A
Sereníssima República
CONFERÊNCIA
DO CÔNEGO VARGAS
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Meus senhores,
Antes de comunicar-vos uma descoberta, que
reputo de algum lustre para o nosso país, deixai que vos agradeça a prontidão
com que acudistes ao meu chamado. Sei que um interesse superior vos trouxe
aqui; mas não ignoro também, — e fora ingratidão ignorá-lo, — que um pouco de
simpatia pessoal se mistura à vossa legítima curiosidade científica. Oxalá
possa eu corresponder a ambas.
Minha descoberta não é recente; data do fim
do ano de 1876. Não a divulguei então, — e, a não ser o Globo, interessante diário desta capital, não a divulgaria ainda
agora, — por uma razão que achará fácil entrada no vosso espírito. Esta obra de
que venho falar-vos, carece de retoques últimos, de verificações e experiências
complementares. Mas o Globo noticiou
que um sábio inglês descobriu a linguagem fônica dos insetos, e cita o estudo
feito com as moscas. Escrevi logo para a Europa e aguardo as respostas com
ansiedade. Sendo certo, porém, que pela navegação aérea, invento do padre
Bartolomeu, é glorificado o nome estrangeiro, enquanto o do nosso patrício mal
se pode dizer lembrado dos seus naturais, determinei evitar a sorte do insigne
Voador, vindo a esta tribuna, proclamar alto e bom som, à face do universo, que
muito antes daquele sábio, e fora das ilhas britânicas, um modesto naturalista
descobriu coisa idêntica, e fez com ela obra superior.
Senhores, vou assombrar-vos, como teria
assombrado a Aristóteles, se lhe perguntasse: Credes que se possa dar regímen
social às aranhas? Aristóteles responderia negativamente, como vós todos,
porque é impossível crer que jamais se chegasse a organizar socialmente esse
articulado arisco, solitário, apenas disposto ao trabalho, e dificilmente ao
amor. Pois bem, esse impossível fi-lo eu.
Ouço um riso, no meio do sussurro de
curiosidade. Senhores, cumpre vencer os preconceitos. A aranha parece-vos
inferior, justamente porque não a conheceis. Amais o cão, prezais o gato e a
galinha, e não advertis que a aranha não pula nem ladra como o cão, não mia
como o gato, não cacareja como a galinha, não zune nem morde como o mosquito,
não nos leva o sangue e o sono como a pulga. Todos esses bichos são o modelo
acabado da vadiação e do parasitismo. A mesma formiga, tão gabada por certas
qualidades boas, dá no nosso açúcar e nas nossas plantações, e funda a sua
propriedade roubando a alheia. A aranha, senhores, não nos aflige nem defrauda;
apanha as moscas, nossas inimigas, fia, tece, trabalha e morre. Que melhor
exemplo de paciência, de ordem, de previsão, de respeito e de humanidade?
Quanto aos seus talentos, não há duas opiniões. Desde Plínio até Darwin, os
naturalistas do mundo inteiro formam um só coro de admiração em torno desse
bichinho, cuja maravilhosa teia a vassoura inconsciente do vosso criado destrói
em menos de um minuto. Eu repetiria agora esses juízos, se me sobrasse tempo; a
matéria, porém, excede o prazo, sou constrangido a abreviá-la. Tenho-os aqui,
não todos, mas quase todos; tenho, entre eles, esta excelente monografia de
Buchner, que com tanta sutileza estudou a vida psíquica dos animais. Citando
Darwin e Buchner, é claro que me restrinjo à homenagem cabida a dois sábios de
primeira ordem, sem de nenhum modo absolver (e as minhas vestes o proclamam) as
teorias gratuitas e errôneas do materialismo.
Sim, senhores, descobri uma espécie araneida
que dispõe do uso da fala; coligi alguns, depois muitos dos novos articulados,
e organizei-os socialmente. O primeiro exemplar dessa aranha maravilhosa
apareceu-me no dia 15 de dezembro de 1876. Era tão vasta, tão colorida, dorso
rubro, com listras azuis, transversais, tão rápida nos movimentos, e às vezes
tão alegre, que de todo me cativou a atenção. No dia seguinte vieram mais três,
e as quatro tomaram posse de um recanto de minha chácara. Estudei-as
longamente; achei-as admiráveis. Nada, porém, se pode comparar ao pasmo que me
causou a descoberta do idioma araneida, uma língua, senhores, nada menos que
uma língua rica e variada, com a sua estrutura sintática, os seus verbos,
conjugações, declinações, casos latinos e formas onomatopaicas, uma língua que
estou gramaticando para uso das academias, como o fiz sumariamente para meu
próprio uso. E fi-lo, notai bem, vencendo dificuldades aspérrimas com uma
paciência extraordinária. Vinte vezes desanimei; mas o amor da ciência dava-me
forças para arremeter a um trabalho, que hoje declaro, não chegaria a ser feito
duas vezes na vida do mesmo homem.
Guardo para outro recinto a descrição técnica
do meu aracnídeo, e a análise da língua. O objeto desta conferência é, como
disse, ressalvar os direitos da ciência brasileira, por meio de um protesto em
tempo; e, isto feito, dizer-vos a parte em que reputo a minha obra superior à
do sábio de Inglaterra. Devo demonstrá-lo, e para este ponto chamo a vossa
atenção.
Dentro de um mês tinha comigo vinte aranhas;
no mês seguinte cinquenta e cinco; em março de 1877 contava quatrocentas e
noventa. Duas forças serviram principalmente à empresa de as congregar: — o
emprego da língua delas, desde que pude discerni-la um pouco, e o sentimento de
terror que lhes infundi. A minha estatura, as vestes talares, o uso do mesmo
idioma, fizeram-lhes crer que era eu o deus das aranhas, e desde então adoraram-me.
E vede o benefício desta ilusão. Como as acompanhasse com muita atenção e
miudeza, lançando em um livro as observações que fazia, cuidaram que o livro
era o registro dos seus pecados, e fortaleceram-me ainda mais na prática das
virtudes. A flauta também foi um grande auxiliar. Como sabeis, ou deveis saber,
elas são doidas por música.
Não bastava associá-las; era preciso dar-lhes
um governo idôneo. Hesitei na escolha; muitos dos atuais pareciam-me bons,
alguns excelentes, mas todos tinham contra si o existirem. Explico-me. Uma
forma vigente de governo ficava exposta a comparações que poderiam
amesquinhá-la. Era-me preciso, ou achar uma forma nova, ou restaurar alguma
outra abandonada. Naturalmente adotei o segundo alvitre, e nada me pareceu mais
acertado do que uma república, à maneira de Veneza, o mesmo molde, e até o
mesmo epíteto. Obsoleto, sem nenhuma analogia, em suas feições gerais, com
qualquer outro governo vivo, cabia-lhe ainda a vantagem de um mecanismo
complicado, — o que era meter à prova as aptidões políticas da jovem sociedade.
Outro motivo determinou a minha escolha.
Entre os diferentes modos eleitorais da antiga Veneza, figurava o do saco e
bolas, iniciação dos filhos da nobreza no serviço do Estado. Metiam-se as bolas
com os nomes dos candidatos no saco, e extraía-se anualmente um certo número,
ficando os eleitos desde logo aptos para as carreiras públicas. Este sistema
fará rir aos doutores do sufrágio; a mim não. Ele exclui os desvarios da
paixão, os desazos da inépcia, o congresso da corrupção e da cobiça. Mas não
foi só por isso que o aceitei; tratando-se de um povo tão exímio na fiação de
suas teias, o uso do saco eleitoral era de fácil adaptação, quase uma planta
indígena.
A proposta foi aceita. Sereníssima República
pareceu-lhes um título magnífico, roçagante, expansivo, próprio a engrandecer a
obra popular.
Não direi, senhores, que a obra chegou à
perfeição, nem que lá chegue tão cedo. Os meus pupilos não são os solários de
Campanela ou os utopistas de Morus; formam um povo recente, que não pode trepar
de um salto ao cume das nações seculares. Nem o tempo é operário que ceda a
outro a lima ou o alvião; ele fará mais e melhor do que as teorias do papel,
válidas no papel e mancas na prática. O que posso afirmar-vos é que, não
obstante as incertezas da idade, eles caminham, dispondo de algumas virtudes,
que presumo, essenciais à duração de um Estado. Uma delas, como já disse, é a
perseverança, uma longa paciência de Penélope, segundo vou mostrar-vos.
Com efeito, desde que compreenderam que no
ato eleitoral estava a base da vida pública, trataram de o exercer com a maior
atenção. O fabrico do saco foi uma obra nacional. Era um saco de cinco
polegadas de altura e três de largura, tecido com os melhores fios, obra sólida
e espessa. Para compô-lo foram aclamadas dez damas principais, que receberam o
título de mães da república, além de outros privilégios e foros. Uma
obra-prima, podeis crê-lo. O processo eleitoral é simples.
As bolas recebem os nomes dos candidatos, que
provarem certas condições, e são escritas por um oficial público, denominado
“das inscrições”. No dia da eleição, as bolas são metidas no saco e tiradas
pelo oficial das extrações, até perfazer o número dos elegendos. Isto que era
um simples processo inicial na antiga Veneza, serve aqui ao provimento de todos
os cargos.
A eleição fez-se a princípio com muita
regularidade; mas, logo depois, um dos legisladores declarou que ela fora
viciada, por terem entrado no saco duas bolas com o nome do mesmo candidato. A assembleia
verificou a exatidão da denúncia, e decretou que o saco, até ali de três
polegadas de largura, tivesse agora duas; limitando-se a capacidade do saco,
restringia-se o espaço à fraude, era o mesmo que suprimi-la. Aconteceu, porém,
que na eleição seguinte, um candidato deixou de ser inscrito na competente
bola, não se sabe se por descuido ou intenção do oficial público. Este declarou
que não se lembrava de ter visto o ilustre candidato, mas acrescentou
nobremente que não era impossível que ele lhe tivesse dado o nome; neste caso
não houve exclusão, mas distração. A assembleia, diante de um fenômeno
psicológico inelutável, como é a distração, não pôde castigar o oficial; mas,
considerando que a estreiteza do saco podia dar lugar a exclusões odiosas,
revogou a lei anterior e restaurou as três polegadas.
Nesse ínterim, senhores, faleceu o primeiro
magistrado, e três cidadãos apresentaram-se candidatos ao posto, mas só dois
importantes, Hazeroth e Magog, os próprios chefes do partido retilíneo e do
partido curvilíneo. Devo explicar-vos estas denominações. Como eles são
principalmente geômetras, é a geometria que os divide em política. Uns entendem
que a aranha deve fazer as teias com fios retos, é o partido retilíneo; —
outros pensam, ao contrário, que as teias devem ser trabalhadas com fios
curvos, — é o partido curvilíneo. Há ainda um terceiro partido, misto e
central, com este postulado: as teias devem ser urdidas de fios retos e fios
curvos; é o partido reto-curvilíneo; e finalmente, uma quarta divisão política,
o partido antirreto-curvilíneo, que fez tábua rasa de todos os princípios
litigantes, e propõe o uso de umas teias urdidas de ar, obra transparente e
leve, em que não há linhas de espécie alguma. Como a geometria apenas poderia
dividi-los, sem chegar a apaixoná-los, adotaram uma simbólica. Para uns, a
linha reta exprime os bons sentimentos, a justiça, a probidade, a inteireza, a
constância, etc., ao passo que os sentimentos ruins ou inferiores, como a
bajulação, a fraude, a deslealdade, a perfídia, são perfeitamente curvos. Os
adversários respondem que não, que a linha curva é a da virtude e do saber,
porque é a expressão da modéstia e da humildade; ao contrário, a ignorância, a
presunção, a toleima, a parlapatice, são retas, duramente retas. O terceiro
partido, menos anguloso, menos exclusivista, desbastou a exageração de uns e
outros, combinou os contrastes, e proclamou a simultaneidade das linhas como a
exata cópia do mundo físico e moral. O quarto limita-se a negar tudo.
Nem Hazeroth nem Magog foram eleitos. As suas
bolas saíram do saco, é verdade, mas foram inutilizadas, a do primeiro por
faltar a primeira letra do nome, a do segundo por lhe faltar a última. O nome
restante e triunfante era o de um argentário ambicioso, político obscuro, que
subiu logo à poltrona ducal, com espanto geral da república. Mas os vencidos
não se contentaram de dormir sobre os louros do vencedor; requereram uma
devassa. A devassa mostrou que o oficial das inscrições intencionalmente
viciara a ortografia de seus nomes. O oficial confessou o defeito e a intenção;
mas explicou-os dizendo que se tratava de uma simples elipse; delito, se o era,
puramente literário. Não sendo possível perseguir ninguém por defeitos de
ortografia ou figuras de retórica, pareceu acertado rever a lei. Nesse mesmo
dia ficou decretado que o saco seria feito de um tecido de malhas, através das
quais as bolas pudessem ser lidas pelo público, e, ipso facto, pelos mesmos candidatos, que assim teriam tempo de
corrigir as inscrições.
Infelizmente, senhores, o comentário da lei é
a eterna malícia. A mesma porta aberta à lealdade serviu à astúcia de um certo
Nabiga, que se conchavou com o oficial das extrações, para haver um lugar na assembleia.
A vaga era uma, os candidatos três; o oficial extraiu as bolas com os olhos no
cúmplice, que só deixou de abanar negativamente a cabeça, quando a bola pegada
foi a sua. Não era preciso mais para condenar a ideia das malhas. A assembleia,
com exemplar paciência, restaurou o tecido espesso do regímen anterior; mas,
para evitar outras elipses, decretou a validação das bolas cuja inscrição
estivesse incorreta, uma vez que cinco pessoas jurassem ser o nome inscrito o
próprio nome do candidato.
Este novo estatuto deu lugar a um caso novo e
imprevisto, como ides ver. Tratou-se de eleger um coletor de espórtulas,
funcionário encarregado de cobrar as rendas públicas, sob a forma de espórtulas
voluntárias. Eram candidatos, entre outros, um certo Caneca e um certo
Nebraska. A bola extraída foi a de Nebraska. Estava errada, é certo, por lhe faltar
a última letra; mas, cinco testemunhas juraram, nos termos da lei, que o eleito
era o próprio e único Nebraska da república. Tudo parecia findo, quando o
candidato Caneca requereu provar que a bola extraída não trazia o nome de
Nebraska, mas o dele. O juiz de paz deferiu ao peticionário. Veio então um
grande filólogo, — talvez o primeiro da república, além de bom metafísico, e
não vulgar matemático, — o qual provou a coisa nestes termos:
— Em primeiro lugar, disse ele, deveis notar
que não é fortuita a ausência da última letra do nome Nebraska. Por que motivo
foi ele inscrito incompletamente? Não se pode dizer que por fadiga ou amor da
brevidade, pois só falta a última letra, um simples a. Carência de espaço?
Também não; vede; há ainda espaço para duas ou três sílabas. Logo, a falta é
intencional, e a intenção não pode ser outra senão chamar a atenção do leitor
para a letra k, última escrita, desamparada, solteira, sem sentido. Ora, por um
efeito mental, que nenhuma lei destruiu, a letra reproduz-se no cérebro de dois
modos, a forma gráfica e a forma sônica; k
e ca. O defeito, pois, no nome
escrito, chamando os olhos para a letra final, incrusta desde logo no cérebro
esta primeira sílaba: Ca. Isto posto, o movimento natural do espírito é ler o
nome todo; volta-se ao princípio, à inicial ne, do nome Nebrask. — Cane. —
Resta a sílaba do meio, bras, cuja
redução a esta outra sílaba ca,
última do nome Caneca, é a coisa mais demonstrável do mundo. E, todavia, não a
demonstrarei, visto faltar-vos o preparo necessário ao entendimento da
significação espiritual ou filosófica da sílaba, suas origens e efeitos, fases,
modificações, consequências lógicas e sintáxicas, dedutivas ou indutivas,
simbólicas e outras. Mas, suposta a demonstração, aí fica a última prova, evidente,
clara, da minha afirmação primeira pela anexação da sílaba ca às duas Cane, dando
este nome Caneca.
A lei emendou-se, senhores, ficando abolida a
faculdade da prova testemunhal e interpretativa dos textos, e introduzindo-se
uma inovação, o corte simultâneo de meia polegada na altura e outra meia na
largura do saco. Esta emenda não evitou um pequeno abuso na eleição dos
alcaides, e o saco foi restituído às dimensões primitivas, dando-se-lhe,
todavia, a forma triangular. Compreendeis que esta forma trazia consigo uma
consequência: ficavam muitas bolas no fundo. Daí a mudança para a forma
cilíndrica; mais tarde deu-se-lhe o aspecto de uma ampulheta, cujo
inconveniente se reconheceu ser igual ao triângulo, e então adotou-se a forma
de um crescente, etc. Muitos abusos, descuidos e lacunas tendem a desaparecer,
e o restante terá igual destino, não inteiramente, decerto, pois a perfeição
não é deste mundo, mas na medida e nos termos do conselho de um dos mais
circunspetos cidadãos da minha república, Erasmus, cujo último discurso sinto
não poder dar-vos integralmente. Encarregado de notificar a última resolução
legislativa às dez damas, incumbidas de urdir o saco eleitoral, Erasmus
contou-lhes a fábula de Penélope, que fazia e desfazia a famosa teia, à espera
do esposo Ulisses.
— Vós sois a Penélope da nossa república,
disse ele ao terminar; tendes a mesma castidade, paciência e talentos. Refazei
o saco, amigas minhas, refazei o saco, até que Ulisses, cansado de dar às
pernas, venha tomar entre nós o lugar que lhe cabe. Ulisses é a Sapiência.
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