A sombra do Romariz
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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— Dizer que não trabalho mais à
noite, no jornal, não é bem verdade. Licenciei-me por alguns meses, para lá não
ir à noite. Quando há desses turumbambas políticos, na cidade, fujo do trabalho
noturno. E faço semelhante coisa principalmente quando vejo certos nomes
metidos neles.
Quem expunha isto era o tipógrafo
Brandão a seu colega Barbalho que tinha observado àquele a sua ausência das
oficinas do Diário Carioca, naqueles
últimos dias.
Brandão continuou:
— Quando vejo tais nomes fico
cheio de pavor, meu ânimo se estiola, não tenho coragem para nada, toda a minha
personalidade é atingida de seca. Há dias, a mulher me pediu que fosse
reconhecer a firma de um papel necessário a ela, a fim de receber uma pensão.
Fui para a oficina, de manhã, hesitei, tive medo, afinal dei uma gorjeta a um
aprendiz, para ir ao tabelião.
— Então, sempre estás trabalhando
de dia?
— Que fazer? Preciso de algum
dinheiro para as despesas inadiáveis; mas, à noite, nunca.
— Por que isto?
— É a sombra do Romariz.
— Quem é ou quem foi esse
Romariz?
— Eu te conto. Em 1890,
acabava-se de proclamar a República. Isto há trinta anos. Eu tinha vinte e
poucos. De dia, trabalhava na Casa Mont’Alverne; e, à noite, fazia uns bicos,
na Tribuna Liberal. Um jornal
apaixonadamente monarquista que atacava o governo provisório sem peso, nem
medida. A bem dizer, não o lia ou mal o lia, porque, quando deixava a oficina
da Tribuna, para pegar o último bonde
de Vila Isabel,341 onde morava, ele ainda não estava impresso.
A campanha da Tribuna era superiormente feita e levada
com rijeza, no dizer de todos. Começou-se a falar que iam empastelar a folha. O
governo desmentiu, assinando que era seu ponto de honra manter a liberdade de
pensamento e de imprensa.
Continuei a trabalhar com mais
coragem e sossego. Vi senão quando, aí pelas oito ou nove horas, entrar pela
oficina adentro o aprendiz assustado e avisando cheio de terror: “Fujam! Fujam!
Lá vêm eles!”. Perguntado o que havia, contou que descia pela Rua do Ouvidor um
magote de gente, fardados e outros à paisana, a gritar: “Morram os
sebastianistas! Morra a Tribuna Liberal!
Viva o marechal Deodoro!” etc. etc.
À vista da narração do pequeno,
todos trataram de fugir. Em nenhuma seção do jornal ficou viva alma. Redatores,
revisores, compositores, impressores — todos fugiram. Só ficou no edifício o
Romariz, um pobre revisor que dormia profundamente, descansando a cabeça sobre
os braços cruzados e estes sobre a mesa de trabalho.
Por mais que o sacudissem e o
chamassem, não foi possível despertá-lo. O tempo urgia; e o infeliz revisor lá
ficou abandonado. Ele vivia tresnoitado; trabalhava dia e noite para manter a
mãe e os irmãos. Tinha um pequeno emprego na estrada de ferro, que mal lhe dava
para pagar a casa em subúrbio longínquo; lançara mão do ofício de revisor de
provas, para acrescentar sua renda. Saía tarde do jornal; havia poucos trucks naquele tempo; e, muitas vezes,
só ia em casa para mudar o colarinho, comer um pouco e voltar à cidade, a fim
de assinar o ponto na Central.
Como te disse, foi ele o único
que ficou, devido a seu profundo sono, perfeitamente explicável como tu já
viste. Os assaltantes foram entrando, quebrando balcões, máquinas, derramando
as caixas de tipos no chão, enquanto outros subiam ao primeiro andar cheios de
raiva que, neles, nada explicava. Topando com o Romariz dormindo, nem se deram
ao trabalho de despertá-lo. Foram-no desancando de cacete e de coices de armas
na cabeça e ele mesmo sem saber por quê. Vi-lhe o cadáver, estava hediondo;
vi-lhe a família, que ficava na maior miséria; vi...
— E daí?
— Daí é que quando há desses
turumbambas políticos, vejo a sombra do Romariz que me diz: “Não vás trabalhar
à noite”.
— És espírita?
— Não; mas há muito mistério nesta
nossa triste vida terrena.
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