A última fornada
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Naquele dia era uma lufa-lufa no engenho do Rosas. Desde meia tarde que aquela boa gente trabalhadora algazarrava expansiva, na doce alegria bem ganha de uma rude tarefa acabada.
A mandioca daquele ano — abundante que nem erva, Jesus! — dava quinhentos alqueires e estava toda reduzida a farinha, e farinha torrada e clara, parte ensacada e parte empaiolada já, a que era para negócio e a do gasto da casa. À boca da noite, quando o nordeste de junho, mais afiado e cortante, assobiava e gemia na palha do engenho e nas laranjeiras em redor, após o desfalecimento radiante do sol — fora retirada a última fornada, em largas cuias de meio alqueire. E a família da casa, e moças parentas que tinham vindo ajudar a farinhada, peneiravam umas, numa pequena gamela bem limpa, massa para beijus, enquanto outras a conduziam já para o forno, aglomerando-se em roda e distribuindo-a aos punhados que, dispostos em ordem sobre a chapa escaldante, tomavam logo, na sua brancura, a forma achatada e redonda de pequenas luas.
Nessa encantadora e feminil tarefa, a Mariquinhas Rosas, uma das quatro filhas do velho lavrador, a terceira, a mais graciosa delas, pela adorável vivacidade dos olhos negros rasgados, pela alvura alinhada dos dentes sãos e pelo arrebitado atrevido mas tentador de narizinho curto, era a mais empenhada e adestrada de todas na feitura dos beijus, sobretudo nos de folhas, cuja massa é tomada em maior porção e preparada nas mãos, entre duas folhas tenras de bananeira, à semelhança dos bolos de milho grandes.
No engenho, havia até aos mais remotos cantos um largo e confortante calor de estufa, que vinha da boca do forno em brasas, colocado a um ângulo, e de onde irrompia um grande clarão vermelhante, de uma iluminação intensa e rubra de ciclope, ao sair do braseiro, e branda, esmorecedora e suave no teto e para os outros pontos afastados onde a escuridão agonizante tinha, por vezes, audácias indômitas, tentando invadir tudo quando o fogo desfalecia nas achas. As varas finas da cumeeira, os caibros, o grosso pião a pino, a roda grande dentada, a de cevar, ou bolandeira forrada de uma chapa de folha, límpida e reluzente como prata, toda eriçada das saliências hostis que devoram as raízes, o cocho grande da lavagem, o da escorredura e a imensa almanjarra em arco, que volteia e movimenta tudo no pescoço rijo e impulsor dos bois de canga trabalhadores — destacavam-se como o arcabouço estranho e rude, monstruoso de um animal primitivo, àquela luz enternecedora e saudosa, companheira fiel do trabalho honrado e humilde, e que se ia extinguir, dali a instantes, para sobreviver um ano depois!
Logo que a primeira série de beijus foi retirada do forno, a Mariquinhas, tendo tudo disposto para entrarem as outras, deixou as alegres companheiras e afastou-se dali, apressada, num provocante cadenciar de ancas virgens, porque a mãe a chamara para arrumar o resto da roupa no balaio, enquanto ia, por outro lado, cuidar do trem de cozinha e depois dar uma chegadinha às Areias, ao José Marcelino, que ficava a cem braças.
Era a um canto do engenho, no mais vasto, onde se acomodava toda a família — um lugar dividido apenas em dois por alguns fragmentos das sebes velhas dos carros e dos paióis, postas ao alto e unidas em cima nos caibros, sendo um lado ocupado pelo velho casal e outro pelas raparigas em comum, filhas, parentas e moças da vizinhança, toda essa adorável e ingênua gente dos sítios que, à noite, se reúne e dorme pelos engenhos, na quadra das farinhadas.
O cocho grande, que era o primeiro depósito onde se despejava a farinha já pronta, feito de uma velha e enorme canoa, ficava também desse lado, correndo na direção dos dois quartos, justamente para onde dava a abertura. As últimas fornadas o repletavam já, fazendo no centro um elevado cocuruto de uma brancura de neve, que ia descendo e diminuindo sensivelmente para as extremidades, tal qual um cômoro de areia solta. Desse lado, onde o clarão do forno esmorecia de todo, e sentada na extremidade aberta, numa beirola da madeira, com uma antiga candeia de quatro bicos ao pé, que mal alumiava o obscuro recanto — estava a rapariga muito bem a arrumar a roupa, quando, pela porta dos fundos, surgiu de repente o Manuel Rita, o endiabrado e moreno rapaz que era os seus feitiços, e que, acercando-se logo, como um namorado querido, começou a bolir-lhe nas mãos, no queixo, nos cabelos e nos seios, de olhar aceso e vivíssimo, com as suas costumadas graçolas e cócega. Em seguida, arredando o balaio, e caindo junto aos joelhos da rapariga, que o fixava silenciosamente, com uns olhos meigos e úmidos, cheios de um brilho inefável, extasiada e passiva ante as suas másculas e vencedoras carícias, totalmente entregue aos seus braços grossos e viris, que lhe enlaçavam docemente a cintura — prorrompeu a falar-lhe baixinho, com uma grande doçura. E ia apertando-a contra si, estonteando-a e vencendo-a com o seu hálito morno, a sua voz terna e súplice, trêmulo, resfolegante, febril. Ela, sem forças para se lhe opor, na sua profunda paixão, murmurava apenas, quase indistintamente:
— Não!... Não!...
E desfalecia sobre o montão de farinha nevada, como entre os lençóis puros de um tálamo...
Para os lados do forno, reinava ainda a faina feminil dos beijus, numa algazarra alegre e vivaz, cortada às vezes de cristalinas risadas.
De repente, lá fora, no terreiro, uma voz grossa berrou:
— Ó Manuel Rita, ó diabo! Olha os bois pra canga!
E o rapaz, então, assustado e tremendo, deitou a correr, sem ser visto, para a janela da empena, que galgou de um salto.
— Eh lá, Simão! Já lá vou...
E enveredou para o pasto, cantando o Querido bem, numa toada sonora e vibrante, cheia de notas álacres de triunfo.
Nesse instante, a tia Ana Rosas chegava. Estivera com as do José Marcelino. Lá ainda se raspava e forneava que era um Deus nos acuda. Não era por aqueles seis dias que haviam de acabar. De mais a mais, o José Marcelino, coitado, estava com as maleitas...
As raparigas tinham acabado de torrar os beijus, recolhendo-os em montes e arrumando-os num pequeno cesto. O Simão e o pai, fora, defronte à porta grande de engenho, punham a sebe no carro, que estava já com o cabeçalho suspenso, sobre o muchaco, a canga e os cansis prontos para abrochar os bois.
A velha Ana, com a costumada atividade de mulher magra e trabalhadora, mal entrou da rua, voltou ainda a remexer pelos cantos, do lado do fogão, no caixão do trem, pelos tipitins vazios, pela mesa da prensa, por trás dos cochos, por tudo, à cata de algum objeto esquecido, dando as últimas ordens:
— Andem! Ande! Vejam se não esquecem nada. Olhem que já vai ficando tarde...
O velho Rosas, então, gritou “que o carro estava pronto, que não perdessem tempo, embarcassem. Já era também embromação demais! A que horas iam chegar à casa, Santo Deus!”
As moças enfiaram logo para o terreiro, a pequenas carreiras, aos saltos, aguilhoadas pelas palavras sibilantes da velha, que ralhava esganiçadamente, na precipitação da partida. E quando iam todas a subir para o carro, deram por falta da Mariquinhas, que entraram e chamar alto, censurando-a pela tardança:
— Oh! Mariquinhas! Mariquinhas!
E a qualificavam de “moleza, pamonha, tansa”.
A velha, furiosa, entrou a descompor:
— Anda daí, diabo! Olha que eu lá vou e esfrego-te! Ora espera, ora espera...
E já ia para descer, quando a rapariga apareceu, arrastando-se vagarosamente, de olhar no chão e chorando, com o balaio da roupa debaixo do braço. Ainda de preto, por causa do tio Quincas, que morrera há três meses de barriga d'água, trazia impresso pelas costas, desde a cabeça até à orla do vestido, como um véu transparente de tule. E assim, como quem vai para um estranho noivado, subiu para o carro, contrariada, abatida, sob as suas vestes lutuosas e nupciais.
Os bois puxaram. O Simão, à frente, a aguilhada ao ombro, soltou uma cantiga melancólica. O carro, as cunhas desapertadas, rolava em silêncio pela estrada branca. E no alto, a noite azulada e límpida, como em geral as noites tropicais de inverno no Brasil, tinha um grande esplendor sideral, inteiramente pespontada de ouro.
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