Tibério Valença fê-lo parar dizendo:
— Então que é isso?
— Meu pai...
— Retirava-se sem mais nem menos? Que me diz
em resposta às minhas observações? Veja lá. Ou a pianista sem a fortuna, ou a
fortuna sem a pianista: é escolher. Eu não ajuntei dinheiro nem o criei com
tanto trabalho para realizar os projetos atrevidos de uma mulher de pouco mais
ou menos...
— Meu pai, se o que me retivesse na casa
paterna fosse simplesmente a fortuna, minha escolha estava feita: o amor de uma
mulher honesta bastava-me para amparar minha vida: eu saberei trabalhar por
ela. Mas eu sei que acompanhando essa moça perco a afeição de meu pai, e
prefiro perder a mulher a perder o pai: fico.
Esta resposta de Tomás desconcertou Tibério
Valença. O pobre homem passou a mão pela cabeça, fechou os olhos, franziu a
testa, e depois de dois minutos, disse, levantando-se:
— Pois sim, de um ou de outro modo, estimo
que fique. Poupo-lhe um arrependimento.
E fez um gesto a Tomás para que saísse. Tomás
saiu, de cabeça baixa, e dirigiu-se para o seu quarto, onde ficou encerrado até
o dia seguinte.
***
No dia seguinte, na ocasião em que Malvina ia
sair para dar as suas lições, recebeu um bilhete de Tibério Valença. O pai de
Tomás dava o ensino de Elisa por acabado e mandava-lhe o saldo de contas.
Malvina não compreendeu esta despedida tão
positiva e tão humilhante. A que podia atribuí-la? Em vão indagou se a memória
lhe apresentava um fato que pudesse justificar ou explicar o bilhete, e não
achou.
Resolveu ir à casa de Tibério Valença e ouvir
da própria boca dele as causas que faziam dispensar tão bruscamente as suas
lições à menina Elisa.
Tibério Valença não estava em casa. Estava só
Elisa. Tomás estava, mas encerrara-se no quarto, de onde só saíra à hora do
almoço por instâncias do pai.
Elisa recebeu a pianista com certa frieza que
bem se via ser estudada. O coração pedia-lhe outra coisa.
À primeira reclamação de Malvina acerca do
estranho bilhete que recebera, Elisa respondeu que não sabia. Mas tão mal
fingiu a ignorância, tão difícil e doloroso lhe foi a resposta, que Malvina,
compreendendo que alguma coisa havia no fundo com que não queria contrariá-la,
pediu positivamente a Elisa que o dissesse, prometendo nada referir.
Elisa disse à pianista que o amor de Tomás
por ela estava descoberto, e que o pai levava a mal esse amor, tendo lançado
mão do meio da despedida para afastá-la da casa e da convivência de Tomás.
Malvina, que amava sincera e apaixonadamente
o irmão de Elisa, chorou ao ouvir esta notícia.
Mas as lágrimas que faziam? O ato estava
consumado; a despedida estava feita; só havia uma coisa a fazer: sair e não pôr
mais os pés na casa de Tibério Valença.
Foi o que Malvina resolveu fazer.
Levantou-se e despediu-se de Elisa.
Esta, que, apesar de tudo, tinha um fundo de
afeição pela pianista, perguntou-lhe se não ficava mal com ela.
— Mal por quê? perguntou a pianista. Não, não
fico.
E saiu enxugando as lágrimas.
***
Estava desfeita a situação que podia
continuar a avassalar o coração de Tomás. O pai não parou, e procedeu, no ponto
de vista em que se colocava, com uma lógica cruel. Tratou primeiramente de
afastar o filho da corte por alguns meses, de maneira que a ação do tempo
pudesse apagar no coração e na memória do rapaz o amor e a imagem de Malvina.
— É isto, dizia consigo Tibério Valença, não
há outro meio. Longe esquece-lhe tudo. A tal pianista não é lá essas belezas
que impressionem muito.
O narrador protesta contra esta última
reflexão de Tibério Valença, que, de certo, na idade que contava, já se
esquecera dos predicados da beleza e dos milagres da simpatia que fazem amar às
feias. E até quando as feias se fazem amar, é sempre doida e perdidamente, diz
La Bruyère, porque foi decerto por filtros poderosos e vínculos desconhecidos
que elas souberam atrair e prender.
Tibério Valença não admitia a hipótese de
amar a uma feia, nem de amar muito tempo uma bonita. Era desta negação que ele
partia, como homem sensual e positivo que era.
Resolveu, portanto, mandar o filho para fora,
e comunicou-lhe o projeto oito dias depois das cenas que acima narrei.
Tomás recebeu a notícia com aparente
indiferença. O pai ia armado de objeções para responder às que lhe dispensasse
o rapaz, e ficou muito admirado quando este curvou-se submisso à ordem de
partir.
Entretanto aproveitou a ocasião para usar de
alguma cordura e generosidade.
— Fazes gosto em ir? perguntou-lhe.
— Faço, meu pai, foi a resposta de Tomás.
Era à Bahia que devia ir o filho de Tibério.
Desde o dia desta conferência Tomás
mostrou-se mais e mais triste, sem todavia manifestar a ninguém com que
sentimento recebera a notícia de deixar o Rio de Janeiro.
Tomás e Malvina só se tinham encontrado duas
vezes depois do dia em que esta foi despedida da casa de Tibério. A primeira
foi à porta da casa dela. Tomás passava na ocasião em que Malvina ia entrar.
Falaram-se. Não era preciso nenhum deles perguntar se sentiam saudades com a
ausência e a separação. O ar de ambos dizia tudo. Tomás, às interrogações de
Malvina, disse que passava ali sempre, e sempre via as janelas fechadas. Cuidou
um dia que ela estivesse doente.
— Não estive doente: é preciso que nos
esqueçamos um do outro. Se eu não puder, seja...
— Eu? interrompeu Tomás.
— É preciso, respondeu a pianista suspirando.
— Nunca, disse Tomás.
A segunda vez que se viram foi em casa de um
amigo cuja irmã recebia lições de Malvina. Estava lá o moço na ocasião em que a
pianista entrou. Malvina pretextou doença, e disse que só para não ser esperada
em vão tinha ido lá. Depois do que, retirou-se.
Tomás resolveu ir despedir-se de Malvina.
Seus esforços, porém, foram inúteis. Em casa sempre lhe diziam que ela tinha
saído, e as janelas constantemente fechadas pareciam as portas do túmulo do
amor dos dois.
Na véspera de partir Tomás convenceu-se de
que era impossível despedir-se da moça. Desistiu de procurá-la e resolveu-se,
com mágoa, a sair do Rio de janeiro sem dar-lhe o adeus de despedida.
— Nobre moça! dizia ele consigo; não quer que
do nosso encontro resulte atear-se o amor que me prende a ela.
Enfim Tomás partiu.
Tibério deu-lhe todas as cartas e ordens
necessárias para que nada lhe faltasse na Bahia, e soltou do peito um suspiro
de consolação quando o filho saiu à barra.
***
Malvina soube da partida de Tomás logo no dia
seguinte. Chorou amargamente. Por que sairia? Ela acreditou que dois motivos
seriam: ou resolução corajosa para esquecer um amor que lhe trouxera o desgosto
do pai; ou uma intimação cruel do pai. De um ou outro modo Malvina estimava
esta separação. Se ela não esquecia o rapaz, tinha esperanças de que o rapaz a
esquecesse, e então não sofria com esse amor que só podia trazer desgraças ao
filho de Tibério Valença.
Este nobre pensamento denota claramente o
caráter elevado e desinteressado e o amor profundo e corajoso da pianista.
Tanto bastava para que ela merecesse casar com o rapaz.
Quanto a Tomás, partiu com o coração apertado
e o ânimo abatido. À última hora foi que ele sentiu quanto amava a moça e como
nesta separação lhe sangrava o coração. Mas devia partir. Afogou a dor em
lágrimas e partiu.
***
Correram dois meses.
Durante os primeiros dias de sua residência
na Bahia, Tomás sentiu as grandes saudades do grande amor que nutria por
Malvina. Fez-se-lhe em torno maior solidão ainda que a que já tinha.
Parecia-lhe que ia morrer naquele desterro, sem a luz e o calor que lhe dava
vida. Estando, por assim dizer, a dois passos do Rio de Janeiro,
afigurava-se-lhe achar-se no cabo do mundo, longe, eternamente longe,
infinitamente longe de Malvina.
O correspondente de Tibério Valença,
previamente informado por este, procurou todos os meios de distrair o espírito
de Tomás. Tudo foi em vão. Tomás olhava para tudo com indiferença, isto mesmo
quando lhe era dado olhar, porque quase sempre passava os dias encerrado em
casa, recusando toda a espécie de distração.
Esta mágoa tão profunda tinha eco em Malvina.
A pianista sentia do mesmo modo a ausência de Tomás; não é que tivesse ocasião
ou procurasse vê-lo, na época em que se achava na corte, mas é que, separados
pelo mar, parecia que estavam separados pela morte, e que nunca mais tinham de
ver-se.
Ora, Malvina desejava ver Tomás amando outra,
estimado pelo pai, mas queria vê-lo. Este amor de Malvina, que se apascentava
com a felicidade da outra, e só com a vista do objeto amado, este amor não
diminuiu, cresceu na ausência, e cresceu muito. A moça nem já podia conter as
suas lágrimas; vertia-as insensivelmente todos os dias.
***
Um dia Tomás recebeu uma carta de seu pai
participando-lhe que Elisa se ia casar com um jovem deputado. Tibério Valença
fazia do futuro genro a pintura mais lisonjeira. Era a todos os respeitos um
homem distinto e digno da estima de Elisa.
Tomás aproveitou a ocasião, e na resposta que
deu a essa carta apresentou a Tibério Valença a ideia de fazê-lo voltar para
assistir ao casamento de sua irmã. E procurou lembrar isto no tom mais
indiferente e frio deste mundo.
Tibério Valença quis responder positivamente
que não; mas, forçado a dar minuciosamente as razões da negativa, e não
querendo tocar no assunto, tomou a resolução de não responder senão depois de
concluído o casamento, a fim de lhe tirar o pretexto de novo pedido da mesma
natureza.
Tomás estranhou o silêncio do pai. Não
escreveu outra carta pela razão de que a insistência fá-lo-ia desconfiar.
Demais, o silêncio de Tibério Valença, que ao princípio lhe pareceu estranho,
tinha uma explicação própria e natural. Essa explicação foi a verdadeira causa
do silêncio. Tomás compreendeu e calou-se.
Mas, passados os dois meses, nas vésperas do
casamento de Elisa, apareceu Tomás no Rio de Janeiro. Saíra da Bahia
inopinadamente, sem que o correspondente de Tibério Valença pudesse obstar.
Chegando ao Rio de janeiro foi o seu primeiro
cuidado ir à casa de Malvina. Naturalmente não lhe podiam negar a entrada,
visto não haver ordem neste sentido por saber-se que ele estava na Bahia.
Tomás, que dificilmente se pudera conter nas
saudades que sentiu por Malvina, chegara ao estado de lhe ser impossível
continuar ausente. Procurou iludir a vigilância do correspondente de seu pai, e
na primeira ocasião pôs em execução o projeto concebido.
Durante a viagem, à proporção que se
aproximava do porto desejado, expandia-se o coração do rapaz e nasciam-lhe
ânsias cada vez maiores de pôr o pé em terra.
Como já disse, a primeira casa a que Tomás se
dirigiu foi a de Malvina. O fâmulo disse que esta se achava em casa, e Tomás
entrou. Quando a pianista soube que Tomás estava na sala soltou um grito de
alegria, manifestação espontânea do coração, e correu ao encontro dele.
O encontro foi como devia ser o de dois
corações que se amam e que tornam a ver-se depois de longa ausência. Pouco
disseram, na santa efusão das almas, que falavam em silêncio e se comunicavam
por esses meios simpáticos e secretos do amor.
Depois, vieram as indagações sobre as
saudades de cada um. Era aquela a primeira vez que tinham ocasião de dizerem
francamente o que sentiam um pelo outro.
A pergunta natural de Malvina foi esta:
— Abrandou-se a crueldade de seu pai?
— Não, respondeu Tomás.
— Como, não?
— Não. Vim sem ele saber.
— Ah!
— Não podia mais estar naquele desterro. Era
necessidade para o coração e para a vida...
— Oh! fez mal...
— Fiz o que devia.
— Mas, seu pai...
— Meu pai ralhará comigo; mas paciência;
acho-me disposto a afrontar tudo. Depois de consumado o fato, meu pai é sempre
pai, e nos perdoará...
— Oh! nunca!
— Como, nunca? Recusa ser minha mulher?
— Essa seria a minha felicidade; mas quisera
sê-lo com honra.
— Que mais honra?
— Um casamento clandestino não nos ficaria
bem. Se ambos fôssemos pobres ou ricos, sim; mas a desigualdade das nossas
fortunas...
— Oh! não faças essa consideração.
— É essencial.
— Não, não digas isso... Há de ser minha
mulher ante Deus e ante os homens. Que valem as fortunas neste caso? Uma coisa
nos iguala: é a nobreza moral, é o amor que nos liga. Não entremos nessas
miseráveis considerações do cálculo e do egoísmo. Sim?
— Isto é o fogo da paixão... Dirás sempre o
mesmo?
— Oh! sempre!
Tomás ajoelhou aos pés de Malvina. Tomou-lhe
as mãos entre as dele e beijou-as com beijos de ternura...
Teresa entrou na sala, justamente na ocasião
em que Tomás se levantava. Uns minutos antes que fosse encontraria aquele
quadro de amor.
Malvina apresentou Tomás a sua mãe. Parece
que Teresa já alguma coisa sabia dos amores da filha. Na conversa com Tomás deixou
escapar palavras equívocas que deram lugar a que o filho de Tibério Valença
expusesse à velha os seus projetos e os seus amores.
As objeções da velha foram idênticas às da
filha. Também ela via na situação esquerda do rapaz em relação ao pai uma razão
de impossibilidade para o casamento.
Desta primeira entrevista saiu Tomás, alegre
por ver Malvina, triste pela singular oposição de Malvina e de Teresa.
***
Em casa de Tibério Valença faziam-se
preparativos para o casamento de Elisa.
O noivo era um jovem deputado de província,
se do Norte ou do Sul, não sei, mas deputado cujo talento supria os anos de
prática, e que começava a influir na situação. Acrescia que era dono de uma boa
fortuna pela recente morte do pai.
Tais considerações decidiram Tibério Valença.
Ter por genro um homem abastado, gozando de uma certa posição política, talvez
ministro dentro de pouco tempo, era um partido de grande valor. Neste ponto a
alegria de Tibério Valença era legítima. E como os noivos se amavam deveras,
condição que Tibério Valença dispensaria se necessário fosse, esta união
tornou-se aos olhos de todos uma união natural e propícia.
A alegria de Tibério Valença não podia ser
maior. Tudo lhe corria às mil maravilhas. Casava a filha ao sabor dos seus
desejos, e tinha longe o filho desnaturado, que talvez àquela hora já começasse
a arrepender-se das veleidades amorosas que tivera.
Preparava-se enxoval, faziam-se convites,
compravam-se mil coisas necessárias à casa do pai e à da filha, e tudo esperava
ansioso o dia aprazado para o casamento de Elisa.
Ora, no meio dessa satisfação plena e geral,
caiu subitamente como um raio o filho desterrado, conviva que se não contara
para a festa.
A alegria de Tibério Valença ficou assim um
tanto aguada. Apesar de tudo não quis romper absolutamente com o filho, e,
sinceramente ou não, o primeiro que falou a Tomás não foi o algoz, foi o pai.
Tomás disse que viera para assistir ao
casamento da irmã e conhecer o cunhado.
Apesar desta declaração Tibério Valença
determinou sondar o espírito do filho no capítulo dos amores. Guardou-se para o
dia seguinte.
E no dia seguinte, logo depois do almoço,
Tibério Valença deu familiarmente o braço ao filho e levou-o para uma sala
retirada. Aí, depois de fazê-lo sentar, perguntou-lhe se o casamento, se outro
motivo o trouxera tão inopinadamente ao Rio de Janeiro.
Tomás hesitou.
— Fala, disse o pai, fala com franqueza.
— Pois bem, vim por dois motivos: pelo
casamento e por outro...
— O outro é o mesmo?
— Quer franqueza, meu pai?
— Exijo.
— É...
— Está bem. Lavo as mãos. Casa-te, consinto;
mas nada mais terás de mim. Nada, ouviste?
E dizendo isto Tibério Valença saiu.
Tomás ficou pensativo.
Era um consentimento aquilo. Mas de que
natureza? Tibério Valença dizia que, em se casando, o filho não esperasse nada
do pai. Que não esperasse os bens da fortuna, pouco ou nada era para Tomás. Mas
aquele nada estendia-se a tudo, talvez à proteção paterna, talvez ao amor
paterno. Esta consideração de que perderia a afeição do pai calava muito no
espírito do filho.
A esperança nunca abandonou os homens. Tomás
concebeu a esperança de convencer o pai com o andar dos tempos.
Entretanto, passaram-se os dias e concluiu-se
o casamento da filha de Tibério Valença.
No dia do casamento, como nos outros, Tibério
Valença tratou o filho com uma sequidão nada paternal. Tomás sentia-se por
isso, mas a vista de Malvina, a cuja casa ia regularmente três vezes por
semana, dissipava as aflições para dar-lhe novas esperanças, e novos desejos de
completar a ventura que procurava.
O casamento de Elisa coincidiu com a retirada
do deputado para a província natal. A mulher acompanhou o marido, e, a
instâncias do pai, ficou convencionado que no ano seguinte viriam
estabelecer-se definitivamente no Rio de Janeiro.
O tratamento de Tibério Valença em relação a
Tomás continuou a ser o mesmo: frio e reservado. Em vão procurava o moço um
ensejo para tocar de frente a questão e trazer o pai a sentimentos mais
compassivos; o pai esquivava-se sempre.
Mas se era assim por um lado, por outro os
desejos legítimos do amor de Tomás por Malvina cresciam mais e mais, dia por
dia. A luta que se dava no coração de Tomás, entre o amor de Malvina e o
respeito aos desejos de seu pai, foi fraqueando, cabendo o triunfo ao amor. Os
esforços do moço eram inúteis, e finalmente um dia chegou em que foi-lhe
necessário decidir entre as determinações do pai e o amor pela pianista.
E a pianista? Essa era mulher e amava
perdidamente o filho de Tibério Valença. Também uma luta interna se dava no
espírito dela, mas à força do amor que alimentava ligavam-se as instâncias
continuadas de Tomás. Este objetava-lhe que, uma vez casados, a clemência do
pai reapareceria, e tudo se terminaria em bem. Tal estado de coisas
prolongou-se até um dia em que não foi mais possível a ambos recuar. Sentiram
que a existência dependia do casamento.
Tomás encarregou-se de falar a Tibério. Era o
ultimatum.
Uma noite em que Tibério Valença pareceu mais
alegre que de ordinário, Tomás deu um passo afoitamente para a questão,
dizendo-lhe que, depois de vãos esforços, reconhecera que a paz da sua
existência dependia do casamento com Malvina.
— Então casas-te? perguntou Tibério Valença.
— Venho pedir-lhe...
— Já disse o que devias esperar de mim se
desses semelhante passo. Não passarás por ignorante. Casa-te; mas quando te
arrependeres ou a necessidade te bater à porta, escusas de voltar o rosto para
teu pai. Supõe que ele está pobre e nada te pode dar.
Esta resposta de Tibério Valença agradou em
parte a Tomás. Não entrava nas palavras do pai a consideração do afeto que lhe
negaria, mas o auxílio que lhe não havia de prestar em caso de necessidade.
Ora, este auxílio era o que Tomás
dispensava, uma vez que se pudesse unir a Malvina. Contava com algum dinheiro
que possuía e tinha esperanças de arranjar dentro de pouco tempo um emprego
público.
Não deu outra resposta a Tibério Valença
senão a de que estava determinado a realizar o casamento.
Diga-se em honra de Tomás, não foi sem algum
remorso que ele tomou uma determinação que parecia contrariar os desejos e os
sentimentos do pai. É certo que a linguagem deste excluía toda a consideração
de ordem moral para valer-se de uns preconceitos miseráveis, mas ao filho não
competia, de certo, apreciá-los e julgá-los.
Tomás
hesitou mesmo depois da entrevista com Tibério Valença, mas a presença de
Malvina, a cuja casa foi logo, dissipou todos os receios e pôs termo a todas as
hesitações.
O casamento efetuou-se pouco tempo depois,
sem comparecimento do pai, nem de parente algum de Tomás.
***
O fim do ano de 1850 não trouxe incidente
algum à situação da família Valença.
Tomás e Malvina viviam no gozo da mais
deliciosa felicidade. Unidos depois de tanto tropeço e hesitação, entraram na
estância da bem-aventurança conjugal coroados de mirto e de rosas. Eram moços e
ardentes; amavam-se no mesmo grau; tinham chorado saudades e ausências. Que
melhores condições para que aquelas duas almas, no momento do consórcio legal,
achassem uma ternura elevada e celeste, e se confundissem no ósculo santo do
casamento?
Todas as luas-de-mel se parecem. A diferença
está na duração. Dizem que a lua-de-mel não pode ser perpétua, e para desmentir
este ponto não tenho o direito da experiência. Todavia, creio que a asserção é
arriscada demais. Que a intensidade do amor do primeiro tempo diminua com a
ação do mesmo tempo, isso creio: é da própria condição humana. Mas essa
diminuição não é de certo tamanha como se afigura a muitos, se o amor subsiste
à lua-de-mel, menos intenso é verdade, mas ainda bastante claro para dar luz ao
lar doméstico.
A lua-de-mel de Tomás e Malvina tinha certo
caráter de perpetuidade.
***
No princípio do ano de 1851 adoeceu Tibério
Valença.
Foi ao princípio moléstia passageira, em
aparência ao menos; mas surgiram complicações novas, e ao cabo de quinze dias
declarou-se Tibério Valença gravemente enfermo.
Um excelente médico, que era de muito tempo o
médico da casa, começou a tratá-lo no meio dos maiores cuidados. Não hesitou,
no fim de alguns dias, em declarar que nutria receios pela vida do doente.
Apenas soube da moléstia do pai, Tomás foi
visitá-lo. Era a terceira vez, depois do casamento. Nas duas primeiras Tibério
Valença tratou-o com tal frieza e reserva que Tomás julgou dever deixar que o
tempo, remédio a tudo, modificasse um tanto os sentimentos do pai.
Mas agora o caso era diferente. Tratava-se de
uma moléstia grave e do perigo de vida de Tibério Valença. Tudo desaparecera
diante deste dever.
Quando Tibério Valença viu Tomás ao pé do
leito de dor em que jazia manifestou certa expressão que era sinceramente de
pai. Tomás chegou-se a ele e beijou-lhe a mão. Tibério mostrou-se satisfeito
com esta visita do filho.
Os dias correram e a moléstia de Tibério
Valença, em vez de diminuir, lavrava e começava a destruir-lhe a vida. Houve
consultas de facultativos. Tomás indagou deles sobre o estado real de seu pai,
e a resposta que teve foi que se não era desesperado, era ao menos gravíssimo.
Tomás pôs em atividade tudo quanto podia
tornar à vida o autor dos seus dias.
Dias e dias passava junto do leito do velho,
muitas vezes sem comer e sem dormir.
Um dia, em que voltava para casa, após longas
horas de insônia, veio Malvina saindo-lhe ao encontro e abraçá-lo, como de
costume, mas com ar de ter alguma coisa a pedir-lhe.
Com efeito, depois de abraçá-lo, e indagar do
estado de Tibério Valença, pediu-lhe que desejava ir, poucas horas que fossem,
cuidar como enfermeira do sogro.
Tomás acedeu a esse pedido.
No dia seguinte Tomás disse ao pai quais eram
os desejos de Malvina. Tibério Valença ouviu com sinais de satisfação as
palavras do filho, e, depois de este concluir, respondeu-lhe que aceitava
contente a oferta dos serviços da nora.
Malvina foi no mesmo dia começar os seus
serviços de enfermeira.
Tudo em casa mudou como por encanto.
A doce e discreta influência da mulher deu
nova direção aos arranjos necessários à casa e à aplicação dos medicamentos.
Tinha crescido a gravidade da moléstia de
Tibério Valença. Era uma febre que o trazia constantemente, ou delirante, ou
sonolento.
Por isso durante os primeiros dias da estada
de Malvina em casa do doente, este de nada pôde saber.
Foi só depois que a força da ciência
conseguiu restituir a Tibério Valença as esperanças de vida e alguma
tranquilidade, que o pai de Tomás descobriu a presença da nova enfermeira.
Em tais circunstâncias os preconceitos só
dominam os espíritos inteiramente pervertidos. Tibério Valença, apesar da
exageração dos seus sentimentos, não estava ainda no caso. Acolheu a nora com
um sorriso de benevolência e de gratidão.
— Muito obrigado, disse ele.
— Está melhor?
— Estou.
— Ainda bem.
— Há muitos dias que está aqui?
— Há alguns.
— Nada sei do que se tem passado. Parece que
acordo de um longo sono. Que tive eu?
— Delírios e constantes sonolências.
— Sim?
— É verdade.
— Mas estou melhor, estou salvo?
— Está.
— Dizem os médicos?
— Dizem e vê-se logo.
— Ah! graças a Deus.
Tibério Valença respirou como um homem que
aprecia a vida no grau máximo. Depois, acrescentou:
— Ora, quanto trabalho teve comigo!...
— Nenhum...
— Como nenhum?
— Era preciso haver alguém que dirigisse a
casa. Bem sabe que as mulheres são essencialmente donas de casa. Não quero
encarecer o que fiz; eu pouco fiz, fi-lo por dever. Mas quero ser leal
declarando qual foi o pensamento que me trouxe aqui.
— A senhora tem bom coração.
Tomás entrou neste momento.
— Oh! meu pai! disse ele.
— Adeus, Tomás.
— Está melhor?
— Estou. Sinto e dizem os médicos que estou
melhor.
— Está, sim.
— Estava a agradecer à tua mulher...
Malvina acudiu logo:
— Deixemos isso para depois.
Desde o dia em que Tibério Valença teve este
diálogo com a nora e o filho a cura foi-se operando gradualmente. No fim de um
mês entrou Tibério Valença em convalescença.
Estava excessivamente magro e fraco. Só podia
andar apoiado a uma bengala e ao ombro de um criado. Tomás substituiu muitas
vezes o criado a chamado do próprio pai.
Neste ínterim foi Tomás contemplado na
pretensão que tinha a um emprego público.
Progrediu a convalescença do velho, e os
facultativos aconselharam uma mudança para o campo.
Faziam-se os preparativos da mudança quando
Tomás e Malvina anunciaram a Tibério Valença que, dispensando-se agora os seus
cuidados, e devendo Tomás entrar no exercício do emprego que obtivera,
tornava-se necessária a separação.
— Então não me acompanham? perguntou o velho.
Ambos repetiram as razões que tinham,
procurando do melhor modo não ofender a suscetibilidade do pai e do enfermo.
Pai e enfermo cederam às razões e efetuou-se
a separação no meio dos protestos reiterados de Tibério Valença que agradecia
d’alma os serviços que os dois lhe haviam prestado.
Tomás e Malvina seguiram para casa, e o
convalescente partiu para o campo.
***
A convalescença de Tibério Valença não teve
incidente algum.
No fim de quarenta dias estava pronto para
outra, como se diz popularmente, e o velho com toda a criadagem voltou para a
cidade.
Não fiz menção de visita alguma da parte dos
parentes de Tibério Valença durante a moléstia deste, não porque eles não
tivessem visitado o parente enfermo, mas porque essas visitas não trazem
circunstância alguma nova no caso.
Todavia pede a fidelidade histórica que eu as
mencione agora. Os parentes, últimos que restavam à família Valença,
reduziam-se a dois velhos primos, uma prima e um sobrinho, filho desta. Estas
criaturas foram algum tanto assíduas durante o perigo da moléstia, mas
escassearam as visitas desde que tiveram ciência de que a vida de Tibério não
corria risco.
Convalescente, Tibério Valença não recebeu
uma só visita desses parentes. O único que o visitou algumas vezes foi Tomás,
mas sem a mulher.
Estando completamente restabelecido e tendo
voltado à cidade, a vida da família continuou a mesma que anteriormente à
moléstia.
Esta circunstância foi observada por Tibério
Valença. Apesar da sincera gratidão com que ele acolheu a nora apenas tornara a
si, Tibério Valença não pôde afugentar do espírito um pensamento desonroso para
a mulher do seu filho. Dava o desconto necessário às qualidades morais de
Malvina, mas interiormente acreditava que o procedimento dela não fosse isento
de cálculo.
Este pensamento era lógico no espírito de
Tibério Valença. No fundo do enfermo agradecido havia o homem calculista, o pai
interesseiro, que olhava tudo pelo prisma estreito e falso do interesse e do
cálculo, e a quem parecia que não se podia fazer uma boa ação sem laivos de
intenções menos confessáveis.
Menos confessáveis é paráfrase do narrador;
no fundo, Tibério Valença admitia como legítimo o cálculo dos dois filhos.
Tibério Valença imaginava que Tomás e
Malvina, procedendo como procederam, tinham tido mais de um motivo que os
determinasse. Não eram só, no espírito de Tibério Valença, o amor e a dedicação
filial; era ainda um meio de ver se lhe abrandavam os rancores, se lhe armavam
à fortuna.
Nesta convicção estava, e com ela esperava a
continuação dos cuidados oficiosos de Malvina. Imagine-se qual não foi a
surpresa do velho, vendo que cessada a causa das visitas dos dois, causa real
que ele tinha por aparente, nenhum deles apresentou o mesmo procedimento anterior.
A confirmação seria se, pilhada e aberta, Malvina aproveitasse para fazer da
sua presença em casa de Tibério Valença uma necessidade.
Isto pensava o pai de Tomás, e pensava, neste
caso, com acerto.
***
Correram dias e dias, e a situação não mudou.
Tomás lembrara uma vez a necessidade de
visitar com Malvina a casa paterna. Malvina, porém, recusou, e quando as
instâncias de Tomás a obrigaram a uma declaração mais peremptória, declarou ela
positivamente que a continuação das suas visitas poderia parecer a Tibério
Valença uma pretensão ao esquecimento do passado e aos conchegos do futuro.
— Melhor é, disse ela, não irmos; antes
passemos por descuidados que por ávidos ao dinheiro de teu pai.
— Meu pai não pensará isso, disse Tomás.
— Pode pensar...
— Creio que não... Meu pai está mudado: é
outro. Ele já te reconhece; não te fará injustiça.
— Está bom, veremos depois.
E depois desta conversa nunca mais se falou
nisso, sendo que Tomás não encontrou na resistência de Malvina senão um motivo
mais para amá-la e respeitá-la.
***
Tibério Valença, desenganado a respeito da
expectativa em que estava, resolveu ir um dia em pessoa visitar a nora.
Era isto nem mais nem menos o reconhecimento
solene de um casamento que desaprovara. Esta consideração, tão intuitiva em si,
não se apresentou ao espírito de Tibério Valença.
Malvina estava só quando à porta parou o
carro de Tibério Valença.
Esta visita inesperada causou-lhe verdadeira
surpresa.
Tibério Valença entrou com um sorriso nos
lábios, sintoma de bonança do espírito, que não escapou à ex-professora de
piano.
— Não me querem ir ver, venho eu vê-los. Onde
está meu filho?
— Na repartição.
— Quando volta?
— Às três e meia.
— Já não posso vê-lo. Há muitos dias que ele
não vai. Quanto à senhora, creio que decididamente nunca mais lá volta...
— Não tenho podido...
— Por quê?
— Ora, isso não se pergunta a uma
dona-de-casa.
— Então tem muito que fazer?...
— Muito.
— Oh! mas nem meia hora pode dispensar? E que
tanto trabalho é esse?
Malvina sorriu-se.
— Como lhe hei de explicar? Há tanta coisa
miúda, tanto trabalho que não aparece, enfim coisas de casa. E se nem sempre
estou ocupada, estou muitas vezes preocupada, e outras simplesmente cansada...
— Creio que um bocadinho mais de vontade...
— Falta de vontade? Não creia nisso...
— É ao menos o que parece.
Houve um momento de silêncio. Malvina, para
mudar o rumo da conversação, perguntou a Tibério como se achava e se não tinha
receios da recaída.
Tibério Valença respondeu, com ar de
preocupação, que se achava bom e que não tinha receios de nada, antes se achava
esperançado de gozar ainda longa vida e boa saúde.
— Tanto melhor, disse Malvina.
Tibério Valença, sempre que Malvina se
distraía, corria os olhos em redor da sala para examinar o valor dos móveis e
avaliar por eles a posição do filho.
Os móveis eram singelos e sem essa profusão e
multiplicidade dos móveis das salas abastadas. O chão tinha um palmo de
palhinha ou uma fibra de tapete. O que se destacava era um rico piano, presente
de alguns discípulos, feito a Malvina no dia em que esta se casou.
Tibério Valença, contemplando a modéstia dos
móveis da casa de seu filho, era levado a uma comparação forçada entre eles e
os de sua casa, onde o luxo e o gosto davam as mãos.
Depois deste exame minucioso, interrompido
pela conversação que continuava sempre, Tibério Valença deixou cair um olhar
sobre uma pequena mesa ao pé da qual se achava Malvina.
Sobre essa mesa estavam umas roupas de
criança.
— Cose para fora? perguntou Tibério Valença.
— Não, por que pergunta?
— Vejo ali aquela roupa...
Malvina olhou para o lugar indicado pelo
sogro.
— Ah! disse ela.
— Que roupa é aquela?
— É de meu filho.
— De seu filho?
— Ou filha; não sei.
— Ah!
Tibério Valença olhou fixamente para Malvina,
e quis falar. Mas causou-lhe tal impressão a serenidade daquela mulher cuja
família se ia aumentar e que olhava tão impavidamente para o futuro, que a voz
se lhe embargou e não pôde pronunciar palavra.
— Efetivamente, pensava ele, aqui há alguma
coisa especial, alguma força sobre-humana que sustenta estas almas. Será isto o
amor?
Tibério Valença dirigiu algumas palavras à
nora e saiu deixando lembranças para o filho e instando para que ambos fossem
visitá-lo.
Poucos dias depois da cena que acabamos de
contar chegaram ao Rio de janeiro Elisa e seu marido.
Vinham estabelecer-se definitivamente na
corte.
A primeira visita foi para o pai, de cuja
moléstia tinham sabido na província.
Tibério Valença recebeu-os com grande
alvoroço. Beijou a filha, abraçou o genro, com uma alegria infantil.
***
Nesse dia houve em casa grande jantar, para o
qual não se convidou ninguém além dos que habitualmente frequentavam a casa.
O marido de Elisa, antes de pôr casa, devia
ficar em casa do sogro, e quando comunicou este projeto a Tibério Valença, este
acrescentou que não se iriam mesmo sem aceitar um baile.
O aditamento foi aceito.
O baile foi marcado para o sábado próximo,
isto é, exatamente oito dias depois.
Tibério Valença estava contentíssimo.
Tudo andou logo na maior azáfama. Tibério
Valença queria provar com o esplendor da festa o grau de estima em que tinha a
filha e o genro.
Desde então filha e genro, genro e filha,
tais foram os dois polos em que volteava a imaginação de Tibério Valença.
Enfim o dia de sábado chegou.
À tarde houve um jantar dado a alguns poucos
amigos, os mais íntimos, mas jantar esplêndido, porque Tibério Valença não quis
que um só ponto da festa desdissesse do resto.
Entre os convidados para o jantar veio um que
informou o dono da casa de que outro convidado não vinha, por ter grande soma
de trabalho a dirigir.
Era exatamente um dos mais íntimos e melhores
convivas.
Tibério Valença não se deu por convencido com
o recado, e resolveu escrever-lhe uma carta exigindo a presença dele no jantar
e no baile.
Em virtude disto foi ao gabinete, abriu a
gaveta, tirou papel e escreveu uma carta que mandou incontinenti.
Mas, no momento de guardar de novo o papel
que tirara da gaveta, reparou que entre duas folhas se resvalara uma cartinha
por letra de Tomás.
Estava aberta. Era uma carta, já antiga, que
Tibério Valença recebera e atirara para dentro da gaveta. Foi a carta em que
Tomás participava ao pai o dia do seu casamento com Malvina.
Essa carta, que em mil outras ocasiões lhe
estivera debaixo dos olhos sem maior comoção, desta vez não deixou de
impressioná-lo.
Abriu a carta e leu-a. Era de redação humilde
e afetuosa.
Veio à mente de Tibério Valença a visita que
fizera à mulher de Tomás.
O quadro da vida modesta e pobre daquele
jovem casal apresentou-se-lhe de novo aos olhos. Comparou esse quadro mesquinho
com o quadro esplêndido que apresentava a casa dele, onde um jantar e um baile
iam reunir amigos e parentes.
Depois viu a doce resignação da moça que
vivia contente no meio da parcimônia, só porque tinha o amor e a felicidade do
marido. Esta resignação afigurou-se-lhe um exemplo raro, tanto lhe parecia
impossível sacrificar o gozo e o supérfluo às santas afeições do coração.
Enfim o neto que lhe aparecia no horizonte, e
para o qual Malvina já confeccionava o enxoval, tomou mais viva e decisiva
ainda a impressão de Tibério Valença.
Uma espécie de remorso fez-lhe doer a
consciência. A nobre moça, a quem ele tratara tão desabridamente, o filho, para
quem ele fora um pai tão cruel, tinham cuidado com verdadeiro carinho o mesmo
homem de quem receberam a ofensa e o desagrado.
Tibério Valença refletia tudo isto passeando
no gabinete. Dali ouvia o rumor dos fâmulos que preparavam o lauto jantar.
Enquanto ele e os seus amigos e parentes iam apreciar os mais delicados
manjares, que comeriam naquele dia Malvina e Tomás? Tibério Valença estremeceu
diante desta pergunta que lhe fazia a consciência. Aqueles dois filhos que ele
expelira tão desamorosamente e que com tanta generosidade lhe haviam pago não
tinham naquele dia nem a milésima parte do supérfluo da casa paterna. Mas esse
pouco que tivessem era, com certeza, comido em paz, na branda e doce alegria do
lar doméstico.
As ideias dolorosas que assaltaram o espírito
de Tibério Valença fizeram com que ele esquecesse inteiramente os convivas que
se achavam nas salas.
Isto que se operava em Tibério Valença era
uma nesga da natureza, ainda não tocada pelos preconceitos, e bem assim o
remorso de uma ação má que havia cometido.
Isto e mais a influência da felicidade de que
atualmente era objeto Tibério Valença produziram o melhor resultado. O pai de
Tomás tomou uma resolução definitiva; mandou aprontar o carro e saiu.
Foi direito à casa de Tomás.
Este sabia da grande festa que se preparava
em casa do pai para celebrar a chegada de Elisa e seu marido.
Assim que a entrada de Tibério Valença em
casa de Tomás causou a este grande expectação.
— Por aqui, meu pai?
— É verdade. Passei, entrei.
— Como está a mana?
— Está boa. Ainda não foste vê-la?
— Contava ir amanhã, que é dia livre.
— Ora, se eu lhes propusesse uma coisa...
— Ordene, meu pai.
Tibério Valença dirigiu-se a Malvina e
tomou-lhe as mãos.
— Escute, disse ele. Vejo que há na sua alma
grande nobreza, e se nem a riqueza, nem os antepassados ilustram o seu nome,
vejo que resgata estas faltas por outras virtudes. Abrace-me como pai.
Tibério, Malvina e Tomás abraçaram-se em um
só grupo.
— É preciso, acrescentou o pai, que vão hoje
lá a casa. E já.
— Já? perguntou Malvina.
— Já.
Daí a meia hora apeavam os três à porta da
casa de Tibério Valença.
O pai arrependido apresentava aos amigos e
aos parentes, aqueles dois filhos que tão cruelmente quisera excluir da
comunhão da família.
Este ato de Tibério Valença veio a tempo de
reparar o mal, e assegurar a paz futura dos seus velhos anos. A conduta
generosa e honrada de Tomás e de Malvina valeram esta reparação.
Isto prova que a natureza pode comover a
natureza, e que uma boa ação tem a faculdade muitas vezes de destruir o
preconceito e restabelecer a verdade do dever.
Não pareça improvável ou violenta esta
mudança no espírito de Tibério. As circunstâncias favoreceram essa mudança,
para a qual o principal motivo foi a resignação de Malvina e de Tomás.
Fibra paternal, mais desvencilhada, naquele
dia, dos liames de uma consideração social mal entendida, pôde palpitar
livremente e mostrar em Tibério Valença um fundo melhor do que as suas
aparências cruéis. Tanto é verdade que, se a educação modifica a natureza, a
natureza pode em suas exigências mais absolutas readquirir os seus direitos e
manifestar a sua força.
Com a declaração de que foram sempre felizes
os heróis deste conto deita-se-lhe um ponto final.
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Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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