A primeira entrevista
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Às ave-marias, arrumada a vaca e picada a ração para o cavalo numa espécie de estrebaria improvisada sob as ramagens bastas dos cafeeiros, cercando ao fundo a cozinha, o João Valente entrou em casa, a tomar o seu casaco de brim e o seu bordão de camboatá para as costumadas excursões noturnas pela freguesia.
Estrelava,
quando desceu o terreiro e os seus grossos tamancos de couro começaram a
estalar em cadência sobre o arcão da vereda que ia dar à estrada. Caminhava
cantando, sob o esplendor da noite transparente, na doçura daquele descanso bem
ganho à labuta do campo. E a sua alma exultava, feliz, por entre as sebes do
atalho, onde os grilos veladores soltavam já, pelas moitas, os seus piqueniques metálicos.
À porteira
parou, porque ouviu de repente, para os lados de cima, uma algazarra de
rapazes. Esperou um instante, para ver se era gente das redes ou alguns dos
companheiros de andadas. Tirou o isqueiro do bolso e, acendendo o grosso cigarro
de palha que trazia à orelha, pôs-se a escutar. Na volta do caminho as vozes se
tornaram mais claras. Reconheceu, então, o bando costumado — o Lino, o Honório e o Cosme, com a troçada tiririca — que lá vinha, nas habituais correrias dos sábados, para os fandangos
da Baixada. Recolheu logo à porteira, correndo-lhe precipitadamente as varas, e
agachou-se em seguida, escondendo o cigarro na escuridão das ramagens.
Não queria
ser visto para poder escapar ao grupo que, constantemente nesses dias assim, o
arrastava para aquelas folias noturnas. Já estava cansado das longas caminhadas
e festas por essas paragens distantes. Depois, naquela noite, não se pertencia,
pois tinha de ir à rua Velha, onde o seu coração achara agora um encanto. E na
ânsia de se ocultar, com medo de que o menor ruído o revelasse, comprimia o
peito, sofreando a respiração, para não faltar —
louvado fosse Deus! — ao primeiro
encontro que ia ter com a Rosinha, pela volta das oito, conforme haviam tratado
em casa da tia Marciana.
Mas o bando
passou num estrépito, numa alegre correria, em direção à Figueira Grande, onde
a estrada real se bifurcava na da Baixada e na da Ponta das Canas. E durante
muito tempo o rumor dos passos e vozes ecoou no caminho, afastando-se para
longe...
Quando o
silêncio voltou, só interrompido vagamente pelo saudoso perpassar do vento na
folhagem sussurrante, o João Valente ergueu-se e sacudindo a roupa meio
irrorada pela umidade da grama, com o cigarro fumegando nos beiços, transpôs a
porteira rompendo o caminhar à tola. Num outeiro próximo, por onde a estrada
subia para cair outra vez na planície, entrou a moderar a marcha, porque sentiu
novamente a barulhada dos rapazes estalar adiante. Já um pouco nervoso,
desesperava-se, no temor de que as horas passassem e não pudesse chegar mais a
tempo à casa da tia Marciana. Na descida parou à sombra de um vasto cafezal que
margeava o caminho, e, enquanto o bando se perdia além, na zoada que esmorecia
para os lados da Baixada, impaciente e inquieto, ora batia freneticamente com o
porrete no chão, ora fixava as estrelas vivíssimas, abrindo no alto um sendal
de ouro flamante.
Em pouco,
porém, a matinada se escoou ao longe e ele volveu a caminhar a passadas
gigantes. Pelo engenho do Silvano, situado antes da encruzilhada, encontrou o
Rufino, um camarada de infância, que corria para casa do vigário a buscar
remédio para a mãe, agonizante de repente com uma sufocação. Fê-lo estacar por
momentos; e após algumas perguntas tumultuosas a que o outro respondia arfando,
quase a chorar, com umas garrafas na mão, inquiriu ainda:
— E uma
coisa: não esbarraste com o bando do Lino numa balbúrdia por aí fora?...
O Rufino
gritou-lhe, já numa andada de gamo pela ladeira acima, a cabeça voltada, a voz
contrafeita pelo esforço da marcha:
— Não! Só se
embarafustaram pela Figueira Grande...
Daí a
instantes, o João Valente, passado o sítio da grota, onde havia uma pequena
ponte arruinada sobre um córrego murmurante, cujo fio de água prateada se
perdia entre as ervagens do campo, entrou a demorar o passo, pois avistara lá
no alto, contra o maciço escuro do pomar, a casa da tia Marciana.
Antes de
tomar a vereda que levava até lá, cumpria evitar a cancela do velho Estêvão
Santos, cuja casa era logo adiante. O abastado lavrador, ou alguém do seu lar,
se o visse passar, inutilizava-lhe imediatamente o “plano” e ele perderia, desta vez, a primeira entrevista com a amada.
Conhecia
quanto aquela gente o malqueria e do que o velho era capaz, se viesse a saber
um dia do seu amor pela filha, que idolatrava. Por isso, desde que o seu afeto
nascera — havia um ano — guardava o maior sigilo, não o narrando mesmo à sua mãe, para que
ele se não divulgasse até que fizesse o casamento. E era por essa razão que, a
muito custo, depois de enorme relutância da parte da Rosinha, obtivera dela,
para aquela noite, uma entrevista em casa da tia Marciana, que protegia
solicitamente o namoro de ambos. Não queria, pois, por coisa alguma do mundo,
perder a oportunidade de assentar, de uma vez, as bases da única felicidade que
aspirava o seu coração.
Meteu-se,
então, por um canavial que acompanhava aí a estrada até a porteira do campo, e
foi sair do atalho, bem em frente à casa da tia da Rosinha, que tinha luz na
varanda. Botou-se à pressa pela vereda acima, muito alegre na sua paixão, e
feita a volta da fonte, caiu em cheio no terreiro, na empena para onde dava a
porta. A Rosinha e a tia, ao avistarem-no, ergueram-se logo do degrau onde
estavam sentadas e correram para ele, exclamando:
— Boas
horas! Estamos aqui há que tempo... Que demora, Virgem Santa!...
O Valente,
apertando-lhes as mãos, ainda meio cansado da corrida, começou a contar-lhes,
miudamente, as contrariedades que sofrera, desde a saída da casa até aquele
instante. E ia para entrar, a pilheriar no meio de ambas, que se desfaziam em
risos, quando, lá embaixo, no caminho, uma voz grossa e forte estrugiu de
repente:
— Ó comadre!
Ó comadre! Olhe, a Rosinha que ande!... Eu cá estou à porteira...
Os três
estacaram, atônitos, ao som da voz tão conhecida e temida do velho Estêvão
Santos. E tia e sobrinha, assustadas e trêmulas, correram para a varanda,
dizendo apenas ao rapaz:
—
Esconda-se, por Nossa Senhora, senão o velho o apanha...
O Valente,
atarantado e indeciso, nos apuros do momento, procurava onde ocultar-se, quando
ouviu os passos do velho, que subia já em direção ao terreiro. Desorientado,
atirou-se à vereda, a fim de alcançar um algodoeiro ao pé e galgar a estrada no
outro extremo do terreno; mas, na cegueira em que ia, esbarrou, sem esperar e tão
violentamente, com o velho, que o derribou contra a sebe, na escuridão das
ramagens espessas.
O homem
soltou um rugido abafado, em meio à terrível surpresa, e, levantando-se logo,
muito rijo e possante no seu todo hercúleo de lavrador, desceu ao caminho,
brandindo o seu grosso cajado de laranjeira, trovejando, indignado e colérico:
— Ah!
canalha! Se te apanho, sacudia-te o pelo!...
O Valente, na disparada, saltara
a cerca do outro lado, e, varando um mandiocal à esquerda, agachou-se entre as
ramas, a espreitar o caminho, o coração aos saltos, com medo do velho Estêvão.
Só pode respirar livremente quando o perfil gigantesco do homem se sumiu no
atalho. Saiu, então, para a estrada e deu de andar para a casa, murmurando de
si para si, entre desapontado e satisfeito:
Felizmente,
o demônio não me conheceu!...
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