Agaricus Auditae
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Alexandre Ventura Soares tinha
seus vinte e cinco anos, bacharel em ciências físicas e naturais, era
preparador do Museu de História Natural, cargo que, obtido em concurso, lhe
dera direito a uma viagem à Europa, nos tempos em que as subvenções para isso
largamente se distribuíam, razão pela qual eram equitativa e sabiamente feitas.
De volta, por acaso, viera a morar defronte de um homem de idade, venerável,
que vivia, pelo jardim de sua vasta casa, a catar pedrinhas no chão. Curioso
com os trejeitos do homem, pôs-se a observá-lo, a fim de descobrir o que
significavam. Visou a Ásia e encontrou no caminho a América. El Levante por el
Poniente... A filha do ancião, muito naturalmente, pouco afeita a curiosidades
sobre o seu jardim que não tivessem a ela por objeto, supôs que o doutor
estivesse apaixonado por ela. Nenê, era o seu apelido familiar, sabia que o
rapaz era dado a coisas de botânica; que pertencia ao museu; que o tratavam de
doutor; logo não se podia tratar senão de um médico.
A nossa mentecapta inteligência
nacional, de que não fazem parte só as mulheres, não admite que tratem de
botânica senão os médicos; e de matemática os engenheiros; quando, em geral, nem
uns nem outros se preocupam em tais coisas.
Ela, porém, vivendo em círculo
restrito, não tendo estudos especiais, convivências outras que não essa da
sociedade, fossilizadas de cérebro e com receitas de formulário na cabeça, não
podia ter outra opinião que a geral na nossa terra, de cima a baixo. Aquele
moço era por força doutor em medicina ou, no mínimo, estudante. Quando soube
que não, teve uma ponta de despeito; e custou-lhe a crer que fosse tão formado
como outro qualquer doutor. Foi o próprio pai quem a convenceu.
Oh! filha! filha! Pois não sabias
disso? Pois eu estimo muito saber que tenho na vizinhança um sábio.
O desembargador Monteiro, pai da
Nenê, estava aposentado e tinha a mania da mineralogia. Ele mal conhecia o
primeiro sistema de cristalografia; mas não lhe deixava a teima. Tinha um
laboratório onde não havia nem uma balança de Jolly, nem um maçarico, nem um
bico de Bunsen, nem um reativo, nem um pedaço de carvão vegetal; mas quando
mostrava aos visitantes, exclamava ufano:
— Vejam como tenho livros! Vejam!
Tenho o Hauy, as suas duas obras; a Estrutura
dos cristais e a Mineralogia,
primeiras edições... Olhem aqui Delafosse! Seis volumes! Hein?
E assim mostrava toda a sua
biblioteca de mineralogia sistemática e descritiva. Chegava a um canto, onde
havia uma pequena bigorna de ourives, montada em um forte soco de pau, tendo a
um dos lados um pesado martelo de carpinteiro; e observava:
— É aqui que trabalho há anos...
Ainda não consegui isolar uma granada de granito... No entanto, eu as vejo em
quase todas as pedras da rua sobre que ponho os pés.
Foi esta mania de procurar
granadas nas pedras da rua que chamou a atenção do jovem naturalista seu
vizinho. Se Monteiro lobrigava uma granada por menor que fosse, nas pedras
soltas do seu caminho, logo apanhava o pedregulho, levando-o para casa, e
martelava-o naquela bigorna de fazer pulseiras, à cata da pedrinha
vermelha-rubra; mas, fosse por isso ou por aquilo, a granada se escafedia e o
nosso mineralogista ficava desolado. Só os paralelepípedos do pavimento das
ruas lhe escapavam; mas, assim mesmo, quando estivessem ajustados aos outros;
se soltos, ele pagava a algum moleque para levar um ou outro à sua casa.
Sua filha, dona Nenê, ficou muito
contente; e o jovem botanista não teve nenhuma dificuldade em obter a sua mão.
O velho desembargador disse-lhe unicamente:
— Bem. Não há dúvida. O doutor
tem com certeza um futuro brilhante; mas, ainda não demonstrou para que veio ao
mundo. Já escreveu uma "memória"?
— Não, senhora.
— Faz mal. Na Alemanha, é muito
usado... A "memória” demonstra sagacidade para o novo, para o detalhe
inédito, inexplorado, um ponto de vista que houvesse escapado aos sábios e
grandes mestres... Eu queria que meu futuro genro merecesse minha filha dessa
maneira, porque, na Alemanha...
— Mas o senhora desembargador há
de me permitir uma pergunta?
— Pois não.
— A que sociedade ou academia
deveria eu apresentar a minha memória?
— Não há negá-lo: a sua objeção
procede. Não havendo entre nós academias especiais a semelhantes ciências,
havia, portanto, embaraço em achar quem julgasse o mérito ou demérito do seu
trabalho. As que há, ou são de uns ignorantes literatos que nunca viram uma
granada em uma pedra, ali, da pedreira no rio Comprido, ou são formadas por uns
médicos faladores que têm pretensões a literatos. Mas... acontece que os
senhores não conhecem bem o Brasil, senão saberiam que existe uma academia
respeitável e egrégia, não só pelos vários ramos de ciências naturais nela
cultivados, como também pelo número de sábios mortos e vivos a ela
pertencentes, que mereciam ser conhecidos pelo senhora que governa a sua
mocidade nobre pela inteligência e pelo estudo. Então não conhece o senhora a
"Academia dos Esquecidos"?
— Não!
— É de admirar! Pois, creia-me,
dela, além dos atuais, fizeram e fazem parte ainda: Alexandre Ferreira,
Conceição Veloso, Gomes de Sousa, o doutor José Maurício Nunes Garcia, Domingos
Freire, Tito Lívio de Castro, Morais e Vale, José Bonifácio...
—José Bonifácio, dos Esquecidos!
— Sim! Aquele mineralogista que
depois foi político. E como não?
— Ah!
— Compreende-me, agora? Pois bem.
Atualmente, presido eu a academia, disse o desembargador com ênfase; e espero
que, como um paladino, ofereça à sua noiva a árdua vitória de fazer parte dela:
Está aqui a minha mão, Nenê...
Os três sábios despediram-se tocantemente;
faltou porém, o quarto sábio. Talvez fosse o único que não levasse n'alma
engano cego; mas a pequena levou, creio, durante o primeiro ano.
Na rua, monologava Soares: um
caso novo, um detalhe original, onde hei de buscá-los? Fui bom estudante e,
talvez, por isso, nunca supus que, na ciência, houvesse novidade. Tudo já
estava feito e, quando não estava, quando se queria coisa nova, compravam-se as
revistas estrangeiras e lá estava a coisa digeridinha. E — que diabo! — para
que havia eu de aumentar a dificuldade dos estudantes? Não bastavam os
europeus, os tais alemães? Já que era preciso descobrir ou inventar para casar,
vá lá! Mas não era já suficiente ser "doutor" para casar? Ainda mais
esta! Até o que se havia de pedir para casar bem! Ora bolas! Estou quase
desistindo... Não! É preciso ter-se uma posição decente na sociedade, um bom
casamento, se não rico, pelo menos semi-rico... Se não descubro, forjico
qualquer coisa e a ciência que se amole... A ciência é um enfeite; é assim como
este anel de safira.
E olhou para a pedra quase tão
dura como o diamante, a qual não esmaeceu em nada ao seu olhar feroz de
cupidez...
Resolveu-se Soares a escrever
sobre mineralogia: Rochas metamórficas do
Brasil ou O veio de petrossílex do
Corcovado; mas isto, considerava, não é novo e muito menos é meu. O jovem
sábio foi dormir, julgando ter perdido a menina rica, a importância de genro do
desembargador Monteiro, e a sua entrada na Academia dos Esquecidos.
Buffon afirmou alhures que alguns
volumes da sua monumental História
natural, ele os devia ao seu criado. Soares deveu a sua "memória"
e a sua felicidade ao seu criado José. Despertou-o este bem cedo, muito a
contragosto dele. Leu os jornais, de princípio a fim; leu a notícia dos rolos
que houvera no Teatro Lírico, tomou outra xícara de café, fumou e, de súbito,
sentou-se à mesa e escreveu em bastardo:
AGARICUS AUDITAE
Mais embaixo, ao lado direito,
pôs à guisa de epígrafe:
Memória apresentada à Academia dos Esquecidos, secular e vetusta como
as demais congêneres, pelo bacharel em ciências físicas e naturais da Escola
Politécnica do Rio de janeiro Alexandre Ventura Soares.
E então começou:
"Senhores Acadêmicos. Seduziu-me desde
moço a doutrina darwiniana; e eu, com Lyell, a sorvi em grandes haustos na sua
aplicação à geologia. Concordei que o mundo atual era resultante e resultado de
várias, lentas, pequeninas transformações seriadas cujos termos não têm origem;
com Huxley, depois daquela sua célebre demonstração por que tem passado o
cavalo através das idades (T. Huxley — L'Évolution
et l'origine des espèces — tradução francesa, 1892, págs. 232 e segs.) —
com Huxley, dizia, acreditei que o Megatherium
e o mamute, como plenipotenciários seus, tivessem acreditado entre nós a
hórrida preguiça e o informe elefante. Sustentei que, sob o império inexorável
da seleção natural e da adaptação ao meio, marchássemos nós, pedras e homens,
nessa sucessão de modificações, passo moroso e graduado com que vai a variável,
de estádio em estádio, se aproximando do limite para nunca atingi-lo, como nós
para o nosso perfeito destino desconhecido (Haeckel, passim)".
— Bem começado! exclamou o nosso
Alexandre. Os períodos se sucedem como uma falange de teoremas e deles tirarei
legiões de corolários. Festina lente...
Mas continuemos:
"E, certo nestas ideias,
parecia impossível, e de fato é, que, em plena vida contemporânea, existissem
exemplares da fauna e da flora dos primórdios da Terra. Houve, não obstante ser
inconsequente com os verdadeiros princípios da ciência, alguém que pretendeu
ter visto fósseis “vivos”, mas, se é possível isto no mundo das inteligências,
fora do mundo do pensamento, tal como o dos artistas, dos poetas, dos
sociólogos, dos escritores, dos arquitetos, dos jornalistas, dos músicos, tal
não permite a evolução em geral.
Deveis lembrar-vos, senhores
acadêmicos, dos Pterodactylus
longisrostris, que alguns viajantes (poetas naturalmente) julgaram lobrigar
por entre as florestas ralas da Nova Zelândia, mas que, após visitas de
verdadeiros cientistas, foram arrastados para a voragem dos desmentidos da
excelsa ciência”.
Soares não se conteve e exclamou
bem alto:
— Muito bem! Excelsa ciência!
Admirável! Naturalmente o desembargador Monteiro há de apreciar esta bela
frase: excelsa ciência! Não há dúvida! Esta minha memória traz no seu bojo toda
uma síntese das minhas qualidades e das minhas audácias fáceis! Assentarei a
minha fama de naturalista; entrarei para a Academia dos Esquecidos;
demonstrarei o vigor do meu estilo e, por cima de tudo, uma pequena semirrica!
Arre! Como é bom ter-se um bom curso na Escola Politécnica do Rio de Janeiro!
Nenê, como te amo! Socorre-me nesse transe, como me vais socorrer a vida toda!
A mulher foi feita para sustentar homem... Aquele burro do Comte! Era por isso
que ele detestava a geologia, a paleontologia! Burro! Nenê!... E não é que
estou mesmo parecendo o Paulo, o tal da Virgínia? Ora bolas!
Adiante:
"II — Amigo meu e consumado
sábio, J. C. Kramer, exímio geólogo e professor da mesma cadeira da Harvard
University, USA, em conversa comigo, há dias, no Museu de História Natural
desta capital — conversa amável de sábios — comunicou-me que, há tempos, por
ocasião de estudar, no Rio de Janeiro, a hipótese da glaciação do Brasil”, de
Agassiz, observou vegetando nesta cidade de assaz estranha casta de tortulhos —
a que as crianças chamam “mijo-de-sapo” e “orelha-de-burro” que ele julgava,
apesar do disparatado dos caracteres, exemplares da flora do período triássico
da época secundária.
Óbvio será dizer-vos, senhores
acadêmicos, que uma tal comunicação me encheu de imenso júbilo, patriótico e
científico.
Cavaqueando comigo o doutor Kramer,
da Harvard University, USA, admirava-se, sorrindo com mofa e desculpando-se
amável, que, vivendo os tais cogumelos tão próximos dos nossos estabelecimentos
de ciências, não houvéssemos ainda notado a sua singular estrutura. É bastante
explicável — desculpava-se agora mal — vosso país é muito novo. E, na
continuação da palestra, não se media, às vezes, de contentamento e satisfação.
Deixava sempre transparecer nesses sentimentos a utilidade científica da
perspicácia e sutileza do sábio yankee;
e o que parecia acrescer ainda mais a sua maligna satisfação, era que tais Agaricus fossem além dos nomes das
crianças que tinham, também conhecidos vulgarmente por “diletantes”, nome que,
dado o seu explicável e previsto mau ouvido para as línguas do sul da Europa,
creio tratar-se de dilettanti."
Nisto, o José chega à porta do
gabinete do sábio Alexandre e grita:
— "Seu dotô"! O almoço
na mesa!
— Oh! Já?
Olhou o relógio na parede e
concordou:
— Você tem razão... E verdade! Já
são dez horas... Almoço, vou ao museu, consulto as notas da besta do Kramer e,
antes do fim do mês, tenho a "pequena" e o resto... E, se alguns
cépticos, pessimistas e despeitados disserem que a ciência, no Brasil, não leva
longe, não dá fortuna, independência, eu posso dizer bem alto: aqui estou eu!
E bateu, com força, no peito,
como se dissesse para a escolta do fuzilamento: atirem que eu não preciso de
ficar amarrado, nem vendado. Sei morrer!
No dia seguinte, completamente
armado com as notas do famoso geólogo yankee,
o notável brasileiro Alexandre Ventura Soares, homem grave e sábio, tanto mais
grave e mais sábio por ser jovem, continuou a sua memória casamenteira assim:
"III — O habitat de tais
“orelhas-de-burro”, como lhes chamam as crianças do Rio de Janeiro, é um
barracão úmido e quente que fica ao sopé do morro de Santo Antônio, no centro
da cidade, e serve as mais das vezes de depósito de jornais europeus de modas e
joias de aluguel que correm, em vários corpos, as capitais de segunda ordem do
globo, exibindo-as como riquezas próprias".
— Diabo! exclamou Soares,
compulsando as notas. Este Kramer tem cada ideia! Isto é impossível! Adiante,
pois é preciso! Enfim ponho umas aspas e vai a coisa por conta dele:
"Convém — e com humildade
vos peço, senhores acadêmicos — que vos esqueçais (não fôsseis Esquecidos) das
mais comezinhas noções de botânica, pois o nosso excêntrico sábio vai desvendar
órgãos pouco fáceis de aceitar em “mijos-de-sapo”.
— Está salva a minha
responsabilidade, monologou o notável preparador do Museu de História Natural.
Vamos! E preciso não esquecer o teu ideal científico! A Nenê está ali! Vamos!
Esta "memória" é a tua sorte grande!
E tomando fôlego, continuou:
"Eles deveriam ser análogos aos
criptógamos que formavam com outros a flora do período carbonífero; e, para
justificar isto, encontraram-se entre eles alguns exemplares do Lepidodendron elegans, do gênero Atanephae.
Parecia a pessoas pouco versadas
em geologia e paleontologia, que tais criptógamos não alcançassem, nos nossos
dias, mais do que alguns centímetros de altura; mas, a vós, que delas sabeis
mais do que eu, não parecerá estranho que afirme tê-los visto com 1,50 m e 1,80
m de altura."
Sob a forte objetiva de um
microscópio de Zeiss, encontrou o doutor Kramer, na parte mínima do disco
superior que possuem tais tortulhos, alguma coisa semelhante ao cérebro humano."
Analisando esse pedacito de
cabeça pacientemente, com a paciência característica de um professor da Harvard
College, se lhe depararam, ao doutor Kramer, coroando as suas fatigantes
pesquisas, em estado rudimentar, os nervos óptico, auditivo, olfativo,
gustativo etc. e, de todos esses, o mais rudimentar e grosseiro, era o
auditivo. Usando, então, de um paradoxo fácil, o sábio de Cambridge (USA)
denominou-os cogumelos auditivos (Agaricus
auditae)."
Das bossas (o singular Kramer
ainda admite a teoria de Gall), só lhes restava a da memória. As funções da
vida vegetativa tinham neles um completo e pleno desenvolvimento, tanto assim
que, apesar de agáricos, sabiam comer demasiadamente.
O que toma tais cogumelos dignos
de nota, além de outros caracteres — observa o doutor Kramer —, é que possuem
sexos. Há-os machos e os há fêmeas. Embora fiel aos ditames da ciência, no entretanto,
por honestidade científica, julgo-me obrigado a transcrever aqui essa
blasfêmia. Mas, se ela foi irrogada à ciência, por um sábio com o distinto
professor do Harvard University, claro é que nós não devemos senão acatá-la,
embora assim parecendo ser. Se não nos parece verdade inconcussa, partindo de
onde parte, néscios como somos, temos o dever de tomá-la como tal. "Diz o
professor americano que há os exemplares de um coloração negra, intensamente
negra, tendo na parte superior um canudo também negro, lustroso, como uma
espécie de rabo de ave — são os machos; e os outros claros, róseos, cabeludos,
seminus, cheios de pedrarias — são as fêmeas.
Nessas diferenças, todas
superficiais, que o extraordinário professor julga traduzirem sexos, no choque
delas, no seu atrito é que reside a agitação, a fermentação daquele principado
vegetal dos Agaricus auditae.
Tocando isto à sociologia dos
“orelhas-de-burro”, em que não sou versado, não me animo a discutir a questão e
adio o debate para mais tarde..."
— Que é, José?
— Esta carta da casa do doutor
Monteiro.
O criado retirou-se e o sábio,
apud Kramer, abriu o bilhete e leu:
"Meu querido:
Já não apareces, não te vejo
mais. Deixa essa história de memória. Papai é maníaco, isto não é preciso. É
melhor que arranjes um soneto, uns versos, enfim, que talvez façam o mesmo
efeito; e, se quiseres, manda-los-ei fazer por um poeta discreto que anda na
precisão de dez mil-réis. Queres? Que tal? Responde.
Nenê".
O sábio Alexandre, luzeiro da
ciência brasileira, respondeu:
“Nenê.
Tem fé em mim e na Ciência.
Alexandre".
Em seguida, o original cientista
Ventura considerou de si para si:
— Bem, por hoje, basta. Amanhã
irei determinar a origem e, no sábado, lerei a memória ao desembargador; e,
ainda, não foram passados dois meses! A ciência brasileira tem os seus lados
notáveis e singulares — continuou Alexandre na sua meditação — e um deles é
essa presteza nos seus trabalhos. Isto é devido ao fato que, para os outros
sábios, o objeto da ciência está no mundo, exigindo pesquisas, observações e
experiências demoradas; nós, porém, pouco nos importamos com o mundo. Há
livros; fazemos ciência. Com eles, revistas, memórias dos outros, sem ir
diretamente à natureza, estudam-se detalhes, arquiteta-se uma teoria nova que
escapou aos grandes mestres das grandes obras. A questão é combinar um com
outro, embora antagônicos... Oh! Este Brasil não é um país perdido! E um grande
país!
Na quinta-feira, tinha o nosso
bacharel concluído a sua memória e fê-lo de modo feliz e completo. Ei-lo:
"IV — Escusado será dizer
que, desde logo, procurei motivar e determinar as origens de tão estranha
vegetação; e sem nada encontrar, já desesperava, quando o acaso, constante
amigo dos sábios, auxiliou-me eficazmente, como quando foi ao encontro de
Newton, com a maçã, e de Galileu, com a lâmpada da catedral de Pisa.
V — Há um ano pouco mais, andando
eu na Itália, em comissão do governo, vi, na praia de Nápoles onde flanava,
brotando sobre uns andrajos sujos e abandonados de um lazzarone, uns cogumelos de um cromatismo vário e minúsculos.
Naturalista, impressionaram-me eles e tive o capricho de trazer a policrônica
aglomeração dos pequeninos tortulhos, com os competentes andrajos, para o Rio
de Janeiro. Aqui chegado, depositei-os em um quarto contíguo ao do meu criado
José, que, ora tocando em uma flauta de bambu ou em sanfona valsas e polcas
mais em voga; ora, lendo notícias de fitas de cinema, distraía-se, sem
esquecer, de quando em quando, de entoar com indecifrável voz, árias das óperas
da moda, que ele ouvia trauteadas pelas ruas. Sem que tal saiba bem explicar, a
não ser a flauta, o cantochão as crônicas do José, as “orelhas-de-burro”
napolitanas começaram a medrar, a crescer e têm atualmente quase meio metro de
altura.
VI — Atributo, portanto, senhores
acadêmicos Esquecidos, aos portentosos Agaricus
do doutor Kramer as mesmas origens que os meus e o seu desenvolvimento às
mesmas causas que os daqueles trazidos por mim da Itália, tanto mais que perto
do habitat dos primeiros existe a banda de música da Brigada Policial e o
Teatro Lírico."
O doutor Alexandre Ventura
Soares, bacharel em ciências físicas e naturais pela Escola Politécnica do Rio
de Janeiro, preparador, por concurso, do Museu de História Natural do Rio de
Janeiro, terminando a memória, levou-a ao desembargador Monteiro que gastou
seis meses em lê-la e meditar sobre ela. Ao fim dos quais, mandou chamá-lo e,
logo que veio, apresentando-o à filha, assim falou:
— Nenê, é este o teu noivo que,
pelo seu talento e pela sua erudição, acaba de penetrar na Academia Brasileira
dos Esquecidos. Casados, desejo que vocês continuem o número deles, para
grandeza e fama do Brasil.
Casaram-se e a primeira coisa que
fizeram, graças ao dote dela, foi comprarem um chalé na "curiosa
floresta" dos Agaricus auditae.
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