A Primavera
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Há alguns dias, na cidade de Kobe, — poderia precisar o dia, e quase a hora, se
tamanho rigorismo me exigissem, — irrompeu a Primavera. Irrompeu: não há sombra
de exagero no vocábulo. Irrompeu, surgiu dum pulo, fez explosão. Neste país do
Sol Nascente, onde o Sol, e com ele todas as grandes forças naturais, são ainda
uns selvagens — se assim posso expressar-me — uns selvagens sem freio, sem
noção das conveniências, incapazes de se apresentarem de visita, de luvas e
casaca, numa corte qualquer da nossa Europa; neste país do Sol Nascente, ia eu
dizendo, a criação inteira apostou, parece, em oferecer em cada dia uma
surpresa, toda ela exuberâncias inauditas, espalhafatos únicos, repentismos
nervosos, caprichos doidos, como se reunisse em si a quinta-essência da alma
das crianças e a quinta-essência da alma das mulheres, a gargalhada, a troça,
enfim, motejadora de tudo quanto é ordem, harmonia, contemporizadora lei das
transições.
Ontem, foi um Inverno duro, gélido, vestido apenas duma ampla túnica de
neve. Hoje, dum salto, o sol rompeu em quenturas amorosas, começaram de florir
as árvores, e evolaram-se os insetos. Amanhã, será o Estio tórrido, em brasas,
como nem na China, nem na África se sente. E assim corre o tempo, voam as
horas; cada instante é um meteoro; e aqui um tufão arranca os troncos, e ali a
chuva torrencial inunda as várzeas, e além um rio transborda do seu leito, e
uma onda do largo afoga as aldeias, e uma convulsão subterrânea abala o solo...
O europeu, o pobre europeu das paisagens serenas, sofre os choques desta
natureza, por demais subversiva para o seu espírito triste, meditativo e
atribulado. Oferece-se-lhe um de dois caminhos a seguir: ou comunga na vida
japonesa, inicia-se nos seus segredos íntimos, ama-a nas suas modalidades, e
assim a existência se lhe gasta, se consome rápida, esgazeada em admirações,
doidejando em vertigens; ou se retrai, se isola, odeia a natureza que não
compreende, odeia o exílio, vive de saudades da pátria, entre as quatro paredes
do seu lar, ou dos clubes cosmopolitas da colônia forasteira. Não é preciso
mais para justificar o tique de loucura, facilmente perceptível, da enorme
maioria destes expatriados, homens e mulheres, após curta residência no país
japonês.
***
Ora pois, — dada esta concisa explicação à gente incrédula, — há alguns
dias, na cidade de Kobe, irrompeu a Primavera.
Pela noite velha, fora chegando uma brisa como que amorosa,
acariciadora, perfumada. No silêncio das trevas, as carpas acordaram, num
charco fronteiro ao meu albergue; e estrebuchavam, e produziam desusados
ruídos, saltando fora de água, ardendo em cios, endemoninhadas. Quando rompeu o
dia, e apareceu o Sol, não se descreve o enlevo do bafo morno, embalsamado,
genesíaco, que enchia o espaço. O céu tinha azuis novos; cirros de paz pairavam
nas alturas. A paisagem esverdeara; esverdeara da erva nova, que surgia, e das
árvores velhas, que se coloriam. A nossa observação educa-se neste meio em
especialidades de minúcia, abundando por toda a parte, em campos e jardins, as
coníferas, de todas as formas, de todas as grandezes; estas árvores nunca se
desfolham, mas no Inverno descoloram-se, empalidecem como mulheres cloróticas,
chegam a lembrar enfermos, chegam a lembrar coisas mortas; depois, a Primavera
excita-lhes a seiva, um verde intenso assoma-lhes às folhas, a vida recomeça,
doida, vão desabrochar flores em fúria!...
Já as ameixieiras se apresentam em galas de florescência; os negros
troncos rugosos e lavrados pela lepra dos líquenes, sem uma folha sequer,
cobrem-se agora de bastas cabeleiras, alvas ou rosadas, feitas de mil e mil
florinhas presas aos galhos por minúsculos pedúnculos. Vistas de longe, nos
sítios onde abundam, fazem lembrar uma floresta de árvores secas, envolvidas
pelo fumo e pelas chamas duma queimada devoradora. Em breve serão os
pessegueiros a florirem. Depois as cerejeiras. Depois as pereiras. Todas as
árvores. Todas em apoteoses de coloridos. Chalaça tudo, em todo o caso — estas
árvores não dão frutos, não dão ameixas, não dão pêssegos, não dão cerejas, não
dão peras; ou, se os dão, não prestam. Esgotam os ardores da seiva na
superabundância das pétalas das flores enormes, enormes como nunca se viram em
outra parte; contribuem, em meras orgias de cores, para a incrível hilaridade
do cenário, para a supina gargalhada primaveral; nada mais. Servem de pretexto
para os mil motivos de debandada para os campos, destes bons japoneses, cabaça
ao ombro, musumé ao lado, alma
descuidosa aberta aos esplendores.
São estas florescências paradoxais, tão características do solo nipônico,
que encaminham a cada momento o pincel indígena para requintes de matizes que a
estética ocidental não compreende; elas que inspiram aos artistas esses tão
frequentes fundos de paisagem salpicados de brancos e vermelhos, a
reminiscência do instante em que as flores se desfolharam e caíram do alto, num
chuveiro de pétalas.
De parceria com as árvores, são as ervas, as plantas, os arbustos, que
se vestem de folhas e se enfeitam de flores. Já ao longo dos muros espreitam,
por entre as pedras, as violetas silvestres; e o solo vai vicejar de musgos,
fetos, de relvas, de bambus e de humildes gramíneas; e matizar-se de brancos,
de azuis, de amarelos, de escarlates, de roxos, de mil cores, de mil flores sem
nome, apenas conhecidas dos insetos, que são botânicos eméritos e sabem de cor
e salteado onde as corolas lhes oferecem os manjares mais capitosos. Já
desabrocham os junquilhos, as camélias. Vão desabrochar a wisteria, as azáleas,
os lírios, os íris, os narcisos, os convólvulos, as peônias, a legião vegetal.
***
As ameixieiras, por aqui pelas cercanias de Kobe, vão ver-se ao
pitoresco outeiro de Okamoto, ou a Suma, no domínio dum templo famoso. Os
pessegueiros vão ver-se a Momoyama, em Osaka, que as florinhas cor-de-rosa
incendeiam por curtos dias. As cerejeiras, particularmente queridas dos
japoneses, vão ver-se a um ou dois templos em Osaka; ou à formosíssima colina
de Arashiyama, em Kioto, marginando a ribeira de Hozukawa, caudalosa e
rumorejante; ou, no mesmo Kioto, ao parque de Maruiyama, onde uma só árvore, a
vetusta cerejeira da noite de Guion,
de delicados ramos em pendor, tem merecido os entusiasmos e as estrofes de não
sei quantas gerações de amorosos e de poetas, que junto dela pousam, dia ou
noite, embevecidos no êxtase do espetáculo; ou ainda a Yoshino, o lugar por
excelência preferido, sítio montanhoso e agreste, de difícil acesso, mas por
isto mesmo frequentado pelos grandes fanáticos da natureza em pompas; Yoshino,
com a sua sentida lenda dum monarca fugitivo, e com o peregrino enlevo das suas
mil — conta justa, afirmam, — das suas mil cerejeiras, muitas vezes macróbias,
oferecendo aqui, acolá, além, num vale, sobre uma ponte, à borda dum
precipício, as cenas mais surpreendentes, mais arrebatadoras, parecendo as
árvores em flor, flocos de nuvens brancas a rasarem a relva da paisagem. A wisteria,
o fugi, vê-se em Nara, a velha cidade
clássica; os ramos trepadores enrolando-se em torno dos troncos das
criptomérias gigantes, e os longos cachos brancos e os longos cachos roxos
pendentes ao capricho das brisas.
Romarias indescritíveis de graça pagã, de vida exuberante, estas
romarias, reunindo-se ao quadro belo da natureza, de uma majestade comovente e
estonteadora, a quermesse hilariante do povo em festa. Barracas embandeiradas
expondo mil artigos; pousos improvisados para a refeição frugal; os homens em
bandos a folgarem; as crianças aos saltos, às gargalhadas, vestidas a primor,
de sedas de mil tons; mulheres de todas as condições, graves mamãs deliciosas,
meninas recatadas em mimos de flor de estufa, petulantes cantadeiras das ruas,
camponesas em roupas escarlates, gueshas
em requintes de luxo e de encantos, ovantes como ídolos, todas elas cosméticos,
todas elas aromas, todas elas sedas rojantes, todas elas mímicas e requebros,
espantosas... Ao recolher da festa, a onda humana é curiosíssima: cada qual
empunhando uma haste florida, cada qual com seu embrulho para o presente de
estilo aos amigos que não foram; as mulheres comentando as cenas em gestos e em
risinhos; as crianças abarrotando de frutas e de bolos, cansadas, sonolentas,
rabujando; os homens em galhofa, pouco firmes, com as frontes e as pálpebras
encarnadas, que é como se lhes acusa o pecadilho de terem bebido um pouco mais
do que convinha...
Nesta contemplação dos cenários está a alma do indígena. Eu vou
reproduzir-lhes uma local, que há dias apareceu num jornal da terra, e que
define bem a gentil puerilidade panteísta desta gente única: — “em Himeji já se
deu fé este ano de duas flores de cerejeira...” duas, é sobretudo delicioso!... O homem do Ocidente pensa, o
japonês vê; eis a enorme distinção que os separa. O prazer dos olhos é a alegre
preocupação de todos; vive-se no presente, para gozar do momento de hoje, para
sorrir às coisas; e pode ser que seja esta a maneira mais coerente do ser humano
prestar culto aos seus deuses, ao Criador, que lhe impôs na terra uma missão.
***
Naquela primeira manhã primaveral, debandaram dos bosques mais cedo, em
magotes alegres, em serenos voos altos em busca de aventuras, chocarreando,
atirando aos ventos as suas gargalhadas de mofa, os corvos, nos quais tão bem
encaixa, sem eu saber porquê, o nome japonês, de karuçu. A pardalada papeava amores, e safava-se resolutamente dos
povoados em demanda dos campos. Uma borboleta amarela, — ia apostar que a
primeira da estação, — atravessou num voo o meu jardim. Sobre cada flor pousava
um bicho, mosca, ou abelha, ou vespa, ou besouro, ou moscardo, vindos não sei
como, por feitiço, pois havia longos meses que ninguém lhes punha a vista em
cima; e não tarda que chegue a imensa corja alada, cigarras, gafanhotos,
mariposas, mosquitos, tira-olhos, os pândegos do ar, todos bulício, cores e
vida!... Pelos córregos, pelas regueiras, ao longo das ruas e caminhos, surdiam
pela vez primeira das tocas os sapos, rouquejando; e dois a dois, graves... mas
não estou agora para contar-lhes o que faziam nas regueiras e nos córregos, os
sapos, graves, dois a dois...
Nos rostos da gente, sugestionada, embriagada em aromas, pintava-se uma
alegria nova, uma recrudescência de atividade animal. As raparigas passavam
mais lépidas, em kimonos alegres,
claros, descalças sobre os socos pela primeira vez depois do Inverno, os seus
pés muito brancos, muito mimosos, após o recatado abrigo durante os meses
frios. Encontrei além, naquela esquina, uma musumé,
que vendia ovos, e um vendilhão ambulante de cestos e vassouras; haviam pousado
no chão a sua indústria, conversavam em segredo, mas com intensa vivacidade de
expressão; ele agarrava-a pelos pulsos, brutalmente; e ela, a rir, a julgar
pelo brilho dos olhos e pelo rostinho alvoroçado de desejos... dava-se-lhe, em
promessas.
***
Pois foi naquele dia, que eu, em vez de ir divagar pelos campos, como os
pardais, — já não digo: (ir vender cestos e vassouras) pelas ruas... — que eu
me engravatei cuidadamente e fui bater à porta dum amigo. Tratava-se duma festa
de crianças, o que é dizer, duma estopada para adultos. Efetivamente,
exibia-se, em frente duma dúzia de meninos e de outra dúzia de pessoas
circunspetas, um grafofone americano; grafofone, ou coisa parecida; um phone qualquer em todo o caso; que isto
de phones, para quem cursou aulas de
física há perto de trinta anos, é de uma complicação tal, que nunca a gente
chega, por mais que se aplique, a falar com segurança do assunto.
Mal lhes posso agora traduzir a dolorosíssima impressão, que a festa me
deixou. Ratice minha, sem dúvida. Introduzia-se numa caixa um cilindro
apropriado para o caso e dava-se corda ao instrumento... mas a quem estou
ensinando o padre-nosso!... Então, um americano fanhoso, embirrante, assim com
ares de bêbedo e ademanes de exibidor de saltimbancos, a ponto de se lhe
presumir a casaca no fio e cheia de nódoas e a gravata branca em uso há mais de
seis semanas, falava ao público, anunciava a casa construtora em Nova Iorque, e
o que em seguida iria ouvir-se. Eram cançonetas chulas, solos de flauta,
estrondos de orquestra, devaneios em viola, discursos grotescos; e tudo aquilo,
e as vozes do público que ria, que vociferava, que dava palmas, que pedia bis, crianças berrando, damas mal
sufocando o riso, cavalheiros atirando chufas, tudo aquilo, distintamente, saía
da caixa enfeitiçada e enchia a sala onde me achava, como se uma multidão de
patuscos, vindos da América, vindos do inferno, a tivesse invadido de surpresa.
Mas que tristeza imensa!... Como eu amaldiçoava, naquela hora, estas
invenções da época, estes engenhos surpreendentes, monstruosos, que vêm zombar
da vida, e assassinar arte, enlevos fugazes que passam, reminiscências,
saudades, tudo o que é doce ao espírito... porque, — afirmo-o tanto quanto as
palavras me podem traduzir o pensamento, — porque, no fim de contas, ficou-me
uma desconsoladora noção de desprestígio da existência, e de troça às leis do
mundo, à lei da sucessão dos fatos no tempo; e vi em pensamento um bando de
velhinhos alquimistas largarem as retortas, por um momento, e virem bradar à
criação, fitando o céu às gargalhadas: — “não tenhas imposturas, sabemos tanto,
fazemos tanto como tu!...” — Já não bastava a fotografia, esta artimanha
irreverente, que vai implicar com os ausentes, com os defuntos, com o mundo
distante, dando-nos em troca da sentida recordação, que guardávamos, o
fantasma, em contornos, do que fugiu dos nossos olhos. Agora é o grafofone, que
eterniza os sons, a voz dos de longe, a voz dos que morreram. Morte, ausência,
já não tem razão de existir nos dicionários. Para o caso a que me refiro, cá
continua o americano embirrante a vomitar os seus discursos, os músicos a
tocarem, os cantores a cantarem, o público a rir, a chorar, a aplaudir, a
chalaçar. Passaram-se assim as cenas há dois anos, há cinco anos, há dez anos.
Estará a estas horas o americano morto, coisa de alguma bebedeira mais forte,
que o prostrou? a criança, que chorava, dormirá também num túmulo, coitadita? a
dama, que ria, estará doida, num asilo? o homem, que aplaudia, num cárcere,
cumprindo uma sentença? Nada importa. A máquina chama-os, reúne-os,
ressuscita-os, renova-os para a pândega dum momento da existência; o passado é
presente; e a máquina agita-os, empurra-os para o interior das nossas casas,
para nos divertirmos à custa deles mesmos...
***
Primavera? ia eu pensando com os meus botões. Primavera? ri a natureza?
florescem as árvores? cantam amores os pássaros? é uma realidade? Ah! talvez
não, que hoje, a um fenômeno substitui-se quase sempre uma indústria; e
espetáculos do Pai do Céu foram já quase todos suprimidos, porque iam
aborrecendo a humanidade... Cada dia que passa, registra cem descobertas,
tendente cada qual a apagar do nosso espírito a lenda do mistério, do
incompreensível. A vida, o mundo, reduzem-se a máquinas, a engenhos mais ou
menos complicados. Doce Primavera, que me enfeitiça? Troça. Aqui anda máquina,
apostara! Quem me assegura, que isto não foi Primavera servida a meus avós há
mais de um século, gravada num cilindro, e impingida depois como nova, de
quando em quando, aos patetas, que a aplaudem?...
***
E a propósito da Primavera que irrompia, duas palavras sobre outra
Primavera, que morria, aí pela mesma época.
Não haverá ninguém, imagino, que, tendo passado em Kobe, não conheça Nunobiki, a cascata. É que o sítio, pela
sua fama merecida, é o passeio obrigado de todos os que chegam, embora se
demorem duas horas. Não há condutor de carro, guia de viageiros, um qualquer
alcoviteiro que ande à cata de gente que desembarca dos paquetes, que se
esqueça de indicar, como primeira diversão, a ida à queda de água. Lá vão
todos. Lá fui eu, uma vez, como viageiro: e muitas vezes, depois, como
residente, residente em ócios, atraído pelos cenários aprazíveis. Lá em riba,
muito em riba da montanha, e salpicada de espumas e acalentada em rumorejos, na
penumbra do ermo apertado entre penedos a prumo, cobertos de ramaria silvestre,
era a casa de chá, a cháya
tradicional, oferecendo repouso por alguns minutos e uma bebida ao forasteiro
extasiado, sem falar nos sorrisos, nas mesuras, que prodigalizavam largamente
as raparigas que ali olhavam pela venda. Há alguns anos, disseram-me, eram três
as raparigas, três irmãs, — as três graças; — mas eu conheci só duas, tendo
casado a outra com um titular europeu, conforme ouvi. Eu conheci só duas:
O-Tane San, a Senhora Semente, e O-Haru San, a Senhora Primavera. Como se fica
presumindo, eram as japonesas mais populares de Kobe inteiro; das quais, talvez
não erre, acreditando que os muitos milhares de forasteiros, que nestes últimos
seis anos visitaram o Japão, guardam uma reminiscência, uma saudade... Duas
fadas dos bosques, a enfeitiçarem os incautos? Não tanto: quando muito, duas
sereias de água doce, simplesmente meigas, simplesmente gentis, vendendo
graciosamente uma chávena de chá, sem açúcar, à moda japonesa, e dando de graça
um sorriso, tão doce, que tirava ao chá o travor próprio, mesmo para o paladar
mais exigente. Eu preferia à Semente, a Primavera. Era mais fresca, — fresca
como o seu lindo nome, — e mais aveludado o olhar negro, e mais esmerada nos kimonos de seda e na curva em asas de
borboleta dos cabelos. Com ela palestrava, com ela ria, ria sobretudo, que o
riso é a linguagem mais em uso nesta terra; e, tomando-lhe das mãos,
perguntava-lhe quem fora o delicado, inglês, russo, coreano, hotentote, que lhe
oferecera aquele anel com uma safira, que enfiava tão bem no seu dedo
cor-de-rosa...
Pois muito bem. Sabe-se que em matéria de progresso material o Japão
anda a galope. Lembraram-se há pouco estes senhores de constituir uma empresa
para a distribuição da água aos domicílios, em Kobe. A ideia não é nova: já
Yokohama, Osaka, Nagazaki e certamente outros centros, gozam de instituições da
mesma espécie. O que é lástima, — se vale a pena a gente prender-se em
ninharias, — é que assim, alcançado pelo turbilhão reformador, que vai dando
cabo de todo o pitoresco deste povo, tenda a desaparecer o poço... o poço
clássico dos velhos tempos, com a borda circular talhada numa só pedra, o
alpendre gracioso sustido por dois madeiros, os baldes suspensos das duas
pontas da corda de cairo, que enfia no tosco gorne central; estabelecido em
plena cozinha doméstica, ou a um canto do jardim, ou numa vereda acessível a um
bando de vizinhos; e cerca as vasilhas de uso, celhas, escudelas, colheres, da
mais graciosa e original tanoaria, de que as criadas, meias-nuas, se vão
servindo nas lavagens, demorando-as para alongar tagarelices, próprias do sexo
e ainda mais das japonesas; eis o poço, correspondendo a um quadro muito
característico da vida íntima; o poço, que os adoráveis pincéis dos mestres da
pintura se compraziam em reproduzir mil vezes, emaranhando-os na rama das
trepadeiras, das asagao, cujas belas
campânulas de cores variadas abrem com o nascer do Sol e fenecem logo após...
Para o caso de Kobe, dirigiram-se logo desde o início as picaretas e as
enxadas para a montanha de Nunobiki,
onde a água jorrava em manancial sem fim; e, à força de braços e de dinamite,
no intuito de encaminhar a torrente aos reservatórios da empresa, fez-se um
desbarato tal, abatendo as árvores, cortando as rochas, cavando a terra, que
todo o enlevo do sítio desapareceu, a paisagem tornou-se em ruínas.
Rigorosamente falando, a cascata acabava de existir. A cháya, tal como a gente a conhecera no seu rústico pitoresco,
forçada pelas escavações a mudar de pouso, acabava de existir. E as raparigas?
logicamente, tinham de desaparecer também. Com efeito, a Semente casou com um
japonês e safou-se... e faço votos para que o seu nome lhe seja de bom agouro,
dispondo os fados a concederem aos cônjuges uma prole feliz e numerosa; e a
Primavera morreu; morreu, por mofina coincidência, quando a outra Primavera ia
renascer, dar viço e flores às árvores, não às da cascata, mercê da nova
empresa. Morreu tísica; a sua cascata, onde nascera, onde vivera vinte anos,
com a sua eterna penumbra crepuscular, com as suas rochas eternamente
gotejantes, com o seu ambiente eternamente úmido, roera-lhe os pulmões...
Pobre Primavera... Mas não morreu talvez, pensem bem nisto que lhes
digo; embora ninguém mais lograsse vê-la, embora as amigas tivessem acompanhado
ao cemitério o seu corpinho inerte... O seu retrato já corre mundo, em
fotografia, vendido pelas lojas, perpetuando-lhe o rostinho. E nada mais
possível do que o fato de andar ganhando cobres pelas feiras, hoje, amanhã,
daqui a quarenta anos, um sujeito qualquer ajoujado com um grafofone, um phone qualquer americano... Estão
imaginando a patuscada: — Cilindro apropriado; dá-se corda... A plebe ouve
pouco mais ou menos o seguinte: — “Grande companhia de grafofones de Nova
Iorque e de Paris! Cena da famosa cascata de Nunobiki, no Japão!” — E a plebe continua de ouvir: é agora o
murmúrio contínuo, soluçante, de água despenhando-se de rocha em rocha; trina
um pássaro vagabundo; um francês bate as palmas, pede cerveja; um inglês pede whisky; um nipônico pede chá; a voz da
Senhora Primavera vibra distinta, fresca, doce; Primavera desfaz-se em
desculpas, em risinhos, diz que já vai, não tarda; mas o inglês tem pressa,
renova o seu pedido com azedume: e o instrumento é então perfeito — oh,
maravilhas da ciência! — que se ouve até o ciciar dum beijo, que é naturalmente
do francês...
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