A
Senhora Galvão
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Começaram a rosnar dos amores deste advogado
com a viúva do brigadeiro, quando eles não tinham ainda passado dos primeiros
obséquios. Assim vai o mundo. Assim se fazem algumas reputações más, e, o que
parece absurdo, algumas boas. Com efeito, há vidas que só têm prólogo; mas toda
a gente fala do grande livro que se lhe segue, e o autor morre com as folhas em
branco. No presente caso, as folhas escreveram-se, formando todas um grosso
volume de trezentas páginas compactas, sem contar as notas. Estas foram postas
no fim, não para esclarecer, mas para recordar os capítulos passados; tal é o
método nesses livros de colaboração. Mas a verdade é que eles apenas combinavam
no plano, quando a mulher do advogado recebeu este bilhete anônimo:
Não é possível que a senhora se deixe embair
mais tempo, tão escandalosamente, por uma de suas amigas, que se consola da
viuvez, seduzindo os maridos alheios, quando bastava conservar os cachos...
Que cachos? Maria Olímpia não perguntou que
cachos eram; eram da viúva do brigadeiro, que os trazia por gosto, e não por
moda. Creio que isto se passou em 1853. Maria Olímpia leu e releu o bilhete;
examinou a letra, que lhe pareceu de mulher e disfarçada, e percorreu
mentalmente a primeira linha das suas amigas, a ver se descobria a autora. Não
descobriu nada, dobrou o papel e fitou o tapete do chão, caindo-lhe os olhos
justamente no ponto do desenho em que dois pombinhos ensinavam um ao outro a
maneira de fazer de dois bicos um bico. Há dessas ironias do acaso, que dão
vontade de destruir o universo. Afinal meteu o bilhete no vestido, e encarou a
mucama, que esperava por ela, e que lhe perguntou:
— Nhanhã não quer mais ver o xale?
Maria Olímpia pegou no xale que a mucama lhe
dava e foi pô-lo aos ombros, defronte do espelho. Achou que lhe ficava bem,
muito melhor que à viúva. Cotejou as suas graças com as da outra. Nem os olhos
nem a boca eram comparáveis; a viúva tinha os ombros estreitinhos, a cabeça
grande, e o andar feio. Era alta; as que tinha ser alta? E os trinta e cinco
anos de idade, mais nove que ela? Enquanto fazia essas reflexões, ia compondo,
pregando e despregando o xale.
— Este parece melhor que o outro, aventurou a
mucama.
— Não sei... disse a senhora, chegando-se
mais para a janela, com os dois nas mãos.
— Bota o outro, nhanhã.
A nhanhã obedeceu. Experimentou cinco xales
dos dez que ali estavam, em caixas, vindos de uma loja da Rua da Ajuda.
Concluiu que os dois primeiros eram os melhores; mas aqui surgiu uma
complicação — mínima, realmente — mas tão sutil e profunda na solução, que não
vacilo em recomendá-la aos nossos pensadores de 1906. A questão era saber
qual dos dois xales escolheria, uma vez que o marido, recente advogado,
pedia-lhe que fosse econômica. Contemplava-os alternadamente, e ora preferia
um, ora outro. De repente, lembrou-lhe a aleivosia do marido, a necessidade de
mortificá-lo, castigá-lo, mostrar-lhe que não era peteca de ninguém, nem
maltrapilha; e, de raiva, comprou ambos os xales.
Ao bater das quatros horas (era a hora do
marido) nada de marido. Nem às quatro, nem às quatro e meia. Maria Olímpia
imaginava uma porção de coisas aborrecidas, ia à janela, tornava a entrar, temia
um desastre ou doença repentina; pensou também que fosse uma sessão do júri.
Cinco horas, e nada. Os cachos da viúva também negrejavam diante dela, entre a
doença e o júri, com uns tons de azul-ferrete, que era provavelmente a cor do
diabo. Realmente era para exaurir a paciência de uma moça de vinte e seis anos.
Vinte e seis anos; não tinha mais. Era filha de um deputado do tempo da
Regência, que a deixou menina; e foi uma tia que a educou com muita distinção.
A tia não a levou muito cedo a bailes e espetáculos. Era religiosa, conduziu-a
primeiro à igreja. Maria Olímpia tinha a vocação da vida exterior, e, nas
procissões e missas cantadas, gostava principalmente do rumor, da pompa; a
devoção era sincera, tíbia e distraída. A primeira coisa que ela via na tribuna
das igrejas, era a si mesma. Tinha um gosto particular em olhar de cima para
baixo, fitar a multidão das mulheres ajoelhadas ou sentadas, e os rapazes, que,
por baixo do coro ou nas portas laterais, temperavam com atitudes namoradas as
cerimônias latinas. Não entendia os sermões; o resto, porém, orquestra, canto,
flores, luzes, sanefas, ouros, gentes, tudo exercia nela um singular feitiço.
Magra devoção, que escasseou ainda mais com o primeiro espetáculo e o primeiro
baile. Não alcançou a Candiani, mas ouviu a Ida Edelvira, dançou à larga, e
ganhou fama de elegante.
Eram cinco horas e meia, quando o Galvão
chegou. Maria Olímpia, que então passeava na sala, tão depressa lhe ouviu os
pés, fez o que faria qualquer outra senhora na mesma situação: pegou de um
jornal de modas, e sentou-se, lendo, com um grande ar de pouco caso. Galvão
entrou ofegante, risonho, cheio de carinhos, perguntando-lhe se estava zangada,
e jurando que tinha um motivo para a demora, um motivo que ela havia de
agradecer, se soubesse...
— Não é preciso, interrompeu ela friamente.
Levantou-se; foram jantar. Falaram pouco; ela
menos que ele, mas em todo o caso, sem parecer magoada. Pode ser que entrasse a
duvidar da carta anônima; pode ser também que os dois xales lhe pesassem na consciência.
No fim do jantar, Galvão explicou a demora; tinha ido, a pé, ao teatro
Provisório, comprar um camarote para essa noite: davam os Lombardos. De lá, na volta, foi encomendar um carro...
— Os Lombardos?
interrompeu Maria Olímpia.
— Sim; canta o Laboceta, canta a Jacobson; há
bailado. Você nunca ouviu os Lombardos?
— Nunca.
— E aí está por que me demorei. Que é que
você merecia agora? Merecia que eu lhe cortasse a ponta desse narizinho
arrebitado...
Como ele acompanhasse o dito com um gesto, ela
recuou a cabeça; depois acabou de tomar o café. Tenhamos pena da alma desta
moça. Os primeiros acordes dos Lombardos
ecoavam nela, enquanto a carta anônima lhe trazia uma nota lúgubre, espécie de requiem. E por que é que a carta não
seria uma calúnia? Naturalmente não era outra coisa: alguma invenção de
inimigos, ou para afligi-la, ou para fazê-los brigar. Era isto mesmo.
Entretanto, uma vez que estava avisada, não os perderia de vista. Aqui
acudiu-lhe uma ideia: consultou o marido se mandaria convidar a viúva.
— Não, respondeu ele; o carro só tem dois
lugares, e eu não hei de ir na boleia.
Maria Olímpia sorriu de contente, e
levantou-se. Há muito tempo que tinha vontade de ouvir os Lombardos. Vamos aos Lombardos!
Trá, lá, lá, lá... Meia hora depois foi vestir-se. Galvão, quando a viu pronta
daí a pouco, ficou encantado. "Minha mulher é linda", pensou ele; e
fez um gesto para estreitá-la ao peito; mas a mulher recuou, pedindo-lhe que
não a amarrotasse. E, como ele, por umas veleidades de camareiro, pretendeu
consertar-lhe a pluma do cabelo, ela disse-lhe enfastiada:
— Deixa, Eduardo! Já veio o carro?
Entraram no carro e seguiram para o teatro.
Quem é que estava no camarote contíguo ao deles? Justamente a viúva e a mãe.
Esta coincidência, filha do acaso, podia fazer crer algum ajuste prévio. Maria
Olímpia chegou a suspeitá-lo; mas a sensação da entrada não lhe deu tempo de
examinar a suspeita. Toda a sala voltara-se para vê-la, e ela bebeu, a tragos
demorados, o leite da admiração pública. Demais, o marido teve a inspiração,
maquiavélica, de lhe dizer ao ouvido: "Antes a mandasses convidar;
ficava-nos devendo o favor". Qualquer suspeita cairia diante desta
palavra. Contudo, ela cuidou de os não perder de vista — e renovou a resolução
de cinco em cinco minutos, durante meia hora, até que, não podendo fixar a
atenção, deixou-a andar. Lá vai ela, inquieta, vai direito ao clarão das luzes,
ao esplendor dos vestuários, um pouco à ópera, como pedindo a todas as coisas
alguma sensação deleitosa em que se espreguice uma alma fria e pessoal. E volta
depois à própria dona, ao seu leque, às suas luvas, aos adornos do vestido,
realmente magníficos. Nos intervalos, conversando com a viúva, Maria Olímpia
tinha a voz e os gestos do costume, sem cálculo, sem esforço, sem sentimento,
esquecida da carta. Justamente nos intervalos é que o marido, com uma discrição
rara entre os filhos dos homens, ia para os corredores ou para o saguão pedir
notícias do ministério.
Juntas saíram do camarote, no fim, e
atravessaram os corredores. A modéstia com que a viúva trajava podia realçar a
magnificência da amiga. As feições, porém, não eram o que esta afirmou, quando
ensaiava os xales de manhã. Não, senhor; eram engraçadas, e tinham um certo
pico original. Os ombros proporcionais e bonitos. Não contava trinta e cinco
anos, mas trinta e um; nasceu em 1822, na véspera da independência, tanto que o
pai, por brincadeira, entrou a chamá-la Ipiranga,
e ficou-lhe esta alcunha entre as amigas. Demais, lá estava em Santa Rita o
assentamento de batismo.
Uma semana depois, recebeu Maria Olímpia
outra carta anônima. Era mais longa e explícita. Vieram outras, uma por semana,
durante três meses. Maria Olímpia leu as primeiras com algum aborrecimento; as
seguintes foram calejando a sensibilidade. Não havia dúvida que o marido
demorava-se fora, muitas vezes, ao contrário do que fazia dantes, ou saía à
noite e regressava tarde; mas, segundo dizia, gastava o tempo no Wallerstein ou
no Bernardo, em palestras políticas. E isto era verdade, uma verdade de cinco a
dez minutos, o tempo necessário para recolher alguma anedota ou novidade, que
pudesse repetir em casa, à laia de documento. Dali seguia para o Largo de São
Francisco, e metia-se no ônibus.
Tudo era verdade. E, contudo, ela continuava
a não crer nas cartas. Ultimamente, não se dava mais ao trabalho de as refutar
consigo; lia-as uma só vez, e rasgava-as. Com o tempo foram surgindo alguns
indícios menos vagos, pouco a pouco, ao modo do aparecimento da terra aos
navegantes; mas este Colombo teimava em não crer na América. Negava o que via;
não podendo negá-lo, interpretava-o; depois recordava algum caso de alucinação,
uma anedota de aparências ilusórias, e nesse travesseiro cômodo e mole punha a
cabeça e dormia. Já então, prosperando-lhe o escritório, dava o Galvão partidas
e jantares, iam a bailes, teatros, corridas de cavalos. Maria Olímpia vivia
alegre, radiante; começava a ser um dos nomes da moda. E andava muita vez com a
viúva, a despeito das cartas, a tal ponto que uma destas lhe dizia:
"Parece que é melhor não escrever mais, uma vez que a senhora se regala
numa comborçaria de mau gosto". Que era comborçaria? Maria Olímpia quis
perguntá-lo ao marido, mas esqueceu o termo, e não pensou mais nisso.
Entretanto, constou ao marido que a mulher
recebia cartas pelo correio. Cartas de quem? Esta notícia foi um golpe duro e
inesperado. Galvão examinou de memória as pessoas que lhe frequentavam a casa,
as que podiam encontrá-la em teatros ou bailes, e achou muitas figuras
verossímeis. Em verdade, não lhe faltavam adoradores.
— Cartas de quem? repetia ele mordendo o
beiço e franzindo a testa.
Durante sete dias passou uma vida inquieta e
aborrecida, espiando a mulher e gastando em casa grande parte do tempo. No
oitavo dia, veio uma carta.
— Para mim? disse ele vivamente.
— Não; é para mim, respondeu Maria Olímpia,
lendo o sobrescrito; parece letra de Mariana ou de Lulu Fontoura...
Não queria vê-la; mas o marido disse que a
lesse; podia ser alguma notícia grave. Maria Olímpia leu a carta e dobrou-a,
sorrindo; ia guardá-la, quando o marido desejou ver o que era.
— Você sorriu, disse ele gracejando; há de
ser algum epigrama comigo.
— Qual! é um negócio de moldes.
— Mas deixa ver.
— Para quê, Eduardo?
— Que tem? Você, que não quer mostrar, por
algum motivo há de ser. Dê cá.
Já não sorria; tinha a voz trêmula. Ela ainda
recusou a carta, uma, duas, três vezes. Teve mesmo ideia de rasgá-la, mas era
pior, e não conseguiria fazê-lo até o fim. Realmente, era uma situação
original. Quando ela viu que não tinha remédio, determinou ceder. Que melhor
ocasião para ler no rosto dele a expressão da verdade? A carta era das mais
explícitas; falava da viúva em termos crus. Maria Olímpia entregou-lha.
— Não queria mostrar esta, disse-lhe ela
primeiro, como não mostrei outras que tenho recebido e botado fora; são
tolices, intrigas, que andam fazendo para... Leia, leia a carta.
Galvão abriu a carta e deitou-lhe os olhos
ávidos. Ela enterrou a cabeça na cintura, para ver de perto a franja do
vestido. Não o viu empalidecer. Quando ele, depois de alguns minutos, proferiu
duas ou três palavras, tinha já a fisionomia composta e um esboço de sorriso.
Mas a mulher, que o não adivinhava, respondeu ainda de cabeça baixa; só a
levantou daí a três ou quatro minutos, e não para fitá-lo de uma vez, mas aos
pedaços, como se temesse descobrir-lhe nos olhos a confirmação do anônimo.
Vendo-lhe, ao contrário, um sorriso, achou que era o da inocência, e falou de
outra coisa.
Redobraram as cautelas do marido; parece
também que ele não pôde esquivar-se a um tal ou qual sentimento de admiração
para com a mulher. Pela sua parte, a viúva, tendo notícia das cartas, sentiu-se
envergonhada; mas reagiu depressa, e requintou de maneiras afetuosas com a
amiga.
Na segunda ou terceira semana de agosto,
Galvão fez-se sócio do Cassino Fluminense. Era um dos sonhos da mulher. A seis
de setembro fazia anos a viúva, como sabemos. Na véspera, foi Maria Olímpia
(com a tia que chegara de fora) comprar-lhe um mimo: era uso entre elas.
Comprou-lhe um anel. Viu na mesma casa uma joia engraçada, uma meia lua de
diamantes para o cabelo, emblema de Diana, que lhe iria muito bem sobre a
testa. De Maomé que fosse; todo o emblema de diamantes é cristão. Maria Olímpia
pensou naturalmente na primeira noite do Cassino; e a tia, vendo-lhe o desejo,
quis comprar a joia, mas era tarde, estava vendida.
Veio a noite do baile. Maria Olímpia subiu
comovida as escadas do Cassino. Pessoas que a conheceram naquele tempo, dizem
que o que ela achava na vida exterior, era a sensação de uma grande carícia
pública, a distância; era a sua maneira de ser amada. Entrando no Cassino, ia
recolher nova cópia de admirações, e não se enganou, porque elas vieram, e de
fina casta.
Foi pelas dez horas e meia que a viúva ali
apareceu. Estava realmente bela, trajada a primor, tendo na cabeça a meia lua
de diamantes. Ficava-lhe bem o diabo da joia, com as duas pontas para cima,
emergindo do cabelo negro. Toda a gente admirou sempre a viúva naquele salão.
Tinha muitas amigas, mais ou menos íntimas, não poucos adoradores, e possuía um
gênero de espírito que espertava com as grandes luzes. Certo secretário de
legação não cessava de a recomendar aos diplomatas novos: "Causez avec Madame Tavares; c'est adorable!"
Assim era nas outras noites; assim foi nesta.
— Hoje quase não tenho tido tempo de estar
com você, disse ela a Maria Olímpia, perto de meia-noite.
— Naturalmente, disse a outra abrindo e
fechando o leque; e, depois de umedecer os lábios, como para chamar a eles todo
o veneno que tinha no coração: — Ipiranga,
você está hoje uma viúva deliciosa... Vem seduzir mais algum marido?
A viúva empalideceu, e não pôde dizer nada.
Maria Olímpia acrescentou, com os olhos, alguma coisa que a humilhasse bem, que
lhe respingasse lama no triunfo. Já no resto da noite falaram pouco; três dias
depois romperam para nunca mais.
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