A volta das velas
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Maio findara
alegremente. E este primeiro dia de junho, na ilha catarinense, expirava numa
deliciosa calma outonal, sem as cortinas de névoa cinzenta que fecham, às
vezes, os longes e sem desolação do vento sul, retardado ainda entre as
geleiras austrais. O céu, muito límpido e transparente no seu imenso zimbório
cerúleo, que os bulcões negros de inverno viriam em breve toldar, ardia todo ao
poente nos últimos dourados flamantes da agonia do sol. Embaixo, o mar se
estendia numa placidez de lago, com recantos fulgurando em espelhações de luz
mágica. Aqui e além, pelo golfo, pequenas ilhas graciosas e negros rochedos de
cabos abriam rendados de bronze no tamis de ouro do ocaso.
A essa hora,
uma revoada alvacenta de velas começava a rugir no horizonte, em direção ao
porto, à maneira de um bando de gaivotas recolhendo ao seu pouso noturno nos
anfractuosos cimos recortados da penedia da costa. Quadrangulares algumas,
latinas na maior parte, essas asas leves das velas que o Homem dirige e anima,
que andam a mercê dos ventos nos descampados do mar e que são mais preciosas
decerto que as asas vivas dos pássaros — salpicavam de encantadora brancura o
esmeraldino das águas que se encinzava pouco à pouco, e a linha melancólica e
desolada de leste onde a incomparável e majestosa amplidão do oceano parece que
não acaba jamais.
Eram essas
velas as canoas e baleeiras de pesca que regressavam ao seu pequeno arraial,
depois de uma semana de ausência.
Já em frente
aos ranchos de palha se aglomeravam em grupos as famílias dos pescadores que,
como de costume, vinham para ali esperá-los. Eram meninas galantíssimas, de
saia curta e pés descalços, cabelos soltos e revoltos, límpidos olhos
virginais, sorriso alegre sempre à boca rosada e fresca como a polpa de um
fruto que se abre ao sol, docemente, em plena maturidade — todas girando, as
mãos dadas, em rodas de ingênua folgança, sonoras de cantos álacres e de
inefáveis risadas; eram moças adoráveis, de face cheia e oval, cútis veludosa e
morena, iluminada castamente por olhares de uma expressão ideal; eram matronas
de largos e fecundos quadris, de pé ou sentadas sobre a fofa areia clara, olhos
pregados sobre as velas amadas aproximando-se pouco a pouco, todas a parolar
vivamente, numa voz meio cantada ostentando cada qual gordos fedelhos ao colo,
enquanto a outra parte da ninhada — os rapazinhos mais crescidos — divertia-se
a correr e a saltar, numa algazarra festiva, pela batente do mar.
Ao fundo, na
linha dos cômoros, alguns homens empontavam-se, em camisa e chapéu de palha à
cabeça, olhando atentos às águas e apontando, de instante a instante, as
veleiras velas claras. Do interior do arraial, pelas veredas e trilhas que
vinham morrer entre as dunas, golfavam ainda para ali magotes de retardados. E
à maneira que a luz desmaiava por trás dos montes de oeste, os cascos esguios
das canoas e lanchas erguiam-se de sobre o mar, destacando-se uns dos outros
pelos latinos voadores, as velas retangulares que avançavam lentamente para o
crescente da praia.
A matinada
festiva crescia então pelos ranchos onde as matronas robustas, reconhecendo
agora as embarcações em que os maridos, irmãos e filhos andavam, as apontavam
às crianças que corriam para ela num júbilo estardalhaçante e num berreiro geral.
E exclamações de alegria vibravam por toda a praia, apregoando os expressivos
nomes sonoros das pequenas quilhas ligeiras, colmadas de panos alvos:
— A
Andorinha, a Esperança, a Flor do Mar, a Rajada...
E dentro em
pouco, em frente de cada rancho, uma embarcação abicava, carregada de peixe
fresco ou de salga, e cercada para lago das palradoras mulheres e da inquieta
criançada. As companhas saltavam — o patrão e quatro homens em geral — saudosas
sempre da família e maltratadas, às vezes, pelos furores do mar: e eram abraços
às esposas e repetidos beijos aos pimpolhos, que estas ausências frequentes
tornavam sempre mais amados.
Então
colhiam-se as linhas e anzóis,
os rendados samburás das iscas, os
catutos dos espinhéis, os remos, velas e mastro, e, em seguida, desembarcava-se
a carga, que era o sustento e o dinheiro de todos até a próxima partida para o
mar alto. Imediatamente os pescadores puxavam a canoa ou a lancha sobre grossos
rolos de madeira e a fechavam no rancho, onde ela ficava ao abrigo das chuvas e
das soalheiras bravas. Depois, todos juntos e felizes, em afetiva palestra ruidosa, cortada sempre de risadas,
tornavam o caminho dos lares...
Mas a noite
cerrara de todo, ocultando a praia e o mar — e apenas, num ou noutro rancho,
algumas luzes rareadas desabrochavam, aqui e além, na treva, as suas grandes
corolas vermelhas que tremiam ao vento, iluminando os ajuntamentos de gente, ao
instante menos densos, cercando as últimas embarcações que chegavam.
No entanto,
em recanto ermo e esquecido da costa, enquanto a maior parte das famílias dos
pescadores rejubilavam tranquilas com a chegada dos seus, a Maria Rosa,
coitada, sentada à porta do seu rancho, com um filhinho de seis meses ao colo,
a velha mãe ao lado, sentia apreensões e tristezas apertarem-lhe o
coração, porque a lancha do marido não aparecia ainda retardada, agora, com a
noite, nos turbilhões do mar largo. Duas vezes mandara a pobre
velha ao rancho do Manuel Cosme, que ficava ali perto e que ainda estava em
faina, a saber se a companha de lá tinha visto a Borboleta e se este havia largado juntamente com a Andorinha, naquela mesma tarde. A mãe
trouxera resposta favorável, dizendo-lhe que a demora do genro, do Pedro,
segundo informara o próprio Cosme, era devido a ter ele aportado no Arvoredo,
onde fora levar o peixe que lhe encomendara o mestre faroleiro, quando a Borboleta aí tocara na ida para o mar
alto. E, por último, o Zé Clara, que era o “voga” da Andorinha, dissera:
— Ora a
Maricas que sossegue, que o Pedro não pode tardar. Em rompendo a lua, a Borboleta está aí rente...
A essas
palavras a Maria Rosa serenara um pouco e, com um olhar rebuscador e ansioso,
procurava devassar a treva densa, esquadrinhando minuciosamente o porto. Mas em
vão o fazia, porque nem uma sombra de vela se divisava agora nas águas.
Alentavam-na, contudo, as luzes que ainda ardiam na praia e sobretudo a
informação do Zé Clara, que vira o Pedro dirigir-se com a lancha para o
Arvoredo quando toda a flotilha da pesca suspendera, recolhendo ao arraial.
Entretanto
as horas voavam e pela curva da costa os farolins se apagavam uns após outros,
à maneira que as embarcações eram puxadas. E agora só uma luz flamejava na
praia — a do rancho do Cosme que, por fim, se extinguiu também.
Ao ver esse
rancho fechar-se, a Maria Rosa desanimou de todo e rompeu a chorar, tomada
subitamente da ideia terrível de que a lancha do marido não chegava por se ter virado, talvez, no costão do
Arvoredo, nesse costão sinistro onde eram sem conta os naufrágios e onde as
rochas em caos, que o formavam, estavam crivadas de cruzes, assinalando mortes
como um cemitério. E, meio alucinada, parecia-lhe já estar a ouvir os gritos
ansiosos do Pedro e dos camaradas, em luta com o maroiço gigante, abandonados
de todo o socorro e amparo, na desolação infinita da noite e dos furores do mar. No desassossego da
sua imensa angústia ergueu-se e, chamando pela mãe, que igualmente chorava a
seu lado, apertando o filhinho nos braços, encaminhou-se loucamente para os
cômoros, em direção à casa.
A meio caminho,
porém, as duas mulheres sentiram como um vago ruído de remos, vindo do outro
extremo da praia. Estacaram por instantes e, certificando-se de que era uma
embarcação, lembraram-se da baleeira do Amaro, que ainda não havia chegado.
Animadas por esse pensamento, para lá se jogaram a correr. Mas antes de
chegarem ao ponto onde a embarcação aportara, esbarraram com o velho José
Alexandre, patrão daquela baleeira, que se dirigia ao arraial em busca de um
carro para a condução do peixe. A Maria Rosa, fazendo-o parar, inquiriu-o a
tremer, os olhos empanados de lágrimas:
— Ó sô Lexandre, você não encontrou por aí a
Borboleta? Até estas horas e nada de
chegar! Nunca o Pedro se demorou tanto. Quem sabe não lhe sucedeu por aí
alguma?... Você me diga o que houve, sô
Lexandre. Por Nossa Senhora, me diga, que eu já não posso mais!...
O velho
pescador parou muito admirado de encontrar a Maria Rosa assim apensionada e em
pranto. E falando-lhe, retorquia com afeto, numa meiguice de avô:
— Qual
alguma, nem pera alguma, rapariga! Pois tu não acabaste ainda com esses teus
sustos! Mas que mulher és tu então? Ora louvado seja Deus! Sossega! E deixa-te
dessas consumições que o Pedro não deve tardar, pois que o deixamos lá pela
altura do Rapa. Olha, volta para o rancho que talvez já o encontres a arrumar a
lancha...
Era tal a
segurança destas palavras que a Maria Rosa para logo se tranquilizou e disse ao
velho, em despedida:
— Então
boa-noite, sô Lexandre. E Deus lhe
pague, por este “peso” que me tirou cá do coração. Parece que foi obra da Mãe
Santíssima este encontro, porque eu já ia como louca...
O velho, que
levava grande pressa, recomeçou a marcha interrompida, murmurando apenas:
— Ora não há
de quê, Maricas. É para isto que andamos neste triste mundo...
E o seu
vulto se sumiu logo entre os cômoros, que faziam vagamente, no escuro, largas
amontoações branquejantes.
A Maria
Rosa, gritando para a mãe que a seguisse, o filho sempre apertado nos braços,
retomou precipitamente o caminho do rancho.
Quando aí
chegou, vinha atracando a Borboleta, tão
carregada que encalhou a muitas braças da praia. À luz do seu farolim escarlate
descobriu logo o marido, que patroava a embarcação, ereto e alto na popa. Com o
cansaço da corrida e o prazer extraordinário de o ver assim de repente, a Maria
Rosa quase teve um desmaio e, sem poder mais aguentar-se de pé, foi cair
sentada junto à porta do rancho. Mas ergueu-se logo, reanimada. E como o Pedro
ainda não tivesse dado com ela, ocupado agora com a companha em encher os
balaios de peixe para aliviar a lancha e a puxar depois, desceu à batente do
mar e gritou-lhe meigamente:
— Ó Pedro,
olha que eu estou aqui com a mamãe e o pequenino. Que demora foi essa, Santo
Deus! Eu já andava como uma louca, sem saber o que fazer. E o que já chorei por
tua causa... Nem tu calculas! Se não fosse o velho Lexandre, nem sei mesmo o
que seria de mim...
O Pedro,
expedindo de bordo os primeiros homens, que iam depondo em terra os balaios
carregados, respondeu-lhe alegremente:
— Ora que
queres, Maricas! Tive de tocar no Arvoredo, e por isso atrasei a viagem. Depois
o demônio do vento não ajudava nada... Até o Rapa foi um esfregar que não
acabava mais. E só a poder de remos é que estamos aqui a estas horas, senão nem
pela madrugada! Mas o pior já passou... Deixa puxar a Borboleta que isto está a acabar...
E, os pés
fincados na bancada de ré, os ombros metidos à longa vara de empurrar, deu um
impulso mais à embarcação, que enxurrou então até a batente da praia.
A faina viva da descarga começou
logo e, arrumado todo o peixe no rancho, o Pedro saltou, entregando aos
remadores a baldeação e a “puxada” da baleeira. Saudoso do lar, como estava,
correu a abraçar a esposa e, num enternecimento paternal de marujo, tomou o
filho nos braços e pôs-se a beijá-lo loucamente, em meio às duas mulheres,
sorrindo agora numa indizível alegria. Depois, todos juntos, numa palração
animada e num incomparável contentamento, entraram a caminhar praia acima, em
direção à casa...
Àquela hora,
para leste, na curva deserta do horizonte longínquo, aparecia o plenilúnio,
cobrindo de uma luz cor de flor de laranjeira a cúpula imensa do Espaço. No
arraial catarinense os lares adormeciam pouco e pouco, sob a dealbação mágica
do alto. A vasta praia dos Ingleses branquejava idealmente, pela sua faixa de
areias, onde o mar vinha bater em novelos espumantes de filigranas de prata.
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