À vista da denúncia
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
O
interior da envidraçada varanda, exornado com ipomeias e glicínias, em cacos,
orquídeas e aruns nos recantos, não tinha senão a luz pálida, muito pálida, de
um luar de inverno, coado preguiçosamente pelos vãos das grinaldas verdes.
Das
quatro portas que abriam para o interior, apenas uma cometia a indiscrição de
transportar para além, ao conhecimento da criadagem bisbilhoteira, os amuos
graves de Clóvis e Amarília.
A denúncia,
amarrotada e em frangalhos, estava sobre uma banca de ferro, destorcendo-se,
como se nervos tivesse, dos amachucamentos grosseiros perpetrados pelas mãos
violentas de Clóvis, que, distraindo-se um pouco com as fumaradas de um havana,
ouvia, sem intervenções, as queixas de Amarília...
—Como eu, tão ladina para outras,
compreendendo tão bem o mal alheio, deixei-me cegar por tanto tempo?! Era um
convite amável hoje, tinha sido um presente valioso ontem, era uma lembrança
expressiva amanhã... E o meu filhinho servindo de passe para os maiores engodos!...
Toda hora o telefone pedia Arturzinho. Lá se ia o inocente, coitadinho! E
raramente voltava. Prendiam-no dias seguidos com a ama. Poderia eu desconfiar
do embuste? há gênios capazes de todas as vilezas. O filho era o motivo da
entrada do pai, os presentes eram as cinzas nos meus olhos, e os convites eram
a perfídia da traiçoeira. Mas, agora, ou eu sucumbirei, ou estará tudo acabado.
Ouve-me bem, Clóvis: nesta casa, enquanto eu viva for, Carlota jamais tornará,
e se tu desceres à indignidade de voltar à casa dessa mulher, ouve bem! Serei
eu quem irá buscar o tolo do esposo para te surpreendermos na sordidez. Sempre
são os interessados nas causas os que por último se sentem logrados. Il n'y a qu'un mot pour dire les choses.
Essa palavra não devo, porém, proferir sem macular os meus lábios, sem
regozijar o meu enganoso marido, e sem elevar a perdida que me furta a
tranquilidade, que me logra no dom legal da fidelidade esponsalícia. Um dia
desconfiei. A ama de Arturzinho levava um pacote às escondidas, quando, para
castigo, ele rolou ao chão, na hora da partida, quase aos meus pés... Perguntei
à cúmplice que significava aquele embrulho...
Foi o Sr. Clóvis quem tomou a palavra: “é um romance que mando, a pedido, para
D. Carlota ler...” Ingenuamente me convenci. Pois seria possível que o meu
marido trouxesse a beijar-me a mulher indigna que me atraiçoava? que expusesse
o meu filho à infamação de ser posto junto à pérfida, em lugar de seu pai
gozado?... Ó meu amado Jesus!... Tenho nojo de tudo isto!... Olho-me e vejo-me
só. Roubada naquilo porque mais zelos e mais ciúmes alimento, eu que me tenho
submetido maquinalmente à concepção de treze filhos, esgotando a minha
juventude para parecer velha aos trinta e dois anos, assassinando a minha
beleza, relaxando os meus tecidos, criando uma ruga nova em cada manhã em que
me olho ao espelho!... para ser recompensada duramente com uma traição, uma
tripla traição, em que se envolveram as minhas lealdades de esposa, de mãe e...
de amiga. Sim, porque, desgraçadamente o digo, tolerei a concubina de Clóvis na
intimidade cordial de amiga. Muitas vezes, por força dessa leviandade comum a
todas as mulheres, terei dado causa de riso à maldita que me engazopava.
Contava-lhe os meus esforços para trazer sempre o meu marido na obrigação
pontual de possuir-me. Disse-lhe mesmo que, muitas vezes, o recebia com íntimas
indisposições, para que rejeitado uma feita ele se não atrevesse a faltar-me outras,
e nestas perseguir-me a dúvida de sua saciedade noutra fonte... Não sei onde
estava escondido o sol de minha compreensão que agora recena a minha
inteligência. E uma miséria moral essa em que se prostitui, com o cônjuge das outras,
uma velha, desrespeitadora das cãs do esposo e da inocência de suas filhas.
Havia de ser lá, naquela alcova cheia de seduções, que o meu companheiro se
convertia em assassino da paz de minha alma. Aos olhos daquelas três
criancinhas—mulheres fáceis, por herança, que desabrocham nos cômoros
lamacentos da podridão materna—eles dois se encaminhavam do leito, quantas
vezes Clóvis ouvindo a voz de meu filhinho chamando-o ardentemente com o nome
de pai! Bendito o poeta que já disse estar ao lado de cada homem uma fera
monstruosa: o instinto. E esse poeta foi o meu próprio esposo, acusando toda a
humanidade com o seu próprio mal. Foi preciso que uma generosidade estranha me
avisasse para que eu conhecesse essa nova militta
babylonica, torpe, pântano no qual até a traída companheira do amante e o
explorado amor de seu filhinho foram poderes lascivos. Ó injustiça divina! Por que
não me despertaste, a mais tempo, do sono em que sonhei com a lealdade de um
templo cristão e me achava desgarrada na nave de um templo de Buda?!... Foi
hoje o assinalado dia de minha vitória. A carta chegou-me às mãos com as
réstias violetas do sol posto. Li-a de um fôlego. O meu primeiro ímpeto,
naturalmente, foi de indignação contra o denunciante. Mas, ali estavam os fatos
verificáveis, possíveis, e terrorosos. A noite veio mais depressa aos meus
olhos do que ao resto do mundo. A verdadeira noite é essa em que também a alma
se recolhe na escuridão de uma dor apunhalante. O meu marido jantaria fora, num
banquete íntimo, mas numa sociedade festiva. Resolvi chamá-lo prontamente às
explicações de suas infidelidades. E fi-lo sem tardada, não o nego. À criada de
Arturzinho, a esta cancerosa alma de mulher que tinha afetos meus por dar o seu
leite à formação orgânica de meu filho, trouxe logo às contas. Não lhe disse a
denúncia, não lhe proporcionei ensejo de contestar a sua ação, porque a
interpelei segura do fato, inteiramente consciente do que fazia. E ela me
confessou que levava e trazia romances imorais, que levava e trazia cartas e
recados... O instante único! Ao depois, calma e friamente, sabendo que aguçava
a minha dor, revolveu-me na alma o punhal de seu descaro, revelando-me a
indignidade de ser o meu filho abraçado e beijado ardentemente, durante a
ausência do pai, com o nome deste entre os lábios da corruptora... Nega,
Clóvis, que não és o amante dessa barregã de padres, dessa imunda mulher que
maculou o meu lar com a sua abjeta convivência...
— Nego,
sim!
— Forte
coragem! Jura que ontem não beijaste, quase aos olhos do público, no salão de
visitas, os lábios roxos pelo cansaço da idade de Carlota.
— Juro-te.
— Leviano!
Mente como quiseres. Mas, ouve: enquanto o meu corpo sentir as comoções do nojo
pelo teu que se enlameou na companhia daquela devassa, enquanto as minhas
narinas sentirem o perfume daquela carta nas tuas vestias, que é o perfume de
uso na alcova de tua ervoeira, terei a coragem de repelir-te e de cerrar os
meus lábios às menores palavras para as nossas relações. E se, porventura,
desconfiar eu que foste buscar, como uma abelha sem sorte, o néctar que se
esconde na corola daquela flor murcha e fanada, dentro desta casa, escuta bem
Clóvis, haverá a incompatibilidade de nós dois... É tu entrares e eu sair, ou
só ficarei se tu te fores para sempre. Sabes quanto sou caprichosa, o bastante
para não me arrepender das resoluções tomadas. Negas, ainda, o teu erro? Serei
fácil de perdoar-te com a verdade, tão fácil quanto não te tolerarei com a
mentira... Nega a tua indignidade!
— Nego,
sim!
— Quero
convencer-me. A pé firme?
— Com toda
lealdade.
— Pois
bem! É escusado irmos adiante: sabes o que está contido naquele pacote?
— Ignoro.
— São os
presentes com que me turvou a vista a tua amante. Quero devolvê-los.
— Mas,
como?
— Não os
guardarei mais comigo.
— Vais
romper, então, com a família do Aurélio?
— Forçosamente.
— É de
mau alvitre.
— Incomoda-te
muito esse rompimento pelo que estou vendo. Deves acabar com uma amizade que me
aborrece, e se te escusares a esse acabamento, confessas o interesse que terás
em manter a verminação desse convívio imundo...
— Se
encaras por este lado, rompe Amarília, devolve tudo do modo mais grosseiro.
— Devolverei,
sim, não há que ver.
— Estás
no teu direito.
— E
espero a tua sanção.
— Já a
tens.
— Não.
Não a tenho ainda. A devolução não poderá ser feita sem uma carta.
— Pois
escreve-a!
— Não!
Também não! Serás tu...
— Eu?!...
— Ah!...
Esquiva-te de escreveres a carta?...
— Amarília,
pensa bem! Nós, os homens, ficaremos mal se nos envolvermos nessas rusgas de
mulheres.
— Compreendo-te:
romperei eu, e tu, às ocultas quiçá, com menores aparências, te dedicarás à
continuação de teu adultério. Hás de ser quem escreverá a carta hoje mesmo,
agora...
— Convencer-te-ás
de minha inocência?
— De
todo, não. Encaminhar-me-ei de convencer-me.
— Não
haja dúvida. Dá-me papel e tinta. Escreverei num momento...
— E
pensas que escreverás como quiseres?
— Não:
como for conveniente.
— Não te
concedo esse direito: vais escrever ao meu ditado.
— Quê?
— Nos
termos que me espocarem arrevesadamente aos lábios...
— Mas...
— Na linguagem
mais ferina que eu souber empregar contra uma inimiga...
— Amarília?!...
— Virulenta
e grosseira...
— Faça-se
a tua vontade.
— Escreves?
— Como
quiseres.
— E a
quem pensas vai ser dirigida a missiva daquele modo escrita?
— A
Carlota!
— Não,
Clóvis. Quero que se escreva ao marido dela, com o seu nome em todas as
letras...
— É
demais!
— Não
retrocedas!
— Abusas
de minha bondade...
— Enganas-te.
Clóvis, ou tu escreves como eu te determino, ou...
— Absolutamente,
não!
—...ou me
retirarei hoje mesmo de tua companhia... A casa de meu pai terá sempre, para a
filha digna, o agasalho mais confortável.
— Tua
alma, tua...
— Sei
bem! Queres o escândalo da separação para o renome do conquistador? Não te
darei essa vantagem... Debaixo deste teto, tragarás, Clóvis, o amargo da
tortura mais incondescendente, sofrerás a queimadura do inferno mais
verdadeiro...
***
Ao
longe, um relógio temerário, arriscou o aviso tétrico da meia-noite, ao fim do
qual, resolutamente, Amarília se retirou para o seu leito...
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...