A Vida Eterna
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
É opinião unânime que
não há estado comparável àquele que nem é sono nem vigília, quando, desafogado
o espírito de aflições, procura algum repouso às lides da existência. Eu de mim
digo que ainda não achei hora de mais prazer, sobretudo quando tenho o estômago
satisfeito e aspiro a fumaça de um bom charuto de Havana.
Depois de uma ceia
copiosa e delicada, em companhia de meu excelente amigo dr. Vaz, que me
apareceu em casa depois de dois anos de ausência, fomos eu e ele para a minha
alcova, e aí entramos a falar de coisas passadas, como dois velhos para quem já
não tem futuro a gramática da vida.
Vaz estava assentado
numa cadeira de espaldar, toda forrada de couro, igual às que ainda hoje se
encontram nas sacristias; e eu estendi-me em um sofá também de couro. Ambos
fumávamos dois excelentes charutos que me haviam mandado de presente alguns
dias antes.
A conversa, pouco
animada ao princípio, foi esmorecendo cada vez mais, até que eu e ele, sem
deixarmos o charuto da boca, cerramos os olhos e entramos no estado a que aludi
acima, ouvindo os ratos que passeavam no forro da casa, mas inteiramente
esquecidos um do outro.
Era natural passarmos
dali ao sono completo, e eu lá chegaria, se não ouvisse bater à porta três
fortíssimas pancadas. Levantei-me sobressaltado; Vaz continuava na mesma posição,
o que me fez supor que estivesse dormindo, porque as pancadas deviam ter-lhe
produzido a mesma impressão se ele se achasse meio acordado como eu.
Fui ver quem me batia
à porta. Era um sujeito alto e magro embuçado em um capote. Apenas lhe abri a
porta, o homem entrou sem me pedir licença, e nem dizer coisa nenhuma. Esperei
que me expusesse o motivo da sua visita, e esperei debalde, porque o
desconhecido sentou-se comodamente em uma cadeira, cruzou as pernas, tirou o
chapéu e começou a tocar com os dedos na copa do dito chapéu uma coisa que eu
não pude saber o que era, mas que devia ser alguma sinfonia de doidos, porque o
homem parecia vir direitinho da Praia Vermelha.
Relanceei os olhos
para o meu amigo, que dormia a sono solto na cadeira de espaldar. Os ratos
continuavam a sua saturnal no forro.
Conservei-me de pé
durante poucos instantes a ver se o desconhecido se resolvia a dizer alguma
coisa, e durante esse tempo, apesar da impressão desagradável que o homem
produzia em mim, examinei-lhe as feições e o vestuário.
Já disse que vinha
embrulhado em um capote; ao sentar-se, abriu-se-lhe o capote, e vi que o homem
calçava umas botas de couro branco, vestia calça de pano amarelo e um colete
verde, cores estas que, se estão bem numa bandeira, não se pode com justiça
dizer que adornem e aformoseiem o corpo humano.
As feições eram mais
estranhas que o vestuário; tinha os olhos vesgos, um grande bigode, um nariz à
moda de César, boca rasgada, queixo saliente e beiços roxos. As sobrancelhas
eram fartas, as pestanas longas, a testa estreita, coroando tudo uns cabelos
grisalhos e em desordem.
O desconhecido, depois
de tocar a sua música na copa do chapéu, levantou os olhos para mim, e
disse-me:
— Sente-se, meu rico
senhor!
Era atrevimento
receber eu ordens em minha própria casa. O meu primeiro dever era mandar o
sujeito embora; contudo, o tom em que ele falou era tão intimativo que eu
insensivelmente obedeci e fui sentar-me no sofá. Daí pude ver melhor a cara do
homem, à luz do lampião que pendia do teto, e achei-a pior do que antes.
— Chamo-me Tobias e
sou formado em matemáticas.
Inclinei-me levemente.
O desconhecido
continuou:
— Desconfio que hei de
morrer amanhã; não se espante; tenho certeza de que amanhã vou para o outro
mundo. Isso é o menos; morrer é dormir, to die, to sleep; entretanto, não quero
ir deste mundo sem cumprir um dever imperioso e indispensável. Veja isto.
O desconhecido tirou
do bolso um quadrinho e entregou-me. Era uma miniatura; representava uma moça
formosíssima de feições. Restituí o quadro ao meu interlocutor esperando a
explicação.
— Esse retrato,
continuou ele olhando para a miniatura, é de minha filha Eusébia, moça de vinte
e dois anos, senhora de uma riqueza igual à de um Creso, porque é a minha única
herdeira.
Eu me espantaria do
contraste que havia entre a riqueza e a aparência do desconhecido se não
tivesse já a convicção de que tratava com um doido. O que eu estava a ver era o
meio de pôr o homem pela porta fora; mas confesso que receava algum conflito, e
por isso esperei o resultado daquilo tudo.
Entretanto perguntava
a mim mesmo como é que os meus escravos deixaram entrar um desconhecido até a
porta do meu quarto, apesar das ordens especiais que eu havia dado em
contrário. Já eu calculava mentalmente a natureza do castigo que lhes daria por
causa de tamanha incúria ou cumplicidade, quando o desconhecido atirou-me estas
palavras à cara:
— Antes de morrer
quero que o senhor se case com Eusébia; é esta a proposta que venho fazer-lhe;
sendo que, no caso de aceitar o casamento, já aqui lhe deixo este maço de notas
do banco para alfinetes, e no caso de recusar mando-lhe simplesmente uma bala à
cabeça com este revólver que aqui trago.
E pôs à mesa o maço de
bilhetes do banco e o revólver engatilhado.
A cena tomava um
aspecto dramático. O meu primeiro ímpeto foi acordar o dr. Vaz, a ver se
ajudado por ele punha o homem pela porta fora; mas receei, e com razão, que
vendo um gesto meu nesse sentido, o desconhecido executasse a segunda parte do
seu discurso.
Só havia um meio:
ladear.
— Meu rico Sr. Tobias,
é inútil dizer-lhe que eu sinto imensa satisfação com a proposta que me faz, e
está longe de mim a ideia de recusar a mão de tão formosa criatura, e mais os
seus contos de réis. Entretanto, peço-lhe que repare na minha idade; tenho
setenta anos; a Sra. D. Eusébia apenas conta vinte e dois. Não lhe parece um
sacrifício isto que vamos impor à sua filha?
Tobias sorriu, olhou
para o revólver, e entrou a tocar com os dedos na copa do chapéu.
— Longe de mim, continuei
eu, a ideia de ofendê-lo; pelo contrário, se eu consultasse unicamente a minha
ambição não diria palavra; mas é no interesse mesmo dessa gentilíssima dama,
que eu já vou amando apesar dos meus setenta, e no interesse dela que eu lhe
observo a disparidade que entre nós existe.
Estas palavras
disse-as eu em voz alta a ver se o dr. Vaz acordava; mas o meu amigo continuava
mergulhado na cadeira e no sono.
— Não quero saber de
sua idade, disse Tobias pondo o chapéu na cabeça e segurando no revólver; o que
eu quero é que se case com Eusébia, e hoje mesmo. Se recusa, mato-o.
Tobias apontou-me o
revólver. Que faria eu naquela alternativa, senão aceitar a moça e a riqueza,
apesar de todos os meus escrúpulos?
— Caso! exclamei.
Tobias guardou o
revólver na algibeira, e disse:
— Pois bem, vista-se.
— Já?
— Sem demora. Vista-se
enquanto eu leio. Levantou-se, foi à minha estante, tirou um volume do D.
Quixote, e foi sentar-se outra vez; e enquanto eu, mais morto que vivo, ia
buscar ao guarda-roupa a minha casaca, o desconhecido tomou uns óculos e
preparou-se para ler.
— Quem é este sujeito
que está dormindo tão tranquilo? perguntou ele enquanto limpava os óculos.
— É o dr. Vaz, meu
amigo; quer que lhe apresente?
— Não, senhor, não é
preciso, respondeu Tobias sorrindo maliciosamente.
Vesti-me com vagar
para dar tempo a que algum incidente viesse interromper aquela cena
desagradável para mim. Além disso estava trêmulo, não atinava com a roupa, nem
com a maneira de vestir.
De quando em quando deitava
um olhar para o desconhecido, que lia tranquilamente a obra do imortal
Cervantes.
O meu relógio bateu
onze horas.
Subitamente lembrou-me
que, uma vez na rua, podia eu ter o recurso de encontrar um policial a quem
comunicaria a minha situação, conseguindo ver-me livre do meu importuno sogro.
Outro recurso havia, e
melhor que esse; vinha a ser acordar o dr. Vaz na ocasião da partida (coisa
natural) e ajudado por ele desfazer-me do incógnito.
Efetivamente, vesti-me
o mais depressa que pude, e declarei-me às ordens do Sr. Tobias, que fechou o
livro, foi pô-lo na estante, rebuçou-se no capote, e disse:
— Vamos!
— Peço-lhe entretanto
para acordar o dr. Vaz, que não pode ficar aqui, visto que tem de voltar para
casa, disse-lhe eu dando um passo para a cadeira onde dormia o Vaz.
— Não é preciso,
atalhou Tobias; voltamos dentro de pouco tempo.
Não insisti;
restava-me o recurso do policial, ou de algum escravo se pudesse falar-lhe a
tempo; o escravo era impossível. Quando saímos do quarto o desconhecido deu-me
o braço e desceu comigo rapidamente as escadas até a rua.
À porta de casa havia
um carro.
Tobias convidou-me a
entrar nele.
Não tendo previsto
este incidente, senti fraquear-me as pernas e perdi de todo a esperança de
escapar do meu algoz. Resistir era impossível e arriscado; o homem estava
armado com um argumento poderoso; e além disso, pensava eu, não se discute com
um doido.
Entramos no carro.
Não sei quanto tempo
andamos, nem por que caminho fomos; calculo que não ficou no Rio de janeiro canto
por onde não passássemos. No fim de longos e aflitivos séculos de angústia,
parou o carro diante de uma casa toda iluminada por dentro.
— É aqui, disse o meu
companheiro, desçamos.
A casa era um
verdadeiro palácio; a entrada era ornada de colunas de ordem dórica, o
vestíbulo calçado de mármore branco e preto, e iluminado por um magnífico
candelabro de bronze de forma antiga.
Subimos, eu e ele, por
uma magnífica escada de mármore, até o topo, onde se achavam duas pequenas
estátuas representando Mercúrio e Minerva. Quando chegamos ali o meu
companheiro disse-me apontando para as estátuas:
— São emblemas, meu
caro genro: Minerva quer dizer Eusébia, porque é a sabedoria; Mercúrio, sou eu,
porque representa o comércio.
— Então o senhor é comerciante?
perguntei eu ingenuamente ao desconhecido.
— Fui negociante na
Índia.
Atravessamos duas
salas, e ao chegarmos à terceira encontramos um sujeito velho, a quem Tobias me
apresentou dizendo:
— Aqui está o dr.
Camilo da Anunciação; leve-o para a sala dos convidados, enquanto eu vou mudar
de roupa. Até já, meu caro genro.
E deu-me as costas.
O sujeito velho, que
eu soube depois ser o mordomo da casa, tomou-me pela mão e levou-me a uma
grande sala, que era onde se achavam os convidados.
Apesar da profunda
impressão que me causava aquela aventura, confesso que a riqueza da casa me
assombrava cada vez mais, e não só a riqueza, senão também o gosto e a arte com
que estava preparada.
A sala dos convidados
estava fechada quando lá chegamos; o mordomo bateu três pancadas, e veio abrir
a porta um lacaio, também velho, que me segurou pela mão, ficando o mordomo do
lado de fora.
Nunca me há de
esquecer a vista da sala apenas se me abriram as portas. Tudo ali era estranho
e magnífico. No fundo, em frente da porta de entrada, havia uma grande águia de
madeira fingindo bronze, encostada à parede, com as asas abertas, e
preparando-se como para voar. Do bico da águia pendia um espelho, cuja parte
inferior estava presa às garras, conservando assim a posição inclinada que
costuma ter um espelho de parede.
A sala não era forrada
de papel, mas de seda branca, o teto artisticamente trabalhado; grandes
candelabros, magnífica mobília, flores em profusão, tapetes, tudo enfim quanto
o luxo e o gosto sugerem ao espírito de um homem rico.
Os convidados eram
poucos e, não sei por que coincidência, eram todos velhos, como o mordomo e o
lacaio, e o meu próprio sogro; finalmente velhos como eu também.
Introduzido pelo
criado, fui logo cumprimentado pelas pessoas presentes com uma atenção que me
dispôs logo o ânimo a querer-lhes bem.
Sentei-me numa
cadeira, e vieram reunir-se em roda de mim, todos risonhos e satisfeitos por
ver o genro do incomparável Tobias. Era assim que chamavam ao homem do
revólver.
Acudi como pude às
perguntas que me faziam, e parece que todas as minhas respostas contentavam aos
convidados, porquanto de minuto a minuto choviam sobre mim louvores e
cumprimentos.
Um dos convidados,
homem de setenta anos, condecorado e calvo, disse com aplausos gerais:
— O Tobias não podia
encontrar melhor genro, nem que andasse com uma lanterna por toda a cidade, que
digo? por todo o império; vê-se que o dr. Camilo da Anunciação é um perfeito
cavalheiro, notável por seus talentos, pela gravidade da sua pessoa, e enfim
pelos admiráveis cabelos brancos que lhe adornam a cabeça, mais feliz do que eu
que os perdi há muito.
Suspirou o homem com
tamanha força que parecia estar nos arrancos da morte. A assembleia cobriu de
aplausos as últimas palavras do orador.
Articulei um
agradecimento, e preparei imediatamente os ouvidos para responder a outro
discurso que me foi dirigido por um coronel reformado, e outro finalmente por
uma senhora que, desde a minha entrada, não tirava os olhos de mim.
— Senhora condessa,
disse o coronel quando a senhora acabou de falar, confesse vossa excelência que
os rapazes de hoje não valem este respeitável ancião, futuro genro do
incomparável Tobias.
— Valem nada, coronel!
Em matéria de noivos só o século passado os fornece capazes e bons. Casamentos
de hoje! Abrenúncio! Uns peraltas todos pregadinhos e esticados, sem gravidade,
sem dignidade, sem honestidade!
A conversa assentou
toda neste assunto. O século dezenove sofreu ali um vasto processo; e (talvez
preconceito de velho) falavam tão bem naquele assunto, com tanta discrição e
acerto, que eu acabei por admirá-los.
No meio de tudo,
estava ansioso por conhecer a minha noiva. Era a última curiosidade; e se ela
fosse, como eu imaginava, uma beleza, e além do mais riquíssima, que poderia
exigir da sorte?
Aventurei uma pergunta
nesse sentido a uma senhora que se achava ao pé de mim e em frente à condessa.
Disse-me ela que a noiva estava no toucador, e não tardava muito que eu a
visse. Acrescentou que era linda como o sol.
Entretanto decorrera
uma hora, e nem a noiva, nem o pai, o incomparável Tobias, aparecia na sala.
Qual seria a causa da demora do meu futuro sogro? Para vestir-se não era
preciso tanto tempo. Eu confesso que, apesar da cena do quarto e das
disposições em que vi o homem, estaria mais tranquilo se ele estivesse
presente. É que ao velho já eu tinha visto em minha casa; habituara-me aos seus
gestos e discursos.
No fim de hora e meia
abriu-se a porta para dar entrada a uma nova visita. Imaginem o meu pasmo
quando dei com os olhos no meu amigo dr. Vaz! Não pude abafar um grito de
surpresa, e corri para ele.
— Tu aqui!
— Ingrato! respondeu
sorrindo o Vaz, casas e não convidas ao teu primeiro amigo. Se não fosse esta
carta ainda eu lá estaria no teu quarto à espera.
— Que carta? perguntei
eu.
O Vaz abriu a carta
que trazia na mão e deu-me para ler, enquanto os convidados de longe
contemplavam a cena inesperada, tanto por eles, como por mim.
A carta era de Tobias,
e participava ao Vaz que, tendo eu de casar-me naquela noite, tomava ele a
liberdade de convidá-lo, na qualidade de sogro, para assistir à cerimônia.
— Como vieste?
— Teu sogro mandou-me
um carro.
Aqui fui obrigado a
confessar mentalmente que o Tobias merecia o título de incomparável, como Enéas
o de pio. Compreendi a razão por que não quis que eu o acordasse; era para
causar-lhe a surpresa de vê-lo depois.
Como era natural, quis
o meu amigo que eu lhe explicasse a história do casamento, tão súbito, e eu já
me dispunha a isso, quando a porta se abriu e entrou o dono da casa.
Era outro.
Já não tinha as roupas
esquisitas e o ar singular com que o vira no meu quarto; agora trajava com
aquela elegância grave que cabe a um velho, e pairava-lhe nos lábios o mais
amável sorriso.
— Então, meu caro
genro, disse-me ele depois dos cumprimentos gerais, que me diz à vinda do seu
amigo?
— Digo, meu caro
sogro, que o senhor é uma pérola. Não imaginará talvez o prazer que me deu com
esta surpresa, porque o Vaz foi e é o meu primeiro amigo.
Aproveitei a ocasião
para o apresentar a todos os convidados, que foram de geral acordo em que o dr.
Vaz era um digno amigo do dr. Camilo da Anunciação. O incomparável Tobias
manifestou o desejo e a esperança de que dentro de pouco tempo ficaria a sua
pessoa ligada à de nós ambos, por modo que fôssemos todos designados: os três
amigos do peito.
Bateu meia-noite não
sei em que igreja da vizinhança. Ergueu-se o incomparável Tobias, e disse-me:
— Meu caro genro,
vamos cumprimentar a sua noiva; aproxima-se a hora do casamento.
Levantaram-se todos e
dirigiram-se para a porta da entrada, indo na frente eu, o Tobias e o Vaz.
Confesso que, de todos os incidentes daquela noite, este foi o que mais me
impressionou. A ideia de ir ver uma formosa donzela, na flor da idade, que
devia ser minha esposa — esposa de um velho filósofo já desenganado das ilusões
da vida —, essa ideia, confesso que me aterrou.
Atravessamos uma sala
e chegamos diante de uma porta, meia aberta, dando para outra sala ricamente
iluminada. Abriram a porta dois lacaios, e todos nós entramos.
Ao fundo, sentada num
riquíssimo divã azul, estava já pronta e deslumbrante de beleza a Sra. D.
Eusébia. Tinha eu até então visto muitas mulheres de fascinar; nenhuma chegava
aos pés daquela. Era uma criação de poeta oriental. Comparando a minha velhice
à mocidade de Eusébia, senti-me envergonhado, e tive ímpetos de renunciar ao
casamento.
Fui apresentado à
noiva pelo pai, e recebido por ela com uma afabilidade, uma ternura, que
acabaram por vencer-me completamente. No fim de dois minutos estava eu
cegamente apaixonado.
— Meu pai não podia
escolher melhor marido para mim, disse-me ela fitando-me uns olhos claros e
transparentes; espero que tenha a felicidade de corresponder aos seus méritos.
Balbuciei uma resposta;
não sei o que disse; tinha os olhos embebidos nos dela. Eusébia levantou-se e
disse ao pai:
— Estou pronta.
Pedi que Vaz fosse uma
das testemunhas do casamento, o que foi aceito; a outra testemunha foi o
coronel. A condessa serviu de madrinha.
Saímos dali para a
capela, que era na mesma casa, e pouco retirada; já lá se achavam o padre e o
sacristão. Eram ambos velhos como toda a gente que havia em casa, exceto
Eusébia.
Minha noiva deu o sim
com uma voz forte, e eu com voz fraquíssima; pareciam invertidos os papéis.
Concluído o casamento,
ouvimos um pequeno discurso do padre acerca dos deveres que o casamento impõe e
da santidade daquela cerimônia. O padre era um poço de ciência e um milagre de
concisão; disse muito em pouquíssimas palavras. Soube depois que nunca tinha
ido ao parlamento.
À cerimônia do
casamento seguiu-se um ligeiro chá e alguma música. A condessa dançou um
minueto com o velho condecorado, e assim terminou a festa.
Conduzido aos meus
aposentos por todos os convidados, soube em caminho que o Vaz dormiria lá, por
convite expresso do incomparável Tobias, que fez a mesma fineza aos
circunstantes.
Quando me achei só com
a minha noiva, caí de joelhos e disse-lhe com a maior ternura:
— Tanto vivi para
encontrar agora, já quase no túmulo, a maior ventura que pode caber ao homem,
porque o amor de uma mulher como tu é um verdadeiro presente do céu! Falo em
amor e não sei se tenho direito de o fazer... porque eu sou velho, e tu...
— Cale-se! cale-se!
disse-me Eusébia assustada.
E foi cair num sofá
com as mãos no rosto.
Espantou-me aquele
movimento, e durante alguns minutos fiquei na posição em que estava, sem saber
o que havia de dizer.
Eusébia parecia estar
chorando.
Levantei-me afinal, e
acercando-me do sofá, perguntei-lhe que motivo tinha para aquelas lágrimas.
Não me respondeu.
Tive uma suspeita;
imaginei que Eusébia amava alguém, e que, para castigá-la do crime desse amor,
obrigavam-na a casar com um velho desconhecido a quem ela não podia amar.
Despertou-se-me uma
fibra de D. Quixote. Era uma vítima; cumpria salvá-la. Aproximei-me de Eusébia,
confiei-lhe a minha suspeita, e declarei-lhe a minha resolução.
Quando eu esperava
vê-la agradecer-me de joelhos o nobre impulso das minhas palavras, vi com
surpresa que a moça olhava para mim com ar de compaixão, e dizia-me abanando a
cabeça:
— Desgraçado! é o
senhor quem está perdido!
— Perdido! exclamei eu
dando um salto.
— Sim, perdido!
Cobriu-se-me a testa
de um suor frio; as pernas entraram a tremer-me, e eu para não cair assentei-me
ao pé dela no sofá. Pedi-lhe que me explicasse as suas palavras.
— Por que não? disse
ela; se lhe ocultasse seria cúmplice perante Deus, e Deus sabe que eu sou
apenas um instrumento passivo nas mãos de todos esses homens. Escute. O senhor
é o meu quinto marido; todos os anos, no mesmo dia e à mesma hora, dá-se nesta
casa a cerimônia que o senhor presenciou. Depois, todos me trazem para aqui com
o meu noivo, o qual...
— O qual? perguntei eu
suando.
— Leia, disse Eusébia
indo tirar de uma cômoda um rolo de pergaminho; há um mês que eu pude descobrir
isto, e só há um mês tive a explicação dos meus casamentos todos os anos.
Abri trêmulo o rolo
que ela me apresentava, e li fulminado as seguintes linhas:
Elixir da eternidade,
encontrado numa ruína do Egito, no ano de 402. Em nome da águia preta e dos
sete meninos do Setentrião, salve. Quando se juntarem vinte pessoas e quiserem
gozar do inapreciável privilégio de uma vida eterna, devem organizar uma
associação secreta, e cear todos os anos no dia de São Bartolomeu, um velho
maior de sessenta anos de idade, assado no forno, e beber vinho puro por cima.
Compreende alguém a
minha situação? Era a morte que eu tinha diante de mim, a morte infalível, a
morte dolorosa. Ao mesmo tempo era tão singular tudo quanto eu acabava de
saber, parecia-me tão absurdo o meio de comprar a eternidade com um festim de
antropófagos, que o meu espírito pairava entre a dúvida e o receio, acreditava
e não acreditava, tinha medo e perguntava por quê?
— Essa é a sorte que o
espera, senhor!
— Mas isto é uma
loucura! exclamei; comprar a eternidade com a morte de um homem! Demais, como
sabe que este pergaminho tem relação?...
— Sei, senhor,
respondeu Eusébia; não lhe disse eu que este casamento era o quinto? Onde estão
os outros quatro maridos? Todos eles penetraram neste aposento para saírem meia
hora depois. Alguém os vinha chamar, sob qualquer pretexto, e eu nunca mais os
via. Desconfiei de alguma grande catástrofe; só agora sei o que é.
Entrei a passear agitado;
era verdade que eu ia morrer? era aquela a minha última hora de vida? Eusébia,
assentada no sofá, olhava para mim e para a porta.
— Mas aquele padre,
senhora, perguntei eu parando em frente dela, aquele padre também é cúmplice?
— É o chefe da associação.
— E a senhora! também
é cúmplice, pois que as suas palavras foram um verdadeiro laço; se não fossem
elas eu não aceitaria o casamento...
— Ai! senhor!
respondeu Eusébia lavada em lágrimas; sou fraca, isso sim; mas cúmplice,
jamais. Aquilo que lhe disse foi-me ensinado.
Nisto ouvi um passo
compassado no corredor; eram eles naturalmente.
Eusébia levantou-se
assustada e ajoelhou-se-me aos pés, dizendo com voz surda:
— Não tenho culpa de
nada do que vai acontecer, mas perdoe-me a causa involuntária!
Olhei para ela e
disse-lhe que a perdoava.
Os passos
aproximavam-se.
Dispus-me a vender
caro a minha vida; mas não me lembrava que, além de não ter armas, faltavam-me
completamente as forças.
Quem quer que vinha
andando chegou à porta e bateu. Não respondi logo; mas insistindo de fora nas
pancadas, perguntei:
— Quem está aí?
— Sou eu, respondeu-me
Tobias com voz doce; queira abrir-me a porta.
— Para quê?
— Tenho de
comunicar-lhe um segredo.
— A esta hora!
— É urgente.
Consultei Eusébia com
os olhos; ela abanou tristemente a cabeça.
— Meu sogro, adiemos o
segredo para amanhã.
— É urgentíssimo,
respondeu Tobias, e para não lhe dar trabalho eu mesmo abro com outra chave que
possuo.
Corri à porta, mas era
tarde; Tobias estava na soleira, risonho como se fosse entrar num baile.
— Meu caro genro,
disse ele, peço-lhe que venha comigo à sala da biblioteca; tenho de
comunicar-lhe um importante segredo relativo à nossa família.
— Amanhã, não acha
melhor? disse eu.
— Não, há de ser já!
respondeu Tobias franzindo a testa.
— Não quero!
— Não quer! pois há de
ir.
— Bem sei que sou o
seu quinto genro, meu caro Sr. Tobias.
— Ah! sabe! Eusébia
contou-lhe os outros casamentos; tanto melhor!
E, voltando-se para a
filha, disse com frieza de matar:
— Indiscreta! vou
dar-te o prêmio.
— Senhor Tobias, ela
não tem culpa.
— Não foi ela quem lhe
deu esse pergaminho? perguntou o Tobias apontando para o pergaminho que eu
ainda tinha na mão.
Ficamos aterrados!
Tobias tirou do bolso
um pequeno apito e deu um assobio, ao qual responderam outros; e daí a alguns
minutos estava a alcova invadida por todos os velhos da casa.
— Vamos à festa! disse
o Tobias.
Lancei mão de uma
cadeira e ia atirar contra o sogro, quando Eusébia segurou-me no braço,
dizendo:
— É meu pai!
— Não ganhas nada com
isso, disse Tobias sorrindo diabolicamente; hás de morrer, Eusébia.
E segurando-a pelo
pescoço entregou-a a dois lacaios dizendo:
— Matem-na.
A pobre moça gritava,
mas em vão; os dois lacaios levaram-na para fora, enquanto os outros velhos
seguraram-me pelos braços e pernas, e levaram-me em procissão para uma sala
toda forrada de preto. Cheguei ali mais morto que vivo. Já lá achei o padre
vestido de batina.
Quis ver antes de
morrer o meu pobre amigo Vaz, mas soube pelo coronel que ele estava dormindo, e
não sairia mais daquela casa; era o prato destinado ao ano futuro.
O padre declarou-me
que era o meu confessor; mas eu recusei receber a absolvição do próprio que me
ia matar. Queria morrer impenitente.
Deitaram-me em cima de
uma mesa atado de pés e mãos, e puseram-se todos à roda de mim, ficando à minha
cabeceira um lacaio armado com um punhal.
Depois entrou toda a
companhia a entoar um coro em que eu só distinguia as palavras: “Em nome da
águia preta e dos sete meninos do Setentrião.”
Corria-me o suor em
bagas; eu quase nada via; a ideia de morrer era horrível, apesar dos meus
setenta anos, em que já o mundo não deixa saudades.
Parou o coro e o padre
disse com voz forte e pausada:
— Atenção! Faça o
punhal a sua obra!
Luziu-me pelos olhos a
lâmina do punhal, que se cravou todo no coração; o sangue jorrou-me do peito e
inundou a mesa; eu entre convulsões mortais dei o último suspiro.
Estava morto,
completamente morto, e entretanto ouvia tudo à roda de mim; restava-me uma
certa consciência deste mundo a que já não pertencia.
— Morreu? perguntou o
coronel.
— Completamente,
respondeu Tobias; vão chamar agora as senhoras.
As senhoras chegaram
dali a pouco, curiosas e alegres.
— Então? perguntou a
condessa; temos homem?
— Ei-lo.
As mulheres
aproximaram-se de mim, e ouvi então um elogio unânime dos canibais; todos
concordaram em que eu estava gordo e havia de ser excelente prato.
— Não podemos assá-lo
inteiro; é muito alto e gordo; não cabe no forno; vamos esquartejá-lo; venham
facas.
Estas palavras foram
ditas pelo Tobias, que imediatamente distribuiu os papéis: o coronel
cortar-me-ia a perna esquerda, o condecorado a direita, o padre um braço, ele
outro e a condessa, amiga de nariz de gente, cortaria o meu para comer de
cabidela.
Vieram as facas, e
começou a operação; confesso que eu não sentia nada; só sabia que me haviam
cortado uma perna quando ela era atirada ao chão com estrépito.
— Bem, agora ao forno,
disse Tobias.
De repente ouvi a voz
do Vaz.
— Que é isso, ó
Camilo, que é isso? dizia ele.
Abri os olhos e
achei-me deitado no sofá em minha casa; Vaz estava ao pé de mim.
— Que diabo tens tu?
Olhei espantado para
ele, e perguntei:
— Onde estão eles?
— Eles quem?
— Os canibais!
— Estás doido, homem!
Examinei-me: tinha as
pernas, os braços e o nariz. O quarto era o meu. Vaz era o mesmo Vaz.
— Que pesadelo
tiveste! disse ele. Estava eu a dormir quando acordei com os teus gritos.
— Ainda bem, disse eu.
Levantei-me, bebi
água, e contei o sonho ao meu amigo, que riu muito, e resolveu passar a noite
comigo. No dia seguinte, acordamos tarde e almoçamos alegremente. Ao sair,
disse-me o Vaz:
— Por que não escreves
o teu sonho para o Jornal das Famílias?
— Homem, talvez.
— Pois escreve, que eu
o mando ao Garnier.
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