A vida de ambos continuaria por este teor,
plácida e indiferente, se um acontecimento não a viesse perturbar de repente.
Um dia achou Magalhães que Oliveira parecia
preocupado. Perguntou-lhe francamente o que era.
— Que há de ser? disse Oliveira. Eu sou um
miserável nessas coisas de amores; estou apaixonado.
— Queres que te diga uma coisa?
— O quê?
— Acho que fazes mal em diluir o teu coração
com essas mulheres.
— Que mulheres?
— Essas.
— Não me compreendes, Magalhães; a minha
atual paixão é séria; amo uma menina honesta.
— Que mágoas então são essas? Casa-te com
ela.
— Esse é o ponto. Creio que ela não me ama.
— Ah!
Houve um silêncio.
— Mas não te resta esperança nenhuma?
perguntou Magalhães.
— Não posso dizer isso; não penso que ela
seja sempre esquiva ao meu sentimento; mas por ora nada há entre nós.
Magalhães entrou a rir.
— Pareces-me calouro, homem! disse ele.
Quantos anos tem ela?
— Dezessete.
— A idade da inocência; suspiras em silêncio
e queres que ela te adivinhe. Nunca chegarás ao cabo. Tem-se comparado o amor à
guerra. Assim é. No amor, querem-se atos de bravura como na guerra. Avança
afoitamente e vencerás.
Oliveira ouvia estas palavras com a atenção
de um homem sem iniciativa, a quem todo conselho serve. Confiava no juízo de
Magalhães e o parecer dele era razoável.
— Parece-te então que eu devo expor-me?
— Sem dúvida.
O advogado referiu depois todas as
circunstâncias do seu encontro com a moça em questão. Pertencia a uma família
com quem esteve em casa de terceiro; o pai era um excelente homem, que o convidou
a frequentar a casa, e a mãe uma excelente senhora que ratificou o convite do
marido. Oliveira não tinha ido lá depois disso, porque, segundo imaginava, a
moça não correspondia à sua afeição.
— És um tolo, disse Magalhães quando o amigo
acabou a narração. Vês a rapariga num baile, ficas gostando dela, e só porque
ela não te caiu logo nos braços, desistes de lhe frequentar a casa. Oliveira,
tem juízo: vai à casa dela, e dir-me-ás daqui a pouco tempo se te não aproveita
o conselho. Queres casar, não?
— Oh! podias pôr em dúvida?...
— Não; é uma pergunta. Não é casamento
romântico?
— Que queres dizer com isso?
— Ela é rica?
Oliveira franziu a testa.
— Não te zangues, disse Magalhães. Eu não sou
nenhum espírito rasteiro; também conheço as delicadezas do coração. Nada vale
mais que um amor verdadeiro e desinteressado. Não se me há de censurar, porém,
que eu procure ver o lado prático das coisas; um coração de ouro vale muito;
mas um coração de ouro com ouro vale mais.
— Cecília é rica.
— Pois tanto melhor!
— Afianço-te, porém, que essa consideração...
— Não precisas afiançar nada; eu bem sei o
que vales, disse Magalhães apertando as mãos de Oliveira. Anda, meu amigo, não
te detenho; procura a tua felicidade.
Animado por estes conselhos, tratou Oliveira
de sondar o terreno para declarar a sua paixão. Omiti de propósito a descrição
de Cecília feita por Oliveira ao seu amigo Magalhães. Não desejava exagerar aos
olhos dos leitores a beleza da moça, que a um namorado parece sempre maior do
que realmente é. Mas Cecília era realmente formosa. Era uma beleza, uma flor em
toda a extensão da palavra. Todas as forças e fulgores da mocidade estavam
nela, que apenas saía da adolescência e parecia anunciar longa e esplêndida
juventude. Não era alta, mas também não era baixa. Era acima de meã. Era muito
corada e viva; tinha uns olhos brilhantes e buliçosos, olhos de namorada ou
namoradeira; era talvez um pouco afetada, mas deliciosa; tinha certas
exclamações que lhe ficavam bem nos seus lábios finos e úmidos.
Oliveira não viu logo todas estas coisas na
noite em que lhe falou; mas não tardou que ela se lhe revelasse assim, desde
que começou a frequentar a casa dela.
Nisto era Cecília ainda um pouco criança; não
sabia dissimular, nem era difícil captar-lhe a confiança. Mas, através das
aparências de frivolidade e volubilidade, descobria-lhe Oliveira sólidas
qualidades do coração. O contato redobrou o seu amor. No fim de um mês,
Oliveira parecia perdido por ela.
Magalhães continuava a ser o conselheiro de
Oliveira e o seu único confidente. Um dia, pediu-lhe o namorado que fosse com
ele à casa de Cecília.
— Tenho medo, disse Magalhães.
— Por quê?
— Sou capaz de precipitar tudo, e isso não
sei se será conveniente antes de conhecer bem o terreno. Em qualquer caso, não
é mau que eu vá examinar por mim mesmo as coisas. Irei quando quiseres.
— Amanhã?
— Seja amanhã.
No dia seguinte, Oliveira apresentou
Magalhães em casa do Comendador Vasconcelos.
— É o meu melhor amigo, disse Oliveira.
Na casa de Vasconcelos já estimavam o
advogado; esta apresentação bastava para recomendar Magalhães.
CAPÍTULO
5
O Comendador Vasconcelos era um velho
folgazão. Estouvado na mocidade, não o era menos na velhice. O estouvamento na
velhice é, por via de regra, um senão; todavia, o estouvamento de Vasconcelos
tinha um toque peculiar, um caráter todo seu, por modo que era impossível
compreender aquele velho sem aquele estouvamento.
Contava já seus cinquenta e oito anos, e
andaria lépido como um rapaz de vinte anos, se não fosse uma volumosa barriga
que, desde os quarenta anos, lhe começara a crescer com grave desdouro das suas
graças físicas, que as tinha, e sem as quais era duvidoso que a Sra. D. Mariana
houvesse casado com ele.
D. Mariana, antes de casar, professava um
princípio seu: o casamento é um estado vitalício; cumpre não precipitar a
escolha do noivo. Pelo que, rejeitou três pretendentes que, apesar de suas boas
qualidades, tinham um defeito físico importante: não eram bonitos. Vasconcelos
alcançou o seu Austerlitz onde os outros haviam achado Waterloo.
Salvante a barriga, Vasconcelos era ainda um
belo velho, uma ruína magnífica. Não tinha paixões políticas: votara
alternadamente com os conservadores e os liberais para contentar os amigos que
tinha em ambos os partidos. Conciliava as opiniões sem arriscar as amizades.
Quando a acusavam deste ceticismo político,
respondia com uma frase que, se não discriminava as suas opiniões, abonava o
seu patriotismo:
— Somos todos brasileiros.
Quadrava o gênio de Magalhães com o de
Vasconcelos. A intimidade não tardou muito. Já sabemos que o amigo de Oliveira
tinha a grande qualidade de se fazer querido com pouco trabalho. Vasconcelos
morria por ele; achava-lhe imensa graça e sólido juízo. D. Mariana chamava-lhe
a alegria da casa; Cecília não tinha mais condescendente conversador.
Para os fins de Oliveira era excelente.
Não se descuidou Magalhães de sondar o
terreno, a ver se podia animar o amigo. Achou o terreno excelente. Falou uma
vez à moça a respeito do amigo e ouviu-lhe palavras de animadora esperança.
Parece-me ser, disse ela, um excelente coração.
— Afirmo que o é, disse Magalhães; conheço-o
há muito tempo.
Quando Oliveira soube destas palavras, que
não eram muita coisa, ficou muito animado.
— Creio que posso ter esperanças, disse ele.
— Nunca te disse outra coisa, respondeu
Magalhães.
Magalhães nem sempre podia servir aos
interesses do amigo, porque Vasconcelos, a quem caíra em graça, confiscava-o
horas inteiras, ou palestrando, ou jogando o gamão.
Um dia Oliveira perguntou ao amigo se era
conveniente arriscar uma carta.
— Ainda não, deixa-me preparar a coisa.
Oliveira acedeu.
A quem ler estas páginas muito por alto,
parecerá inverossímil da parte de Oliveira semelhante necessidade de um
cicerone.
Não é.
Oliveira nenhuma demonstração dera até ali à
moça, que se conservava ignorante do que se passava dentro dele; e se assim
praticava, era por um excesso de timidez, fruto de suas proezas com mulheres de
outra classe.
Nada intimida mais a um conquistador de
mulheres fáceis do que a ignorância e a inocência de uma donzela de dezessete
anos.
Acresce que, se Magalhães era de opinião que
ele não se demorasse em expor os seus sentimentos, já agora pensava que era
melhor não arriscar golpe sem certeza do resultado.
A dedicação de Magalhães também parecerá
condescendente aos espíritos severos. Mas a que se não expõe a verdadeira
amizade?
Na primeira ocasião que se lhe deparou,
tratou Magalhães de perscrutar o coração da moça.
Era de noite; havia gente em casa. Oliveira
estava ausente. Magalhães conversava com Cecília a respeito de um chapéu com
que uma senhora idosa entrara na sala.
Magalhães fazia a respeito do chapéu mil
conjeturas burlescas.
— Aquele chapéu, dizia ele, parece-me um
ressuscitado. Houve naturalmente alguma epidemia de chapéus em que morreu
aquele, acompanhado de outros seus irmãos. Aquele ressuscitou, para vir dizer a
este mundo o que é o paraíso dos chapéus.
Cecília reprimia uma risada.
Magalhães continuava:
— Eu, se fosse aquele chapéu, pedia uma
pensão como inválido e como raridade.
Isto era mais burlesco que picante, mais
estúrdio que engraçado; todavia, fazia rir Cecília. Repentinamente, Magalhães
ficou sério e consultou o relógio.
— Já se vai embora? perguntou a moça.
— Não, senhora, disse Magalhães.
— Guarde então o relógio.
— Admira-me que Oliveira ainda não viesse.
— Virá mais tarde. Os senhores são muito
amigos?
— Muito. Conhecemo-nos desde crianças. É uma
bela alma.
Houve um silêncio.
Magalhães cravou os olhos na moça, que olhava
para o chão, e disse:
— Feliz aquela que o possuir.
A moça não revelou a menor impressão ao ouvir
estas palavras de Magalhães. Ele repetiu a frase, e ela perguntou se não seriam
horas de tomar chá.
— Já amou, D. Cecília? perguntou Magalhães.
— Que pergunta é essa?
— É uma curiosidade.
— Nunca amei.
— Por quê?
— Sou muito criança.
— Criança!
Outro silêncio.
— Conheço alguém que a ama muito.
Cecília estremeceu e ficou muito corada; não
respondeu nem se levantou. Para sair, porém, da situação em que as palavras de
Magalhães a deixara, disse rindo:
— Essa pessoa... quem é?
— Quer saber o nome?
— Quero. É seu amigo?
— É.
— Diga o nome.
Outro silêncio.
— Promete não ficar zangada comigo?
— Prometo.
— Sou eu.
Cecília esperava ouvir outra coisa; esperava
ouvir o nome de Oliveira. Qualquer que fosse a sua inocência, tinha percebido
naqueles últimos dias que o rapaz tinha queda por ela. Da parte de Magalhães
não esperava semelhante declaração; todavia, o seu espanto não foi de cólera,
apenas surpresa.
A verdade é que ela não amava nenhum deles.
Não tendo a moça respondido logo, Magalhães
disse com um sorriso benévolo:
— Já sei que ama outro.
— Que outro?
— Oliveira.
— Não.
Era a primeira vez que Magalhães apresentava
um aspecto grave; penalizada com a ideia de que lhe houvesse com o silêncio
causado alguma tristeza, que ela adivinhava, posto que não sentisse, Cecília
disse ao fim de alguns minutos:
— O senhor está brincando comigo?
— Brincando! disse Magalhães. Tudo quanto
quiser, menos isso; não se brinca com o amor ou o sofrimento. Já lhe disse que
a amo; responda-me francamente se posso nutrir alguma esperança.
A moça não respondia.
— Não poderei viver ao pé da senhora sem uma
esperança, embora remota.
— O papá é quem decide de mim, disse ela
desviando a conversa.
— Pensa que eu sou desses corações que se
contentam com o consentimento paterno? O que eu desejo possuir primeiro é o seu
coração. Diga-me: posso esperar essa fortuna?
— Talvez, murmurou a menina, levantando-se
envergonhada dessa singela palavra.
CAPÍTULO
6
Era a primeira declaração que Cecília ouvia
da boca de um homem. Não estava preparada para ela. Tudo o que ouvira lhe
causara um inexplicável alvoroço.
Posto que não amasse nenhum dos dois,
apreciava ambos os rapazes, e não seria difícil que cedesse ao pedido de um
deles e viesse a amá-lo apaixonadamente.
Dos dois rapazes, o que mais depressa
conseguiria vencer, dado o caso que se declarassem ao mesmo tempo, era sem
dúvida Magalhães, cujo espírito galhofeiro e presença insinuante deviam influir
mais no espírito da moça.
Minutos depois da cena narrada no capítulo
anterior, já os olhos de Cecília procuravam os de Magalhães, mas rapidamente,
sem se demorar neles; todos os sintomas de um coração que não se demorará em
ceder.
Magalhães tinha a vantagem de conservar todo
o sangue frio no meio da situação que se lhe apresentava, e isso era excelente
para não descobrir aos olhos estranhos o segredo que ele tinha interesse em
conservar.
Pouco depois, entrou Oliveira. Magalhães
deu-se pressa em o chamar de parte.
— Que há? perguntou Oliveira.
— Boas notícias.
— Falaste-lhe?
— Positivamente não; mas encaminhei o negócio
de maneira que talvez em poucos dias tenha a tua situação mudado completamente.
— Mas que houve?
— Falei-lhe de amores; ela pareceu
indiferente a essas ideias; disse-lhe então gracejando que a amava...
— Tu?
— Sim. De que te admiras?
— E que disse ela?
— Riu-se. Então perguntei-lhe velhacamente se
amava alguém. E ela a isto respondeu que não, mas por modo que me parecia uma
afirmativa. Deixa o caso por minha conta. Amanhã, desfaço a meada; digo-lhe que
eu estava brincando... Mas paremos aqui, que aí vem o Comendador.
Efetivamente Vasconcelos chegara à janela
onde os dois estavam. Uma das manias de Vasconcelos era comentar durante o dia
todas as notícias que os jornais publicavam de manhã. Os jornais daquele dia
falavam de um casal encontrado morto num quarto da casa em que residia.
Vasconcelos desejava saber se os dois amigos optavam pelo suicídio,
circunstância esta que o levaria a adotar a hipótese do assassinato.
Foi esta conversa uma completa diversão ao
assunto amoroso, e Magalhães aproveitou o debate entre Oliveira e Vasconcelos
para ir conversar com Cecília.
Falaram de coisas indiferentes, mas Cecília
estava menos expansiva; Magalhães supôs a princípio que fosse um sintoma de
esquivança; não era. Bem o notou ele quando, ao sair, Cecília correspondeu energicamente
ao seu apertado aperto de mão.
— Pensas que serei feliz, Magalhães?
perguntou Oliveira apenas se acharam na rua.
— Penso.
— Não imaginas que dia passei hoje.
— Não hei de imaginar!
— Olha, nunca pensei que esta paixão pudesse
dominar tanto a minha vida.
Magalhães animou o rapaz, que o convidou a
cear, não porque o amor lhe deixasse largo campo às exigências do estômago,
senão porque havia jantado pouco.
Eu peço perdão aos meus leitores, se entro
nestas explicações a respeito da comida.
Quer-se um herói romântico, acima das
necessidades vulgares da vida humana; mas não posso deixar de as mencionar, não
por sistema, mas por ser fiel à história que estou contando.
A ceia foi alegre, porque Magalhães e a
tristeza eram incompatíveis. Oliveira, apesar de tudo, comeu pouco, Magalhães
largamente. Entendia que lhe cumpria pagar a ceia; mas o amigo não consentiu
nisso.
— Olha, Magalhães, disse Oliveira ao
despedir-se dele. A minha felicidade está nas tuas mãos; és capaz de dar conta
dela?
— Não se devem prometer coisas tais; o que eu
te afirmo é que não pouparei esforços.
— E pensas que serei feliz?
— Quantas vezes queres que to diga?
— Adeus.
— Adeus.
No dia seguinte, Oliveira mandou dizer a
Magalhães que estava um pouco incomodado. Magalhães foi visitá-lo.
Achou-o de cama.
— Estou com alguma febre, disse o advogado;
dize isto mesmo ao Comendador, a quem eu prometi de ir lá hoje.
Magalhães cumpriu o pedido.
Era a ocasião de se manifestar a dedicação de
Magalhães. Não faltou este moço a tão sagrado dever. Passava com Oliveira a
tarde e as noites e só se separava dele para ir, às vezes, à casa de Vasconcelos,
que era isso mesmo o que Oliveira lhe pedia.
— Fala-lhe sempre de mim, dizia Oliveira.
— Não faço outra coisa.
E assim era. Magalhães não cessava de dizer
que vinha ou ia para casa de Oliveira, cuja doença ia tomando um aspecto grave.
— Que amigo! murmurava consigo D. Mariana.
— O senhor é um bom coração, dizia
Vasconcelos apertando as mãos de Magalhães.
— O senhor Oliveira deve querer-lhe muito,
dizia Cecília.
— Como a um irmão.
A doença de Oliveira era grave; durante todo
o tempo que durou, não se desmentiu nunca a dedicação de Magalhães.
Oliveira admirava-o. Via que o benefício que
lhe fizera não caíra em má terra. Grande foi a sua alegria quando, ao começar a
convalescença, Magalhães lhe pediu duzentos mil-réis, com promessa de os pagar
no fim do mês.
— Quanto quiseres, meu amigo. Tira-os ali da
secretária.
— Acredita que isto me vexa imensamente,
disse Magalhães, metendo na algibeira duas notas de cem mil-réis. Nunca te pedi
dinheiro; agora, menos que nunca, devia pedir-to.
Oliveira compreendeu o pensamento do amigo.
— Não sejas tolo; a nossa bolsa é comum.
— Oxalá que esse belo princípio possa ser
realizado literalmente, disse Magalhães rindo.
Oliveira não lhe falou nesse dia a respeito
de Cecília. Foi o próprio Magalhães que encetou a respeito dela uma conversa.
— Queres ouvir uma coisa? disse ele. Apenas
saíres, manda-lhe uma carta.
— Por quê? Crês que...
— Creio que é a hora do golpe.
— Só para a semana poderei sair.
— Não importa, virá a tempo.
Para compreender bem a situação singular em
que se achavam estes personagens todos, é mister transcrever aqui as palavras
com que nessa mesma noite se despediram Magalhães e Cecília à janela da casa
desta:
— Até amanhã, disse Magalhães.
— Virás cedo?
— Venho às 8 horas.
— Não faltes.
— Queres que te jure?
— Não precisa; adeus.
CAPÍTULO
7
Quando entrou a semana seguinte, já na
véspera do dia em que Oliveira se dispunha a sair e visitar o Comendador,
recebeu uma carta de Magalhães.
Leu-a com pasmo:
“Meu querido amigo, dizia Magalhães; desde
ontem tenho a cabeça fora de mim. Aconteceu-me a maior desgraça que podia cair
sobre nós. Com mágoa e vergonha to anuncio, meu prezadíssimo amigo, a quem
tanto devo.
“Prepara o teu coração para receber o golpe
que já me feriu, e por muito que ele te faça sofrer, não sofrerás mais do que
eu já sofri...”
Saltaram duas lágrimas dos olhos de Oliveira.
Adivinhava mais ou menos o que seria. Cobrou
forças e continuou a leitura:
“Descobri, meu querido amigo, que Cecília
(como direi?) que Cecília me ama! Não imaginas como me fulminou esta notícia.
Que ela não te amasse, como ambos desejávamos, era já doloroso; mas que se
lembrasse de consagrar os seus afetos ao último homem que ousaria opor-se ao
seu coração, é uma ironia da fatalidade. Não te contarei meu procedimento;
facilmente o adivinharás. Prometi não voltar lá mais.
“Queria ir eu mesmo comunicar-te isto; mas
não ouso contemplar a tua dor, nem te quero dar o espetáculo da minha.
“Adeus, Oliveira. Se a fatalidade ainda
consentir que nos vejamos (impossível!), até um dia; se não... Adeus!”
Adivinha o leitor o golpe que esta carta
descarregou no coração de Oliveira. Mas é nas grandes crises que o espírito do
homem se mostra grande. A dor do amante superada pela dor do amigo. O final da
carta de Magalhães aludia vagamente a um suicídio; Oliveira deu-se pressa em ir
impedir esse ato de nobre abnegação. Demais, que coração tinha ele, a quem
confiasse todos os seus desesperos?
Vestiu-se apressadamente e correu à casa de
Magalhães.
Disseram-lhe que não estava em casa.
Oliveira ia subindo:
— Perdão, disse o criado; eu tenho ordem de
não deixar subir ninguém.
— Razão demais para eu subir, respondeu
Oliveira, afastando o criado.
— Mas...
— Trata-se de uma grande desgraça!
E subiu apressadamente a escada.
Na sala, não havia ninguém. Oliveira entrou
afoitamente no gabinete. Achou Magalhães sentado à secretária inutilizando
alguns papéis.
Perto dele havia um copo com um líquido
vermelho.
— Oliveira! exclamou ele, quando o viu
entrar.
— Sim, Oliveira, que vem salvar a tua vida, e
dizer-te quanto és grande!
— Salvar-me a vida? murmurou Magalhães; quem
te disse que eu?...
— Tu, na tua carta, respondeu Oliveira.
Veneno! continuou ele, vendo o copo. Oh! nunca!
E despejou o copo na escarradeira.
Magalhães parecia atônito.
— Eia! disse Oliveira; dá cá um braço! Este
amor infeliz foi ainda um lance de felicidade, porque conheci bem que coração
de ouro é esse que te bate no peito.
Magalhães estava de pé; caíram nos braços um
do outro. O abraço comoveu Oliveira, que só então deu largas à sua dor. O amigo
consolou-o como pôde.
— Bem, disse Oliveira, tu que foste causa
indireta da minha desgraça, deves ser agora o remédio que me há de curar. Sê
eternamente meu amigo.
Magalhães suspirou.
— Eternamente! disse ele.
— Sim.
— Minha vida é curta, Oliveira; eu devo
morrer; se não for hoje, sê-lo-á amanhã.
— Mas isso é uma loucura.
— Não é: eu não te disse tudo na carta.
Falei-te do amor que Cecília me tem; não te falei do amor que lhe tenho eu,
amor que me nasceu sem eu pensar. Brinquei com fogo, queimei-me.
Oliveira curvou a cabeça.
Houve um longo silêncio entre os dois amigos.
Ao cabo de um longo quarto de hora, Oliveira
ergueu os olhos vermelhos de lágrimas e disse a Magalhães, estendendo-lhe a mão:
— Sê feliz, que o mereces; não tens culpa
disto. Procedeste honradamente; compreendo que era difícil estar ao pé dela sem
sentir o fogo da paixão. Casa-te com Cecília, pois que se amam, e fica certo de
que serei sempre o mesmo amigo.
— Oh! tu és imenso!
Magalhães não ajuntou nenhum substantivo a
este adjetivo. Não nos é dado perscrutar o seu pensamento interior. Caíram os
dois amigos nos braços um do outro com grandes exclamações e protestos.
Uma hora depois de ali haver entrado, saía
Oliveira triste mas consolado.
— Perdi um amor, dizia ele consigo, mas
ganhei um verdadeiro amigo, que já o era antes.
Magalhães veio logo atrás dele.
— Oliveira, disse ele, passaremos o dia
juntos; receio que faças alguma loucura.
— Não! o que me ampara nesta queda és tu.
— Não importa; passaremos o dia juntos.
Assim aconteceu.
Neste dia, não foi Magalhães à casa do
Comendador.
No dia seguinte, apenas lá apareceu,
disse-lhe Cecília:
— Estou zangada contigo; por que não vieste
ontem?
— Tive de sair da cidade em serviço público e
por lá fiquei a noite.
— Como passaste?
— Bem.
Seis semanas depois uniam eles os seus
destinos. Oliveira não compareceu à festa com grande admiração de Vasconcelos e
de D. Mariana, que não compreendiam essa indiferença da parte de um amigo.
Nunca houve a menor sombra de dúvida entre
Magalhães e Oliveira.
Foram amigos até à morte, posto que Oliveira
não frequentasse a casa de Magalhães.
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