Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O Comendador Luiz de Faria acabava de fechar os olhos à velha marquesa de São Justino, adoçando-lhe o momento da morte com a notícia alvissareira e mentirosa da completa regeneração do seu neto, o estudante Guilherme de Araújo, quando o encontrei à porta da casa funerária, à espera do seu automóvel. Abalado, ainda, pela emoção daquele instante, em que tivera de lançar mão de uma falsidade para perfumar o último sopro de uma vida de virtudes e sofrimentos, o antigo par do reino português aceitou um lugar no meu "taxi", e confessou-me, em viagem:
— A mentira, meu amigo, é, às
vezes, uma necessidade. Aquela de que me socorri há meia hora, para suavizar a
morte de uma santa, de uma senhora cuja maior esperança consistia no futuro de
um neto que se desgarrara do lar, era tão necessária como a do prior da Cartuxa
para alegrar a agonia daquele célebre monge do Bussaco.
Eu olhei, interrogativamente, o
meu companheiro de viagem, e ele, percebendo a ignorância, indagou, com
admiração:
— Não conhece, então, a lenda da
rosa azul?
À minha afirmativa, que lhe
pareceu estranha, o Comendador apoiou as mãos robustas no castão de ouro da
bengala, e contou:
— No Mosteiro da Cartuxa, no
Bussaco, em Portugal, vivia, em séculos que já se foram, um piedoso e santo
monge, cuja vida se consumia, inteira, entre a oração e as rosas. Jardineiro da
alma e das flores, passava ele as manhãs de joelhos, no silêncio da nave, aos
pés de um Cristo crucificado, e as tardes, no pequeno jardim da ordem, curvado
diante das roseiras, que ele próprio plantava e regava.
O Comendador interrompeu um
momento a narrativa, recostou-se na almofada, e continuou:
A sua paciência de jardineiro era
absorvida, entretanto, por uma ideia, que era um sonho: encontrar a rosa azul
das legendas do Oriente, de que tivera notícia, uma noite,
ao ler os poemas latinos dos velhos monges medievais. Para isso, casava ele as
sementes, os brotos, fundia os enxertos, combinando as terras, com que as
cobria, e as águas, com que as regava, esperando, ansioso, o aparecimento, no
topo da haste, do sonhado botão azul! Ao fim de setenta anos de experiências e
sonhos, em que se lhe misturavam na imaginação as chagas vermelhas de Cristo e
as manchas celestes da sua rosa encantada, surgiu, afinal, no coroamento de um
galho de roseira, um botão azul, como o céu. Centenário e curvado, o velhinho
não resistiu à emoção; adoeceu, e, conduzido à cela, ajoelhou-se diante do
Crucificado, pedindo-lhe, entre soluços pungentes, que, como prêmio à santidade
da sua vida, não lhe cerrasse os olhos sem que eles vissem, contentes, o
desabrochar da sua rosa azul.
Uma nova pausa, e o meu
companheiro tornou:
— Em volta do santo velhinho, no
catre do mosteiro, todos choravam, compungidos. E foi, então, que, divulgada de
boca em boca, foi a notícia ter a um convento das
proximidades, onde jazia, orando e sonhando, uma linda infanta de Portugal.
Moça e formosa, e, além de formosa e moça, — fidalga e portuguesa, compreendeu
a pequenina freira, no jardim do seu sonho, o valor daquela ilusão, e correu à
sua cela, consumindo toda uma noite a fazer, com os seus dedos de neve, uma
viçosa flor de seda azul, que perfumou, ela própria, com essência de gerânio. E
no dia seguinte, pela manhã, morria no seu catre, sorrindo entre lágrimas de
alegria, por ter nas mãos trêmulas, por um milagre do céu, a sua rosa azul!
O "taxi" parava no
meio-fio da calçada, o Comendador acrescentou, estendendo-me a mão agradecida:
— Feliz, meu amigo, aquele que
morre, como esse monge e a marquesa, apertando nas mãos a rosa, mesmo mentirosa,
de uma roseira de que cuidou toda a vida.
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