A
Segunda Vida
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Monsenhor Caldas interrompeu a narração do
desconhecido:
— Dá licença? é só um instante.
Levantou-se, foi ao interior da casa, chamou
o preto velho que o servia, e disse-lhe em voz baixa:
— João, vai ali à estação de urbanos, fala da
minha parte ao comandante, e pede-lhe que venha cá com um ou dois homens, para
livrar-me de um sujeito doido. Anda, vai depressa.
E, voltando à sala:
— Pronto, disse ele; podemos continuar.
— Como ia dizendo a Vossa Reverendíssima,
morri no dia vinte de março de 1860, às cinco horas e quarenta e três minutos
da manhã. Tinha então sessenta e oito anos de idade. Minha alma voou pelo
espaço, até perder a terra de vista, deixando muito abaixo a lua, as estrelas e
o sol; penetrou finalmente num espaço em que não havia mais nada, e era
clareado tão-somente por uma luz difusa. Continuei a subir, e comecei a ver um
pontinho mais luminoso ao longe, muito longe. O ponto cresceu, fez-se sol. Fui
por ali dentro, sem arder, porque as almas são incombustíveis. A sua pegou fogo
alguma vez?
— Não, senhor.
— São incombustíveis. Fui subindo, subindo;
na distância de quarenta mil léguas, ouvi uma deliciosa música, e logo que
cheguei a cinco mil léguas, desceu um enxame de almas, que me levaram num
palanquim feito de éter e plumas. Entrei daí a pouco no novo sol, que é o
planeta dos virtuosos da terra. Não sou poeta, monsenhor; não ouso
descrever-lhe as magnificências daquela estância divina. Poeta que fosse, não
poderia, usando a linguagem humana, transmitir-lhe a emoção da grandeza, do
deslumbramento, da felicidade, os êxtases, as melodias, os arrojos de luz e
cores, uma coisa indefinível e incompreensível. Só vendo. Lá dentro é que soube
que completava mais um milheiro de almas; tal era o motivo das festas
extraordinárias que me fizeram, e que duraram dois séculos, ou, pelas nossas
contas, quarenta e oito horas. Afinal, concluídas as festas, convidaram-me a
tornar à terra para cumprir uma vida nova; era o privilégio de cada alma que
completava um milheiro. Respondi agradecendo e recusando, mas não havia
recusar. Era uma lei eterna. A única liberdade que me deram foi a escolha do
veículo; podia nascer príncipe ou condutor de ônibus. Que fazer? Que faria
Vossa Reverendíssima no meu lugar?
— Não posso saber; depende...
— Tem razão; depende das circunstâncias. Mas
imagine que as minhas eram tais que não me davam gosto a tornar cá. Fui vítima
da inexperiência, monsenhor, tive uma velhice ruim, por essa razão. Então
lembrou-me que sempre ouvira dizer a meu pai e outras pessoas mais velhas,
quando viam algum rapaz: — "Quem me dera aquela idade, sabendo o que sei
hoje!" Lembrou-me isto, e declarei que me era indiferente nascer mendigo
ou potentado, com a condição de nascer experiente. Não imagina o riso universal
com que me ouviram. Jó, que ali preside a província dos pacientes, disse-me que
um tal desejo era disparate; mas eu teimei e venci. Daí a pouco escorreguei no
espaço: gastei nove meses a atravessá-lo até cair nos braços de uma ama de
leite, e chamei-me José Maria. Vossa Reverendíssima é Romualdo, não?
— Sim, senhor; Romualdo de Sousa Caldas.
— Será parente do padre Sousa Caldas?
— Não, senhor.
— Bom poeta o padre Caldas. Poesia é um dom;
eu nunca pude compor uma décima. Mas, vamos ao que importa. Conto-lhe primeiro
o que me sucedeu; depois lhe direi o que desejo de Vossa Reverendíssima.
Entretanto, se me permitisse ir fumando...
Monsenhor Caldas fez um gesto de assentimento,
sem perder de vista a bengala que José Maria conservava atravessada sobre as
pernas. Este preparou vagarosamente um cigarro. Era um homem de trinta e poucos
anos, pálido, com um olhar ora mole e apagado, ora inquieto e centelhante.
Apareceu ali, tinha o padre acabado de almoçar, e pediu-lhe uma entrevista para
negócio grave e urgente. Monsenhor fê-lo entrar e sentar-se; no fim de dez
minutos, viu que estava com um lunático. Perdoava-lhe a incoerência das ideias
ou o assombroso das invenções; pode ser até que lhe servissem de estudo. Mas o
desconhecido teve um assomo de raiva, que meteu medo ao pacato clérigo. Que
podiam fazer ele e o preto, ambos velhos, contra qualquer agressão de um homem
forte e louco? Enquanto esperava o auxílio policial, Monsenhor Caldas
desfazia-se em sorrisos e assentimentos de cabeça, espantava-se com ele,
alegrava-se com ele, política útil com os loucos, as mulheres e os potentados.
José Maria acendeu finalmente o cigarro, e
continuou:
— Renasci em cinco de janeiro de 1861. Não lhe
digo nada da nova meninice, porque aí a experiência teve só uma forma
instintiva. Mamava pouco; chorava o menos que podia para não apanhar pancada.
Comecei a andar tarde, por medo de cair, e daí me ficou uma tal ou qual
fraqueza nas pernas. Correr e rolar, trepar nas árvores, saltar paredões,
trocar murros, coisas tão úteis, nada disso fiz, por medo de contusão e sangue.
Para falar com franqueza, tive uma infância aborrecida, e a escola não o foi
menos. Chamavam-me tolo e moleirão. Realmente, eu vivia fugindo de tudo. Creia
que durante esse tempo não escorreguei, mas também não corria nunca. Palavra,
foi um tempo de aborrecimento; e, comparando as cabeças quebradas de outro
tempo com o tédio de hoje, antes as cabeças quebradas. Cresci; fiz-me rapaz,
entrei no período dos amores... Não se assuste; serei casto, como a primeira
ceia. Vossa Reverendíssima sabe o que é uma ceia de rapazes e mulheres?
— Como quer que saiba?...
— Tinha dezenove anos, continuou José Maria,
e não imagina o espanto dos meus amigos, quando me declarei pronto a ir a uma
tal ceia... Ninguém esperava tal coisa de um rapaz tão cauteloso, que fugia de
tudo, dos sonos atrasados, dos sonos excessivos, de andar sozinho a horas
mortas, que vivia, por assim dizer, às apalpadelas. Fui à ceia; era no Jardim
Botânico, obra esplêndida. Comidas, vinhos, luzes, flores, alegria dos rapazes,
os olhos das damas, e, por cima de tudo, um apetite de vinte anos. Há de crer
que não comi nada? A lembrança de três indigestões apanhadas quarenta anos
antes, na primeira vida, fez-me recuar. Menti dizendo que estava indisposto.
Uma das damas veio sentar-se à minha direita, para curar-me; outra levantou-se
também, e veio para a minha esquerda, com o mesmo fim. Você cura de um lado, eu
curo do outro, disseram elas. Eram lépidas, frescas, astuciosas, e tinham fama
de devorar o coração e a vida dos rapazes. Confesso-lhe que fiquei com medo e
retraí-me. Elas fizeram tudo, tudo; mas em vão. Vim de lá de manhã, apaixonado
por ambas, sem nenhuma delas, e caindo de fome. Que lhe parece? concluiu José
Maria pondo as mãos nos joelhos, e arqueando os braços para fora.
— Com efeito...
— Não lhe digo mais nada; Vossa
Reverendíssima adivinhará o resto. A minha segunda vida é assim uma mocidade
expansiva e impetuosa, enfreada por uma experiência virtual e tradicional. Vivo
como Eurico, atado ao próprio cadáver... Não, a comparação não é boa. Como lhe
parece que vivo?
— Sou pouco imaginoso. Suponho que vive assim
como um pássaro, batendo as asas e amarrado pelos pés...
— Justamente. Pouco imaginoso? Achou a
fórmula; é isso mesmo. Um pássaro, um grande pássaro, batendo as asas, assim...
José Maria ergueu-se, agitando os braços, à
maneira de asas. Ao erguer-se, caiu-lhe a bengala no chão; mas ele não deu por
ela. Continuou a agitar os braços, em pé, defronte do padre, e a dizer que era
isso mesmo, um pássaro, um grande pássaro... De cada vez que batia os braços
nas coxas, levantava os calcanhares, dando ao corpo uma cadência de movimentos,
e conservava os pés unidos, para mostrar que os tinha amarrados. Monsenhor
aprovava de cabeça; ao mesmo tempo afiava as orelhas para ver se ouvia passos
na escada. Tudo silêncio. Só lhe chegavam os rumores de fora: — carros e
carroças que desciam, quitandeiras apregoando legumes, e um piano da vizinhança.
José Maria sentou-se finalmente, depois de apanhar a bengala, e continuou
nestes termos:
— Um pássaro, um grande pássaro. Para ver
quanto é feliz a comparação, basta a aventura que me traz aqui, um caso de
consciência, uma paixão, uma mulher, uma viúva, D. Clemência. Tem vinte e seis
anos, uns olhos que não acabam mais, não digo no tamanho, mas na expressão, e
duas pinceladas de buço, que lhe completam a fisionomia. É filha de um
professor jubilado. Os vestidos pretos ficam-lhe tão bem que eu às vezes
digo-lhe rindo que ela não enviuvou senão para andar de luto. Caçoadas!
Conhecemo-nos há um ano, em casa de um fazendeiro de Cantagalo. Saímos
namorados um do outro. Já sei o que me vai perguntar: por que é que não nos
casamos, sendo ambos livres...
— Sim, senhor.
— Mas, homem de Deus! é essa justamente a
matéria da minha aventura. Somos livres, gostamos um do outro, e não nos
casamos: tal é a situação tenebrosa que venho expor a Vossa Reverendíssima, e
que a sua teologia ou o que quer que seja, explicará, se puder. Voltamos para a
Corte namorados. Clemência morava com o velho pai, e um irmão empregado no
comércio; relacionei-me com ambos, e comecei a frequentar a casa, em
Mata-cavalos. Olhos, apertos de mão, palavras soltas, outras ligadas, uma frase,
duas frases, e estávamos amados e confessados. Uma noite, no patamar da escada,
trocamos o primeiro beijo... Perdoe estas coisas, monsenhor; faça de conta que
me está ouvindo de confissão. Nem eu lhe digo isto senão para acrescentar que
saí dali tonto, desvairado, com a imagem de Clemência na cabeça e o sabor do
beijo na boca. Errei cerca de duas horas, planeando uma vida única; determinei
pedir-lhe a mão no fim da semana, e casar daí a um mês. Cheguei às derradeiras
minúcias, cheguei a redigir e ornar de cabeça as cartas de participação. Entrei
em casa depois de meia-noite, e toda essa fantasmagoria voou, como as mutações
à vista nas antigas peças de teatro. Veja se adivinha como.
— Não alcanço...
— Considerei, no momento de despir o colete,
que o amor podia acabar depressa; tem-se visto algumas vezes. Ao descalçar as
botas, lembrou-me coisa pior: — podia ficar o fastio. Concluí a toilette de dormir, acendi um cigarro,
e, reclinado no canapé, pensei que o costume, a convivência, podia salvar tudo;
mas, logo depois, adverti que as duas índoles podiam ser incompatíveis; e que
fazer com duas índoles incompatíveis e inseparáveis? Mas, enfim, dei de barato
tudo isso, porque a paixão era grande, violenta; considerei-me casado, com uma
linda criancinha... Uma? duas, seis, oito; podiam vir oito, podiam vir dez;
algumas aleijadas. Também podia vir uma crise, duas crises, falta de dinheiro,
penúria, doenças; podia vir alguma dessas afeições espúrias que perturbam a paz
doméstica... Considerei tudo e concluí que o melhor era não casar. O que não
lhe posso contar é o meu desespero; faltam-me expressões para lhe pintar o que
padeci nessa noite... Deixa-me fumar outro cigarro?
Não esperou resposta, fez o cigarro, e
acendeu-o. Monsenhor não podia deixar de admirar-lhe a bela cabeça, no meio do
desalinho próprio do estado; ao mesmo tempo notou que ele falava em termos
polidos, e, que apesar dos rompantes mórbidos, tinha maneiras. Quem diabo podia
ser esse homem? José Maria continuou a história, dizendo que deixou de ir à casa
de Clemência, durante seis dias, mas não resistiu às cartas e às lágrimas. No
fim de uma semana correu para lá, e confessou-lhe tudo, tudo. Ela ouviu-o com
muito interesse, e quis saber o que era preciso para acabar com tantas cismas,
que prova de amor queria que ela lhe desse. — A resposta de José Maria foi uma
pergunta.
— Está disposta a fazer-me um grande
sacrifício? disse-lhe eu. Clemência jurou que sim. "Pois bem, rompa com
tudo, família e sociedade; venha morar comigo; casamo-nos depois desse noviciado".
Compreendo que Vossa Reverendíssima arregale os olhos. Os dela encheram-se de
lágrimas; mas, apesar de humilhada, aceitou tudo. Vamos; confesse que sou um
monstro.
— Não, senhor...
— Como não? Sou um monstro. Clemência veio
para minha casa, e não imagina as festas com que a recebi. "Deixo tudo,
disse-me ela; você é para mim o universo." Eu beijei-lhe os pés,
beijei-lhe os tacões dos sapatos. Não imagina o meu contentamento. No dia
seguinte, recebi uma carta tarjada de preto; era a notícia da morte de um tio
meu, em Santa Ana do Livramento, deixando-me vinte mil contos. Fiquei
fulminado. "Entendo, disse a Clemência, você sacrificou tudo, porque tinha
notícia da herança". Desta vez, Clemência não chorou, pegou em si e saiu.
Fui atrás dela, envergonhado, pedi-lhe perdão; ela resistiu. Um dia, dois dias,
três dias, foi tudo vão; Clemência não cedia nada, não falava sequer. Então
declarei-lhe que me mataria; comprei um revólver, fui ter com ela, e
apresentei-lho: é este.
Monsenhor Caldas empalideceu. José Maria
mostrou-lhe o revólver, durante alguns segundos, tornou a metê-lo na algibeira,
e continuou:
— Cheguei a dar um tiro. Ela, assustada,
desarmou-me e perdoou-me. Ajustamos precipitar o casamento, e, pela minha
parte, impus uma condição: doar os vinte mil contos à Biblioteca Nacional.
Clemência atirou-se-me aos braços, e aprovou-me com um beijo. Dei os vinte mil
contos. Há de ter lido nos jornais... Três semanas depois casamo-nos. Vossa
Reverendíssima respira como quem chegou ao fim. Qual! Agora é que chegamos ao
trágico. O que posso fazer é abreviar umas particularidades e suprimir outras;
restrinjo-me a Clemência. Não lhe falo de outras emoções truncadas, que são
todas as minhas, abortos de prazer, planos que se esgarçam no ar, nem das
ilusões de saia rota, nem do tal pássaro... plás... plás... plás...
E, de um salto, José Maria ficou outra vez de
pé, agitando os braços, e dando ao corpo uma cadência. Monsenhor Caldas começou
a suar frio. No fim de alguns segundos, José Maria parou, sentou-se, e reatou a
narração, agora mais difusa, mais derramada, evidentemente mais delirante.
Contava os sustos em que vivia, desgostos e desconfianças. Não podia comer um
figo às dentadas, como outrora; o receio do bicho diminuía-lhe o sabor. Não
cria nas caras alegres da gente que ia pela rua: preocupações, desejos, ódios,
tristezas, outras coisas, iam dissimuladas por umas três quartas partes delas.
Vivia a temer um filho cego ou surdo-mudo, ou tuberculoso, ou assassino, etc.
Não conseguia dar um jantar que não ficasse triste logo depois da sopa, pela ideia
de que uma palavra sua, um gesto da mulher, qualquer falta de serviço podia
sugerir o epigrama digestivo, na rua, debaixo de um lampião. A experiência
dera-lhe o terror de ser empulhado. Confessava ao padre que, realmente, não
tinha até agora lucrado nada; ao contrário, perdera até, porque fora levado ao
sangue... Ia contar-lhe o caso do sangue. Na véspera, deitara-se cedo, e sonhou...
Com quem pensava o padre que ele sonhou?
— Não atino...
— Sonhei que o Diabo lia-me o Evangelho.
Chegando ao ponto em que Jesus fala dos lírios do campo, o Diabo colheu alguns
e deu-mos. "Toma, disse-me ele; são os lírios da Escritura; segundo
ouviste, nem Salomão em toda a pompa, pode ombrear com eles. Salomão é a
sapiência. Sabes o que são estes lírios, José? São os teus vinte anos".
Fitei-os encantado; eram lindos como não imagina. O Diabo pegou deles,
cheirou-os e disse-me que os cheirasse também. Não lhe digo nada; no momento de
os chegar ao nariz, vi sair de dentro um réptil fedorento e torpe, dei um
grito, e arrojei para longe as flores. Então, o Diabo, escancarando uma
formidável gargalhada: "José Maria, são os teus vinte anos". Era uma
gargalhada assim: — cá, cá, cá, cá, cá...
José Maria ria à solta, ria de um modo
estridente e diabólico. De repente, parou; levantou-se, e contou que, tão
depressa abriu os olhos, como viu a mulher diante dele, aflita e desgrenhada.
Os olhos de Clemência eram doces, mas ele disse-lhe que os olhos doces também
fazem mal. Ela arrojou-se-lhe aos pés... Neste ponto a fisionomia de José Maria
estava tão transtornada que o padre, também de pé, começou a recuar, trêmulo e
pálido. "Não, miserável! não! tu não me fugirás!" bradava José Maria
investindo para ele. Tinha os olhos esbugalhados, as têmporas latejantes; o
padre ia recuando... recuando... Pela escada acima ouvia-se um rumor de espadas
e de pés.
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