A sonata do luar
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Anoitecia, quando, pela varanda do lado dando para o jardim, nos
encaminhamos para o grande terraço balaustrado da frente, deixando a vasta e
confortável sala de jantar, onde agora duas robustas criadas alemãs, muito
louras, a pele fresca e rosada, os braços saindo nus e roliços das mangas dos
seus corpetes alvos, se agitavam apressadamente, arranjando e pondo em ordem a
bela mesa cheia de flores onde, havia momentos, festejáramos com jubilosa
cordialidade, tocando as taças de Joannisberg, o aniversário de uma dessas
pessoas queridas que são a graça e a bênção de um lar.
Longe, no horizonte, sobre a negra muralha recortada da serra da Boa Vista,
a lua subia, abrindo deliciosamente no espaço o seu imenso sendal luminoso.
Através o crivo escuro das trepadeiras, cujas folhas tremiam à aragem
ciciando-lhes misteriosas carícias, pequenos discos de claridade láctea desciam
até os recantos mais escuros, batendo o mármore do terraço. Mas os balaústres
do centro rasgavam como uma larga janela para o campo, para a amplíssima
paisagem enoitada.
Aí sentamo-nos todos, embevecidos no panorama do rio, estadeando-se nas
voltas flexuosas como uma estranha via láctea, ao longo da grande avenida do
cais. No fio da corrente, onde parecia que ferviam raios de prata em fusão,
barcas a vapor, pequenos lanchões e iates erguiam no ar vagamente a trama fina
das mastreações debruadas de luar. Nos planos da outra margem, terminando em
colinas longínquas, que se esbatiam na sombra difusa, as culturas adormeciam no
silêncio do céu nevoso. Pela barranca cortada a prumo, aqui e além, na sebe
rasa dos arbustos, árvores moças e pujantes, um ou outro tronco decrépito,
torcido já pelos anos e só coroado no alto por um penacho de folhas, inclinavam
as suas franças rendadas, como para ouvir as ondinas que lhes passavam junto às
raízes, cantando.
O maior encanto do quadro era, entretanto, uma pequena ilha fronteira, de
cuja profusa vegetação uma casinha surgia, tendo a um dos extremos uma
gigantesca palmeira, que, semelhante a um mastro, lhe dava o aspecto de uma
velha barca de pastoral de outras épocas, apodrecida à margem de algum canal
esquecido e invadida por uma inundação de verdura. As águas, descendo com violência,
abriam à sua proa de ervagens longos florões prateados, que ondulavam e
fugiam...
Mas, de repente, fraulein Elsa, a
filha do dono da casa, em cuja honra era aquela festa, à frente de um bando
alegre de amigas, apareceu, atravessando o grande salão iluminado, em direção
ao terraço.
As graciosas valquírias chegaram numa grazinada festiva, e, tomando o lugar
em que estávamos, debruçaram-se aos balaústres, a contemplar o esplendor do
luar que nevava todo o céu, a casaria de Blumenau, os cimos altos das colinas,
das árvores, e a longa faixa flexuosa do rio. E de suas bocas mimosas,
exclamações vivas fluíam pela noite admirável. Nisto aproximou-se do grupo o
velho Carlos Schneider, padrinho da festejada, que, dirigindo-se a ela,
pediu-lhe que fosse tocar uma das suas músicas amadas.
Então, um
rapaz imberbe e louro, a estatura gigantesca, atlético e virilmente belo, que
estava de pé a meu lado, meio curvo na sua linha de gentleman, voltou-se todo para a moça e disse-lhe em alemão, numa
acentuação muito íntima:
— Beethoven, Elsa, Beethoven! A Sonata
ao luar...
Elsa, muito alta e airosa no seu vestido claro de crepe, ergueu vivamente o
lindo rosto oval, de uma louçania celeste de corola que se abre, e, com os
grandes olhos azuis, de uma transparência e candidez inefáveis, um sorriso nos
breves lábios rosados, murmurou uma recusa. Mas logo todos repetiram o pedido
num coro solicitante e álacre:
— A Sonata ao
luar! A Sonata ao luar!
Não houve então mais escusa possível. O bando chalrante enveredou para o
salão como uma revoada de andorinhas voltando ao beiral de um castelo do Reno
por uma tarde primaveral — e Elsa foi sentar-se ao piano.
O rapaz louro e atlético seguiu o bando adorável, indo acomodar-se em um
divã, o rosto muito rosado agora à
luz profusa dos lustres e uma radiação amorosa nos seus olhos de faiança.
O velho Schneider e os demais cavalheiros foram colocar-se às portas, numa
atitude de profunda atenção. Leopoldo Schwarz e a esposa, os bons pais de Elsa,
ficaram comigo no terraço, sob o crivo das trepadeiras onde o luar peneirava a
sua luz fosca e alva.
E logo as primeiras notas da sonata saltaram do teclado, voando a todos os
ângulos do salão. Os acordes suaves, de uma sinfonia arrebatadora, ondulavam e
fugiam, deixando no ar como um frêmito de emoções. Envolvia tudo a nevoenta
espiritualidade de um sentimento recôndito, passado em almas que vivem
perpetuamente na adoração do indefinido e do vago, ansiando pela realização de
um amor que se livra nos páramos ilimitados de uma criação transcendente, na
esfera subjetiva das ilusões e dos sonhos.
Mas nessa animosidade nebulosa de afetos idealizados e aspirações levadas
para além da terra até as raias da abstração, havia toda a palpitação e
embevecimento de uma paixão desvairada. E através dessas volutas sutilíssimas
de sons, envolvendo como um fio de melodia dois corações que, polarizados pelo
mesmo impulso, se atraem e se fundem num só anseio de ideal, sem conseguirem
entretanto a desejada ascensão ao seu Éden sonhado, se desenhava vagamente a
iniludível realidade da estância mais notável, talvez, da vida do grande
artista, que concebera, num arroubo divino, aquela sonata genial.
Sob a grande execução, eu sentia debuxar-se, em meu espírito, o esquisso
desse lied germânico. Era num velho solar
palatino, por uma noite clara do norte. Um cavaleiro enamorado estaca
subitamente o corcel sob as ramas das carvalheiras junto de um torreão
rendilhado. A lua, com a sua luz misteriosa e vaga, banha docemente os vitrais
coloridos da janela gótica. Vibrando o seu alaúde, o paladino amante solta as
primeiras estrofes sonoras de um meigo e velho rimance. Então a ogiva rútila
estremece e um perfil louro de visão se debruça, arrebatado pelo canto. Depois
o trovador emudece. E as horas voam no silêncio da noite nevada. Por fim, um
cicio de frases e beijos de amor passa de uma à outra boca, de um a outro
coração. É o momento da partida. Adeus, meu sol, meu tesouro! Adeus, adorado
amor! E o cavaleiro galopa, fugindo na estrada branca.
Quando a última nota da sonata findou,
Elsa ergueu-se, risonha e cheia de graça, com o seu alto porte de valquíria e a
sua bela cabeleira loura. Todos correram a saudá-la, as moças como os rapazes,
num alvoroço festivo.
O último, porém, que a saudou foi o jovem Apolo germânico, que se sentara
ao divã. Mas a sua galanteria
merecera tal acolhimento da moça que eu, vendo-os assim tão unidos, as mãos
enlaçadas como num enlevo feliz, fiquei a pensar, por instantes, nos
personagens ideais daquela sonata mágica.
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