11/19/2017

Adélia (Conto), de Lima Barreto


Adélia
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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— A nossa filantropia moderna feita de elegância e exibições é das coisas mais inúteis e contraproducentes que se pode imaginar.

Entre todas as pessoas do povo aqui, no Rio de Janeiro, há uma condenação geral para as raparigas que se casam, no dia de santa Isabel, e saem da Casa de Expostos. Isto se dá para uma casa semi-religiosa, que só visa, penso eu, não a felicidade terrena, mas o resgate de almas das garras do demônio. Agora, imagina tu o que de transtorno na vida de tantos entes não vão levar esses "dispensários", essas creches etc. que lhes amparam os primeiros anos de vida e, depois, os abandonam à sua sorte!...

Antes a sala do banco da Misericórdia que receita remédios de uma cor única e cuja dieta só varia na inversão dos pratos... É sempre a mesma... Essa caridade é espúria e perversa... Antes deixar essa pobre gente entregue à sua sorte...

— És mau... E impossível que ela não aproveite muitos.

— Alguns, talvez; mas muitos, ela estraga e desvia do seu destino, que talvez fosse alto. Nelson legou Lady Hamilton à Inglaterra; e tu sabes quais foram os começos dela. Chegaria até isso se andasse em creches, dispensários?

— Não sei; mas não nos devemos guiar por exceções.

— É uma frase; mas vou contar-te uma história bem singela que espero não me interromperás. Prometes?

— Prometo.

— Vou contar.

— Conta lá.

O narrador fez uma pausa e encetou vagarosamente:

— Quando a portuguesa Gertrudes, que "vivia" com o italiano Giuseppe, um amolador ambulante, apresentou Adélia, sua filha, à sublimada competência do doutor Castrioto, do dispensário, a criança era só um olhar. As pernas lhe eram uns palitos, os braços descamados, esqueléticos, moviam-se nas convulsões de choro sinistramente. Com tais membros e o ventre ressequido e a boca umedecida de uma baba viscosa, a criança parecia premida por todas as forças universais, físicas e espirituais. O seu olhar, entretanto, era calmo. Era azul-turquesa, e doce, e vago. No meio da desgraça do seu corpo, a placidez do seu olhar tinha um tom zombeteiro. O doutor melhorou-a muito; mas, assim mesmo, até à puberdade, foi-lhe o corpo um frangalho e o olhar sempre o mesmo, a ver caravelas ao longe que a viessem buscar para países felizes. Depois de adolescente, porém, no fim das grandes concentrações íntimas, o brilho hialino das pupilas turbava-se, estremecia.

Ninguém descobriu-lhe o olhar — quem repara no olhar de uma menina de estalagem? Olham-se-lhe as formas, os quadris e os seios; ela não os tinha opulentos, contudo casou-se. O casamento realizou-se a pé e a garotada assoviou pelo caminho. A noiva com calma estúpida olhou-os. Por quê? Casava-se a pé; era ignóbil. O padrinho não lhe notou modificação sensível. Não chorara, não soluçara, não tremera; unicamente mudou num instante de olhar, que ficou duro e perverso. O primeiro ano de casamento fez-lhe bem.

A intensa vida sexual arredondou-lhe as formas, disfarçou as arestas e as anfractuosidades — emprestou-lhe beleza.

Demais, o ócio desse primeiro ano afinou-a, melhorou-a; mas sempre com aquele olhar fora do corpo e das coisas reais e palpáveis. No fim de dois anos de casada, o marido começou a tossir e a escarrar, a escarrar e a tossir. Não trabalhava mais. Adélia rogou, pediu, chorou. Andou por aqui e por ali. Encontrou alguém amável que a convidou:

— Vamos até lá, é perto.

— Ó... Não... "Ele"...

— "Ele"!... Vamos!... "Ele" não sabe; não pode mais. Vamos.

Foi, e foi muitas vezes; mas sempre sem pesar, sem compreender bem o que fazia, à espera das caravelas sonhadas. Ia e voltava. O marido tossia e tomava remédios.

— Trouxeste?

— Sim; trouxe.

— Quem te deu?

— O doutor.

— Como ele é bom.

Aos poucos, infiltravam-se-lhe gostos novos. Um sapato de abotoar, um chapéu de plumas, uma luva... Morreu o marido. O enterro foi fácil e o luto ficou-lhe bem. O seu olhar vago, fora dos homens e das coisas, atravessava o véu negro como um firmamento com uma única estrela no engaste de um céu de borrasca. Um ano depois corria confeitarias, à tarde; mas o seu olhar não pousava nunca nos espelhos e nas armações. Andava longe dela, longe daqueles lugares.

— Toma vermute?

— Sim.

— É melhor coquetel.

— É.

— Antes cerveja.

— Vá cerveja.

Não custou a embriagar-se um dia. Meteram-lhe num carro. Estava que nem uma pasta mole e desconjuntada.

— Que tem você?

— Nada, não vejo.

— Você por que não abre mais os olhos?

— Não posso, não vejo!

— Lá vão os Fenianos... Você não vê?

— Ouço a música.

Teve carros. Frequentou teatros e bailes duvidosos, mas seu olhar sempre saía deles, procurando coisas longínquas e indefinidas. Recebeu joias. Olhava-as. Tudo lhe interessou e nada disso amou. Parecia em viagem, a bordo. A mobília e a louça do paquete não lhe desagradavam; queria a riqueza, talvez; mas era só. Nada se acorrentava na sua alma. Correu cidades elegantes e as praias.

— Hoje, ao Leme.

— Sim, ao Leme.

A curva suave da praia e a imensa tristeza do oceano prendiam-na. Defronte do mar, animava-se; dizia coisas altas que passavam pelas cabeças das companheiras, cheias de mistério, como o voo longo de patos selvagens, à hora crepuscular.

Veio um ano que se examinou. Estava quase magra, quase esquálida. Foi-se fanando daí por diante. Diminuíram-se-lhe as joias e os vestidos. Morreu aos trinta e poucos anos como a criança que se fora: um frangalho de corpo e um olhar vago e doce, fora dela e das coisas. Que é que adiantou o dispensário?"

Calou-se o que narrava, e o outro só soube dizer:

— Vou-me embora... Até amanhã.

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