A Santa Casa
(Paródia a uma sátira de Emílio
de Menezes)
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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As nuvens começavam a tomar uma
cor arroxeada, anunciando o fim do crepúsculo e o início de uma noite soturna,
quando alguém bateu, medroso, à luminosa porta do Céu.
— Quem bate? — gritou, de dentro,
São Pedro, arrastando as suas alpercatas de couro e tilintando, trêmulo, a sua
enorme penca de chaves.
— Sou eu! — respondeu de fora o
recém-chegado.
Aberta a portinhola do
parlatório, informou o retardatário haver sido despachado da vida naquele dia,
com destino à mansão dos justos, onde devia, portanto, ser admitido.
— Aqui? — observou o apostolo,
espantado. – Aqui, não. Todas as pessoas que tinham de entrar hoje, já
entraram. Não falta mais nenhuma.
E bondoso:
— Não será engano seu, meu filho?
Você não terá sido despachado para o Purgatório?
O peregrino admitiu a hipótese de
uma confusão, e, saltando de nuvem em nuvem, como quem salta de rochedo em
rochedo, foi ter à porta de fogo do Purgatório, onde bateu.
— Quem vem lá? — trovejou um
anjo, escancarando, com um gancho, a rubra fornalha das penitências.
O desventurado deu o seu nome, e,
momentos depois, reabria-se o forno.
— Há engano na direção, camarada!
— informou o guardião, soprando, severo, a sua vermelha espada de chama. — O
seu lugar não será no Inferno? Aqui, é que não é. Não consta nada sobre a sua
pessoa!
E, fechando a fornalha, deixou-o
na amplidão, tristonho, solitário, abandonado, tendo aberto, apenas, à sua
frente, o caminho escuro do Inferno. Resolvido a cumprir o seu destino, tomou o
infeliz esse rumo, até ir ter, corajoso, à porta da caverna formidável.
— Quem é? — rugiu, de dentro, uma
voz que parecia um trovão.
Tremendo de pavor, o mísero deu o
seu nome, e esperava, já, o instante de ser precipitado nas enormes caldeiras
ferventes, quando o portão monstruoso se abriu, dando passagem aos chavelhos de
ferro de Belzebu.
— Quem o mandou para cá? —
indagou o bruto, acendendo os olhos.
— A mim? — gemeu o desventurado.
— Ninguém. Fui ao Céu, disseram-me que não era lá. Fui ao Purgatório, e
informaram-me a mesma coisa. Logo, é aqui, por força.
O Diabo meditou um instante,
consultou umas chapas de ferro incandescente que estavam próximas, e protestou,
firme:
— Aqui, também, não é!
— Não?
— Não; absolutamente! — tornou o
Capeta. — O seu lugar deve ser mesmo no Céu. O Pedro está muito velho, já, e,
com certeza, não viu bem. Volte lá! Volte lá!
Um momento depois, estava o
desgraçado, de novo, à porta do Paraíso.
— Outra vez? — observou São
Pedro, paciente.
— Outra vez, sim, — confirmou,
grosso, a vítima. — O meu lugar não é no Purgatório, não é no Inferno; deve
ser, forçosamente, aqui. Veja bem!
O apóstolo enforquilhou os óculos
no nariz, abriu o livro em que estavam registrados os nomes das almas, folheou,
folheou, folheou, e, de repente, voltando-se, indagou:
— Diga-me uma coisa: onde foi que
você morreu?
— Eu? Na Santa Casa do Rio de
janeiro! — respondeu a vítima.
E o chaveiro, escancarando a
porta:
— É aqui mesmo, entre!
E mostrando o livro:
— A culpa não foi minha, filho!
Você devia vir para cá, daqui a vinte anos!
E aborrecido:
— Esta Santa Casa tem me
estragado a escrita!...
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