A Taverna de Madame Berthon
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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No
terraço do “Café Leontina”, agasalhados em seus lanzudos pardessus, Odorico e Wenceslau,
dois tipos mundanos, essencialmente mundanos, conversavam surdamente...
Súbito, passou por eles e sumiu-se portas a
dentro, uma figurinha de sacudida mulher, muito morena e muito sensual,
despejando olhares cupidos por todas as bancas.
Odorico enlanguesceu-se, e, como uma reação,
assinalou, assim, a passagem da esquisita-mulher com uma rememoração cruel...
***
— Sempre
é curioso este “Café” em matéria de mulheres. Não vejo esta “Menina Leontina”,
como a chamam, que não me recorde logo da infeliz Madame Berthon.
— E tu,
meu caro Wenceslau, és bem a crônica viva de toda a feminidade desta terra. Não
há uma mulher de quem não tenhas informações, anedotas, segredos, sobre quem
não lances um episódio de curioso entrecho.
— Não
conheceste também a Madame Berthon?
— Somos
os dois extremos: nada escapando ao teu saber e tudo me sendo ignorado...
— Era uma
vaporosa cópia de Helena, capaz de mover guerras, e tentar a inspiração do
artista mais rude para produzir uma obra-prima.
— Alguma
divindade incógnita...
— Não,
mas a causadora de duas mortes: um assassínio e um suicídio. Quem a visse na
simplicidade das suas vestias, no comum dos seus gestos, e na temperança dos
seus costumes, não diria jamais que era a senhora absoluta de um corpo de estátua,
para ser coipiado pelo cinzel mais inspirado... Não se julgue a felicidade dos
fins pelas venturas que povoam a estrada por que trilhamos. Muitas vezes, um
momento de tranquilidade agora é a sementeira de um incomensurável estado de
atribulações mais tarde. Madame Berthon despejava invejas a todas as mulheres
do seu conhecimento. Desta casa tirava ela os meios de sua subsistência. Vi-a
muitas noites, e sonhei com o taciturno aspecto de seu semblante. Taciturno,
sim, porque, no meio da mais ruidosa alegria, aquela mulher era como uma virgem
pálida a que nenhum excesso dê o rubor das faces... Sorria, mas o seu sorriso revestia-se
de uma algoz cambiante de tristeza. Tinha a corte de poderosos pretendentes,
mas decidia-se ordinariamente pelos mais fracos. Se ouvia a repulsa de alguém,
era, ao depois, de um excessivo carinho para com o repelido. E, se a ninguém
prometia, a nenhum negava, e a todos faltava... Curiosíssima mulher! Os seus
hábitos eram os de uma leviana, mas a sua alma contrastava com a sua existência
costumeira. Esquisita mulher, Odorico, muito esquisita, senhora de muitos
corações se tivesse querido, entretanto escrava de um só que a levou,
finalmente, à sepultura. Durante algum tempo a sua tragédia foi a nota do dia.
Um assassínio e um suicídio...
— Foi
sempre assim: em cada mulher há o gérmen de uma fatalidade, mas, em algumas, há
a sementeira de muitos casos fatais.
— Espera,
Odorico, espera. Não condenes a desventurada pelos primeiros tons de sua história.
Juiz mais severo do que eu, não conhecerás, por certo, para o julgamento dessa
gente que pisa sobre escândalos, que veste escândalos, e que escandaliza o
próprio escândalo. De ordinário, a mulher é o algoz, parecendo a extrema
fraqueza. Neste caso, porém, Madame Berthon foi, apenas, a vítima. Se crime ela
teve, foi o de amar o homem que a assassinaria mais tarde. E amou...
conjugalmente, porque nunca traiu aquele com quem coabitava. Às desoras, lá
para as tantas, assim numa hora de madrugada quando o vigilante galo de Ares
cantaria tatalando, como dois esposos, ela e o amante daqui saíam e
recolhiam-se calma e honestamente. De feio que era, o homem haveria de
enciumar-se até de si mesmo, descrendo de ser ele o galã de uma fêmea tão
jeitosa. No mundo dos amores, há, entretanto, essa espécie de compensações: o
feio é conjugado com o bonito, e reciprocamente, o bonito com o feio... Daí a
naturalidade daquela união de Gaspar com a Madame Berthon. Mais de noventa
noites durou aquele consórcio espontâneo. Aqui vinha eu, e naturalmente,
cortejava à mulher gentil, espionando sempre o amante. Os homens todos,
Odorico, saudavam-na com um mesmo entusiasmo viril, como os armentios
saudariam, com ardente fé, a vinda do outono, porque é a estação das colheitas.
Na manhã de um domingo, porém, no ninho dos dois amantes, lá para as águas
furtadas de um sobrado, foi ouvido um movimento oucubo. Vizinhos, espicaçados
pela anormalidade, atenderam ao que se passava na moradia de Madame Berthon.
Depois de acalorada discussão, durante a qual o assassino descera as vidraças,
cautelosamente, para não ser ouvido pelos estranhos, os estampidos de dois
tiros indicaram um triste acontecimento no interior daquela casa. Momentos
após, Gaspar, conduzindo uma bolsa de mão, descia os dois lances de escadas,
abria as portas, e saía, meticuloso e tranquilo, trancando às suas costas a
entrada no sobrado em que cometera o assassinato de Madame Berthon. E, como um
homem feliz, lá se fora rua abaixo. Quem o visse, não lhe diria o autor de um
crime, muito menos quando, no desempenho de um hábito, asseava os botins, e
olhava serenamente o movimento das ruas...
— Revolto-me
já contra esse perverso.
— Pois bem!
O móvel do crime fora o roubo e todas as poupanças daquela operosa mulher
estavam furtadas na bolsa que Gaspar segurava zelosamente. Em torno da casa de
Madame Berthon, com o caso estranho dos dois tiros, populares encostavam-se nas
redondezas do edifício suspeito, arrastando-se como lêmures amerios em trilhas
brancas de areais desertos. Vozes surdas contavam as suposições de um crime; a
suspeita avolumou-se... O rochedo nu da desconfiança vestiu-se fartamente com
os ouropéis das espumas brancas dos comentários. Pelas janelas descidas, olhos
mais perspicazes queriam ver logo os indícios vivos do bárbaro crime. E o tempo
era bastante para que o assassino asseasse as botas e penetrasse no Hotel onde
tinha hospedagem oficial. Nos populares tressuou a vontade da denúncia, e um
indicou a presença próxima de um delegado. Era preciso ânimo também para se ir
retirar a fescenina autoridade do seu aninhamento concupiscente ao lado de uma
concubina... Tudo o mais foi rápido. Num instante abriu-se com violência a entrada.
Um obstáculo apareceu: a porta estava presa, como que escorada por dentro. Que
seria que obstava o seu movimento? Uma cabeça afoita enfiou-se por uma nesga, e
voltou transfigurada, anunciando somente: “Está morta”. Outros tipos mais
curiosos vieram, ajeitaram-se e penetraram com a autoridade. Estatelada sobre o
chão, Madame Berthon, numa nuesa arrebatadora ainda não tinha a gelidez dos
cadáveres, mas já era morta. O seu tórax derramava coalhos de sangue escarlate.
E sobre as suas formas nuas, nada, senão as meias presas com atilhos de fitas
rubras, e as pequenas sapatinhas...
— Que
miséria!
— Já
conheceste a vítima. Daí por diante a ação foi sobre o agente. A perseguição
popular foi ter ao Hotel, e, quando os primeiros perseguidores foram
percebidos, com a mesma arma, alvejando as suas próprias têmporas, Gaspar era
um suicida... Não calculas a impressão que esse crime deixou no meu espírito.
Eu vi a nudez de Madame Berthon, e senti que o assassino não tivesse ficado
vivo para pagar com a reclusão da vida a barbaridade do assassínio de uma
mulher, cujo corpo escultural seria capaz, como o de Mnezarete, de vencer
austeros Areópagos... se desvendado fosse tal como eu o vi... E nota, Odorico,
que um corpo morto, por mais belo que seja, é menos do que o vivo, porque,
quando nada, lhe falta essa umidade quente que é o fluido mais sensual do
mundo. Diante de carnes como as de Madame Berthon, só naturezas muito fortes
não cederão à necrofilia... Então ela que possuía um nevo sobre o quadril
direito...
— Sensualizas
tudo, Wenceslau!
— E que é
que escapa, neste mundo, da sensualidade? A própria morte, como tu deves saber,
é um pedaço de sensualismo microbiano... Quantas fecundações danadas na hora
extrema de um ser?!... Por que, senão pela força dos sexos, baqueou a inditosa
Madame Berthon?!... Recorre à instância do amor que toparas com a absolvição da
mulher, e carregarás a mão na dosagem da condenação do homem algoz.
— Contudo,
sou contra sempre a defesa da mulher. Esta tem sido condescendentemente tratada.
Menos liberdade para ela, mais rigor no senhorio dos homens.
— E como
influiria tudo isto para que Gaspar não vitimasse Madame Berthon?
— Seria
preciso, Wenceslau, que eu te contasse a história desde o começo do mundo, e é
coisa que não se sabe é a data da primeira traição da mulher, de tão distantes
tempos vem ela.
— Andas
atrasado nisto, Odorico. A mulher teve o seu primeiro ato numa traição do
homem, e formada de uma traição, porque foi necessário que Adão adormecesse
para que Jeová, traindo à perfectibilidade da sua obra, lhe tirasse uma costela
do corpo a fim de formar Eva, ela não poderia ser contrária à sua origem...
— És
rigoroso demais...
— Não
sou, não, meu caro. Um grande filósofo, cuja obra leio todos os dias e quanto
mais leio mais ela me ensina, observou bem o que te digo e escreveu
precisamente: “As mulheres têm sido tratadas até aqui, pelos homens, como
pássaros que, descidos de uma altura qualquer, se perderam no meio deles: como
qualquer coisa de estranho, de delicado, de frágil, de selvagem, de doce, de
arrebatador—mas, igualmente, alguma coisa que é necessário engaiolar para que
se não vá embora num voo”... Que é isto senão o reconhecimento do espírito
traiçoeiro de nossas Evas?... Ao demais... estamos muito fora dos eixos... Que
bebemos agora?...
***
Fora do
terraço do “Café Leontina”, solenemente encapotados, dois policiais nem tinham
alma para andar, tamanho era o frio da alta noite...
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