11/27/2017

A Primavera (Conto), de Wenceslau de Moraes


A Primavera

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Há alguns dias, na cidade de Kobe, — poderia precisar o dia, e quase a hora, se tamanho rigorismo me exigissem, — irrompeu a Primavera. Irrompeu: não há sombra de exagero no vocábulo. Irrompeu, surgiu dum pulo, fez explosão. Neste país do Sol Nascente, onde o Sol, e com ele todas as grandes forças naturais, são ainda uns selvagens — se assim posso expressar-me — uns selvagens sem freio, sem noção das conveniências, incapazes de se apresentarem de visita, de luvas e casaca, numa corte qualquer da nossa Europa; neste país do Sol Nascente, ia eu dizendo, a criação inteira apostou, parece, em oferecer em cada dia uma surpresa, toda ela exuberâncias inauditas, espalhafatos únicos, repentismos nervosos, caprichos doidos, como se reunisse em si a quinta-essência da alma das crianças e a quinta-essência da alma das mulheres, a gargalhada, a troça, enfim, motejadora de tudo quanto é ordem, harmonia, contemporizadora lei das transições.
Ontem, foi um Inverno duro, gélido, vestido apenas duma ampla túnica de neve. Hoje, dum salto, o sol rompeu em quenturas amorosas, começaram de florir as árvores, e evolaram-se os insetos. Amanhã, será o Estio tórrido, em brasas, como nem na China, nem na África se sente. E assim corre o tempo, voam as horas; cada instante é um meteoro; e aqui um tufão arranca os troncos, e ali a chuva torrencial inunda as várzeas, e além um rio transborda do seu leito, e uma onda do largo afoga as aldeias, e uma convulsão subterrânea abala o solo...
O europeu, o pobre europeu das paisagens serenas, sofre os choques desta natureza, por demais subversiva para o seu espírito triste, meditativo e atribulado. Oferece-se-lhe um de dois caminhos a seguir: ou comunga na vida japonesa, inicia-se nos seus segredos íntimos, ama-a nas suas modalidades, e assim a existência se lhe gasta, se consome rápida, esgazeada em admirações, doidejando em vertigens; ou se retrai, se isola, odeia a natureza que não compreende, odeia o exílio, vive de saudades da pátria, entre as quatro paredes do seu lar, ou dos clubes cosmopolitas da colônia forasteira. Não é preciso mais para justificar o tique de loucura, facilmente perceptível, da enorme maioria destes expatriados, homens e mulheres, após curta residência no país japonês.
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Ora pois, — dada esta concisa explicação à gente incrédula, — há alguns dias, na cidade de Kobe, irrompeu a Primavera.
Pela noite velha, fora chegando uma brisa como que amorosa, acariciadora, perfumada. No silêncio das trevas, as carpas acordaram, num charco fronteiro ao meu albergue; e estrebuchavam, e produziam desusados ruídos, saltando fora de água, ardendo em cios, endemoninhadas. Quando rompeu o dia, e apareceu o Sol, não se descreve o enlevo do bafo morno, embalsamado, genesíaco, que enchia o espaço. O céu tinha azuis novos; cirros de paz pairavam nas alturas. A paisagem esverdeara; esverdeara da erva nova, que surgia, e das árvores velhas, que se coloriam. A nossa observação educa-se neste meio em especialidades de minúcia, abundando por toda a parte, em campos e jardins, as coníferas, de todas as formas, de todas as grandezes; estas árvores nunca se desfolham, mas no Inverno descoloram-se, empalidecem como mulheres cloróticas, chegam a lembrar enfermos, chegam a lembrar coisas mortas; depois, a Primavera excita-lhes a seiva, um verde intenso assoma-lhes às folhas, a vida recomeça, doida, vão desabrochar flores em fúria!...
Já as ameixieiras se apresentam em galas de florescência; os negros troncos rugosos e lavrados pela lepra dos líquenes, sem uma folha sequer, cobrem-se agora de bastas cabeleiras, alvas ou rosadas, feitas de mil e mil florinhas presas aos galhos por minúsculos pedúnculos. Vistas de longe, nos sítios onde abundam, fazem lembrar uma floresta de árvores secas, envolvidas pelo fumo e pelas chamas duma queimada devoradora. Em breve serão os pessegueiros a florirem. Depois as cerejeiras. Depois as pereiras. Todas as árvores. Todas em apoteoses de coloridos. Chalaça tudo, em todo o caso — estas árvores não dão frutos, não dão ameixas, não dão pêssegos, não dão cerejas, não dão peras; ou, se os dão, não prestam. Esgotam os ardores da seiva na superabundância das pétalas das flores enormes, enormes como nunca se viram em outra parte; contribuem, em meras orgias de cores, para a incrível hilaridade do cenário, para a supina gargalhada primaveral; nada mais. Servem de pretexto para os mil motivos de debandada para os campos, destes bons japoneses, cabaça ao ombro, musumé ao lado, alma descuidosa aberta aos esplendores.
São estas florescências paradoxais, tão características do solo nipônico, que encaminham a cada momento o pincel indígena para requintes de matizes que a estética ocidental não compreende; elas que inspiram aos artistas esses tão frequentes fundos de paisagem salpicados de brancos e vermelhos, a reminiscência do instante em que as flores se desfolharam e caíram do alto, num chuveiro de pétalas.
De parceria com as árvores, são as ervas, as plantas, os arbustos, que se vestem de folhas e se enfeitam de flores. Já ao longo dos muros espreitam, por entre as pedras, as violetas silvestres; e o solo vai vicejar de musgos, fetos, de relvas, de bambus e de humildes gramíneas; e matizar-se de brancos, de azuis, de amarelos, de escarlates, de roxos, de mil cores, de mil flores sem nome, apenas conhecidas dos insetos, que são botânicos eméritos e sabem de cor e salteado onde as corolas lhes oferecem os manjares mais capitosos. Já desabrocham os junquilhos, as camélias. Vão desabrochar a wisteria, as azáleas, os lírios, os íris, os narcisos, os convólvulos, as peônias, a legião vegetal.
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As ameixieiras, por aqui pelas cercanias de Kobe, vão ver-se ao pitoresco outeiro de Okamoto, ou a Suma, no domínio dum templo famoso. Os pessegueiros vão ver-se a Momoyama, em Osaka, que as florinhas cor-de-rosa incendeiam por curtos dias. As cerejeiras, particularmente queridas dos japoneses, vão ver-se a um ou dois templos em Osaka; ou à formosíssima colina de Arashiyama, em Kioto, marginando a ribeira de Hozukawa, caudalosa e rumorejante; ou, no mesmo Kioto, ao parque de Maruiyama, onde uma só árvore, a vetusta cerejeira da noite de Guion, de delicados ramos em pendor, tem merecido os entusiasmos e as estrofes de não sei quantas gerações de amorosos e de poetas, que junto dela pousam, dia ou noite, embevecidos no êxtase do espetáculo; ou ainda a Yoshino, o lugar por excelência preferido, sítio montanhoso e agreste, de difícil acesso, mas por isto mesmo frequentado pelos grandes fanáticos da natureza em pompas; Yoshino, com a sua sentida lenda dum monarca fugitivo, e com o peregrino enlevo das suas mil — conta justa, afirmam, — das suas mil cerejeiras, muitas vezes macróbias, oferecendo aqui, acolá, além, num vale, sobre uma ponte, à borda dum precipício, as cenas mais surpreendentes, mais arrebatadoras, parecendo as árvores em flor, flocos de nuvens brancas a rasarem a relva da paisagem. A wisteria, o fugi, vê-se em Nara, a velha cidade clássica; os ramos trepadores enrolando-se em torno dos troncos das criptomérias gigantes, e os longos cachos brancos e os longos cachos roxos pendentes ao capricho das brisas.
Romarias indescritíveis de graça pagã, de vida exuberante, estas romarias, reunindo-se ao quadro belo da natureza, de uma majestade comovente e estonteadora, a quermesse hilariante do povo em festa. Barracas embandeiradas expondo mil artigos; pousos improvisados para a refeição frugal; os homens em bandos a folgarem; as crianças aos saltos, às gargalhadas, vestidas a primor, de sedas de mil tons; mulheres de todas as condições, graves mamãs deliciosas, meninas recatadas em mimos de flor de estufa, petulantes cantadeiras das ruas, camponesas em roupas escarlates, gueshas em requintes de luxo e de encantos, ovantes como ídolos, todas elas cosméticos, todas elas aromas, todas elas sedas rojantes, todas elas mímicas e requebros, espantosas... Ao recolher da festa, a onda humana é curiosíssima: cada qual empunhando uma haste florida, cada qual com seu embrulho para o presente de estilo aos amigos que não foram; as mulheres comentando as cenas em gestos e em risinhos; as crianças abarrotando de frutas e de bolos, cansadas, sonolentas, rabujando; os homens em galhofa, pouco firmes, com as frontes e as pálpebras encarnadas, que é como se lhes acusa o pecadilho de terem bebido um pouco mais do que convinha...
Nesta contemplação dos cenários está a alma do indígena. Eu vou reproduzir-lhes uma local, que há dias apareceu num jornal da terra, e que define bem a gentil puerilidade panteísta desta gente única: — “em Himeji já se deu fé este ano de duas flores de cerejeira...” duas, é sobretudo delicioso!... O homem do Ocidente pensa, o japonês vê; eis a enorme distinção que os separa. O prazer dos olhos é a alegre preocupação de todos; vive-se no presente, para gozar do momento de hoje, para sorrir às coisas; e pode ser que seja esta a maneira mais coerente do ser humano prestar culto aos seus deuses, ao Criador, que lhe impôs na terra uma missão.
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Naquela primeira manhã primaveral, debandaram dos bosques mais cedo, em magotes alegres, em serenos voos altos em busca de aventuras, chocarreando, atirando aos ventos as suas gargalhadas de mofa, os corvos, nos quais tão bem encaixa, sem eu saber porquê, o nome japonês, de karuçu. A pardalada papeava amores, e safava-se resolutamente dos povoados em demanda dos campos. Uma borboleta amarela, — ia apostar que a primeira da estação, — atravessou num voo o meu jardim. Sobre cada flor pousava um bicho, mosca, ou abelha, ou vespa, ou besouro, ou moscardo, vindos não sei como, por feitiço, pois havia longos meses que ninguém lhes punha a vista em cima; e não tarda que chegue a imensa corja alada, cigarras, gafanhotos, mariposas, mosquitos, tira-olhos, os pândegos do ar, todos bulício, cores e vida!... Pelos córregos, pelas regueiras, ao longo das ruas e caminhos, surdiam pela vez primeira das tocas os sapos, rouquejando; e dois a dois, graves... mas não estou agora para contar-lhes o que faziam nas regueiras e nos córregos, os sapos, graves, dois a dois...
Nos rostos da gente, sugestionada, embriagada em aromas, pintava-se uma alegria nova, uma recrudescência de atividade animal. As raparigas passavam mais lépidas, em kimonos alegres, claros, descalças sobre os socos pela primeira vez depois do Inverno, os seus pés muito brancos, muito mimosos, após o recatado abrigo durante os meses frios. Encontrei além, naquela esquina, uma musumé, que vendia ovos, e um vendilhão ambulante de cestos e vassouras; haviam pousado no chão a sua indústria, conversavam em segredo, mas com intensa vivacidade de expressão; ele agarrava-a pelos pulsos, brutalmente; e ela, a rir, a julgar pelo brilho dos olhos e pelo rostinho alvoroçado de desejos... dava-se-lhe, em promessas.
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Pois foi naquele dia, que eu, em vez de ir divagar pelos campos, como os pardais, — já não digo: (ir vender cestos e vassouras) pelas ruas... — que eu me engravatei cuidadamente e fui bater à porta dum amigo. Tratava-se duma festa de crianças, o que é dizer, duma estopada para adultos. Efetivamente, exibia-se, em frente duma dúzia de meninos e de outra dúzia de pessoas circunspetas, um grafofone americano; grafofone, ou coisa parecida; um phone qualquer em todo o caso; que isto de phones, para quem cursou aulas de física há perto de trinta anos, é de uma complicação tal, que nunca a gente chega, por mais que se aplique, a falar com segurança do assunto.
Mal lhes posso agora traduzir a dolorosíssima impressão, que a festa me deixou. Ratice minha, sem dúvida. Introduzia-se numa caixa um cilindro apropriado para o caso e dava-se corda ao instrumento... mas a quem estou ensinando o padre-nosso!... Então, um americano fanhoso, embirrante, assim com ares de bêbedo e ademanes de exibidor de saltimbancos, a ponto de se lhe presumir a casaca no fio e cheia de nódoas e a gravata branca em uso há mais de seis semanas, falava ao público, anunciava a casa construtora em Nova Iorque, e o que em seguida iria ouvir-se. Eram cançonetas chulas, solos de flauta, estrondos de orquestra, devaneios em viola, discursos grotescos; e tudo aquilo, e as vozes do público que ria, que vociferava, que dava palmas, que pedia bis, crianças berrando, damas mal sufocando o riso, cavalheiros atirando chufas, tudo aquilo, distintamente, saía da caixa enfeitiçada e enchia a sala onde me achava, como se uma multidão de patuscos, vindos da América, vindos do inferno, a tivesse invadido de surpresa.
Mas que tristeza imensa!... Como eu amaldiçoava, naquela hora, estas invenções da época, estes engenhos surpreendentes, monstruosos, que vêm zombar da vida, e assassinar arte, enlevos fugazes que passam, reminiscências, saudades, tudo o que é doce ao espírito... porque, — afirmo-o tanto quanto as palavras me podem traduzir o pensamento, — porque, no fim de contas, ficou-me uma desconsoladora noção de desprestígio da existência, e de troça às leis do mundo, à lei da sucessão dos fatos no tempo; e vi em pensamento um bando de velhinhos alquimistas largarem as retortas, por um momento, e virem bradar à criação, fitando o céu às gargalhadas: — “não tenhas imposturas, sabemos tanto, fazemos tanto como tu!...” — Já não bastava a fotografia, esta artimanha irreverente, que vai implicar com os ausentes, com os defuntos, com o mundo distante, dando-nos em troca da sentida recordação, que guardávamos, o fantasma, em contornos, do que fugiu dos nossos olhos. Agora é o grafofone, que eterniza os sons, a voz dos de longe, a voz dos que morreram. Morte, ausência, já não tem razão de existir nos dicionários. Para o caso a que me refiro, cá continua o americano embirrante a vomitar os seus discursos, os músicos a tocarem, os cantores a cantarem, o público a rir, a chorar, a aplaudir, a chalaçar. Passaram-se assim as cenas há dois anos, há cinco anos, há dez anos. Estará a estas horas o americano morto, coisa de alguma bebedeira mais forte, que o prostrou? a criança, que chorava, dormirá também num túmulo, coitadita? a dama, que ria, estará doida, num asilo? o homem, que aplaudia, num cárcere, cumprindo uma sentença? Nada importa. A máquina chama-os, reúne-os, ressuscita-os, renova-os para a pândega dum momento da existência; o passado é presente; e a máquina agita-os, empurra-os para o interior das nossas casas, para nos divertirmos à custa deles mesmos...
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Primavera? ia eu pensando com os meus botões. Primavera? ri a natureza? florescem as árvores? cantam amores os pássaros? é uma realidade? Ah! talvez não, que hoje, a um fenômeno substitui-se quase sempre uma indústria; e espetáculos do Pai do Céu foram já quase todos suprimidos, porque iam aborrecendo a humanidade... Cada dia que passa, registra cem descobertas, tendente cada qual a apagar do nosso espírito a lenda do mistério, do incompreensível. A vida, o mundo, reduzem-se a máquinas, a engenhos mais ou menos complicados. Doce Primavera, que me enfeitiça? Troça. Aqui anda máquina, apostara! Quem me assegura, que isto não foi Primavera servida a meus avós há mais de um século, gravada num cilindro, e impingida depois como nova, de quando em quando, aos patetas, que a aplaudem?...
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E a propósito da Primavera que irrompia, duas palavras sobre outra Primavera, que morria, aí pela mesma época.
Não haverá ninguém, imagino, que, tendo passado em Kobe, não conheça Nunobiki, a cascata. É que o sítio, pela sua fama merecida, é o passeio obrigado de todos os que chegam, embora se demorem duas horas. Não há condutor de carro, guia de viageiros, um qualquer alcoviteiro que ande à cata de gente que desembarca dos paquetes, que se esqueça de indicar, como primeira diversão, a ida à queda de água. Lá vão todos. Lá fui eu, uma vez, como viageiro: e muitas vezes, depois, como residente, residente em ócios, atraído pelos cenários aprazíveis. Lá em riba, muito em riba da montanha, e salpicada de espumas e acalentada em rumorejos, na penumbra do ermo apertado entre penedos a prumo, cobertos de ramaria silvestre, era a casa de chá, a cháya tradicional, oferecendo repouso por alguns minutos e uma bebida ao forasteiro extasiado, sem falar nos sorrisos, nas mesuras, que prodigalizavam largamente as raparigas que ali olhavam pela venda. Há alguns anos, disseram-me, eram três as raparigas, três irmãs, — as três graças; — mas eu conheci só duas, tendo casado a outra com um titular europeu, conforme ouvi. Eu conheci só duas: O-Tane San, a Senhora Semente, e O-Haru San, a Senhora Primavera. Como se fica presumindo, eram as japonesas mais populares de Kobe inteiro; das quais, talvez não erre, acreditando que os muitos milhares de forasteiros, que nestes últimos seis anos visitaram o Japão, guardam uma reminiscência, uma saudade... Duas fadas dos bosques, a enfeitiçarem os incautos? Não tanto: quando muito, duas sereias de água doce, simplesmente meigas, simplesmente gentis, vendendo graciosamente uma chávena de chá, sem açúcar, à moda japonesa, e dando de graça um sorriso, tão doce, que tirava ao chá o travor próprio, mesmo para o paladar mais exigente. Eu preferia à Semente, a Primavera. Era mais fresca, — fresca como o seu lindo nome, — e mais aveludado o olhar negro, e mais esmerada nos kimonos de seda e na curva em asas de borboleta dos cabelos. Com ela palestrava, com ela ria, ria sobretudo, que o riso é a linguagem mais em uso nesta terra; e, tomando-lhe das mãos, perguntava-lhe quem fora o delicado, inglês, russo, coreano, hotentote, que lhe oferecera aquele anel com uma safira, que enfiava tão bem no seu dedo cor-de-rosa...
Pois muito bem. Sabe-se que em matéria de progresso material o Japão anda a galope. Lembraram-se há pouco estes senhores de constituir uma empresa para a distribuição da água aos domicílios, em Kobe. A ideia não é nova: já Yokohama, Osaka, Nagazaki e certamente outros centros, gozam de instituições da mesma espécie. O que é lástima, — se vale a pena a gente prender-se em ninharias, — é que assim, alcançado pelo turbilhão reformador, que vai dando cabo de todo o pitoresco deste povo, tenda a desaparecer o poço... o poço clássico dos velhos tempos, com a borda circular talhada numa só pedra, o alpendre gracioso sustido por dois madeiros, os baldes suspensos das duas pontas da corda de cairo, que enfia no tosco gorne central; estabelecido em plena cozinha doméstica, ou a um canto do jardim, ou numa vereda acessível a um bando de vizinhos; e cerca as vasilhas de uso, celhas, escudelas, colheres, da mais graciosa e original tanoaria, de que as criadas, meias-nuas, se vão servindo nas lavagens, demorando-as para alongar tagarelices, próprias do sexo e ainda mais das japonesas; eis o poço, correspondendo a um quadro muito característico da vida íntima; o poço, que os adoráveis pincéis dos mestres da pintura se compraziam em reproduzir mil vezes, emaranhando-os na rama das trepadeiras, das asagao, cujas belas campânulas de cores variadas abrem com o nascer do Sol e fenecem logo após...
Para o caso de Kobe, dirigiram-se logo desde o início as picaretas e as enxadas para a montanha de Nunobiki, onde a água jorrava em manancial sem fim; e, à força de braços e de dinamite, no intuito de encaminhar a torrente aos reservatórios da empresa, fez-se um desbarato tal, abatendo as árvores, cortando as rochas, cavando a terra, que todo o enlevo do sítio desapareceu, a paisagem tornou-se em ruínas. Rigorosamente falando, a cascata acabava de existir. A cháya, tal como a gente a conhecera no seu rústico pitoresco, forçada pelas escavações a mudar de pouso, acabava de existir. E as raparigas? logicamente, tinham de desaparecer também. Com efeito, a Semente casou com um japonês e safou-se... e faço votos para que o seu nome lhe seja de bom agouro, dispondo os fados a concederem aos cônjuges uma prole feliz e numerosa; e a Primavera morreu; morreu, por mofina coincidência, quando a outra Primavera ia renascer, dar viço e flores às árvores, não às da cascata, mercê da nova empresa. Morreu tísica; a sua cascata, onde nascera, onde vivera vinte anos, com a sua eterna penumbra crepuscular, com as suas rochas eternamente gotejantes, com o seu ambiente eternamente úmido, roera-lhe os pulmões...
Pobre Primavera... Mas não morreu talvez, pensem bem nisto que lhes digo; embora ninguém mais lograsse vê-la, embora as amigas tivessem acompanhado ao cemitério o seu corpinho inerte... O seu retrato já corre mundo, em fotografia, vendido pelas lojas, perpetuando-lhe o rostinho. E nada mais possível do que o fato de andar ganhando cobres pelas feiras, hoje, amanhã, daqui a quarenta anos, um sujeito qualquer ajoujado com um grafofone, um phone qualquer americano... Estão imaginando a patuscada: — Cilindro apropriado; dá-se corda... A plebe ouve pouco mais ou menos o seguinte: — “Grande companhia de grafofones de Nova Iorque e de Paris! Cena da famosa cascata de Nunobiki, no Japão!” — E a plebe continua de ouvir: é agora o murmúrio contínuo, soluçante, de água despenhando-se de rocha em rocha; trina um pássaro vagabundo; um francês bate as palmas, pede cerveja; um inglês pede whisky; um nipônico pede chá; a voz da Senhora Primavera vibra distinta, fresca, doce; Primavera desfaz-se em desculpas, em risinhos, diz que já vai, não tarda; mas o inglês tem pressa, renova o seu pedido com azedume: e o instrumento é então perfeito — oh, maravilhas da ciência! — que se ouve até o ciciar dum beijo, que é naturalmente do francês...

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