A Peste
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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E de súbito, um indizível pavor
prega-me ao banco. É um dia brumosamente invernal. O azul do céu parece tecido
de filamentos de brumas. O sol como que desabrocha dentre as brumas. O ar, um pouco
úmido e um pouco cortante, congela as mãos, tonifica a vegetação, e o mar, que
se vê à distância num recanto de lodo, tem reflexos espelhentos de grandes
escaras de chagas, de óleo escorrido de feridas à superfície quase imóvel. O
cheiro de desinfecção e ácido fênico, o movimento sinistro das carrocinhas e
dos automóveis galopando e correndo pela rua de mau piso, aquela sujeira
requeimada e manchada das calçadas, o ar sem pinga de sangue ou supremamente
indiferente dos empregados da higiene, a sinistra galeria de caras de choro que
os meus olhos vão vendo, põe-me no peito um apressado bater de coração e na
garganta como um laço de medo. A bexiga! a bexiga! É verdade que há uma
epidemia... E eu vou para lá, eu vou para o isolamento, eu!
Um mês antes ria dessa epidemia.
Para que pensar em males cruéis, nesses males que deformam o físico, roem para
todo sempre ou afogam a vida em sangue podre? Para que pensar? E Francisco, o
meu querido Francisco a que eu amava como a melhor coisa do mundo, pensava todo
o dia, lia os jornais, tomava informações. A média de casos fatais é de trinta
por dia. Ela vem aí, a vermelha, dizia. E já organizara um regime, tomara
quinino, tinha o quarto cheio de antissépticos, os bolsos com pedras das
farmácias para afastar o vírus. Coitado! Era impressionante. Eu bem lhe dizia
— Mas criatura, não tenhas medo.
Andamos todo o dia pelas ruas, vamos aos teatros. Qual varíola! Vê como toda
gente ri e goza. Deixa de preocupações.
De manhã, porém, nós líamos
juntos, ao almoço, os jornais. Para que mentir? Havia, havia sim! A sinistra
rebentava em purulências toda a cidade. Um dia em que passava por uma igreja,
Francisco ouviu os sinos a badalar sinistramente. Teve a curiosidade de saber
por quem tão tristes badalavam e perguntou a um velho.
— É promessa, meu senhor, é para
que Santo Antônio não mate a todos nós de bexiga.
Francisco ficou como desvairado.
Ao jantar encontrou-se comigo.
— Ah! filho, falta-me o apetite.
Estamos perdidos. É impossível lutar. Ela está aí.
— Acabas doido.
— Antes! fez no orgulho da sua
beleza.
Há uma semana, indo por uma rua
de subúrbio encontrou com gritos e imprecações um bando de gente que arrastava
ao sol um caixão. Era uma pobre família levando à igreja o cadáver de uma
criança em holocausto, para que Deus tivesse piedade e misericórdia. A
impressão prostrou-o. Chegou à casa ainda mais assustado.
— Sabes! Estamos perdidos. A
polícia já deixa arrastarem os variolosos pela rua. Dentro em pouco só lepra, a
lepra de dentro encherá as ruas. Cada dia aumenta mais, cada dia aumenta.
Quando chegará a nossa vez?
— Mas vai embora, homem, sobe à
montanha, afasta-te...
E comecei eu também a indagar, a
querer saber. Então, continuava? Como era? Como se morria de bexigas? As
pessoas ficavam muito coradas, sentiam febre. Havia várias espécies. A pior é a
que matava sem rebentar, matava dentro, dentro da gente, apodrecendo em horas!
Palavra, não era para brincadeiras. O Francisco abalara para o Corcovado, uma
noite, sem me falar, sem me dar um abraço, e de repente naquela manhã, hoje,
sabia por uma nota que ele estava no São Sebastião, com bexiga também, talvez
morto! Deu-me um grande ímpeto! Covarde! Fora o medo. E agora? Era preciso
vê-lo, não era possível deixa-lo morrer sem um amigo ao lado. Nunca tive medo
de moléstias, morre quem tem de morrer. Depois a cidade estava tão alegre, tão
movimentada, tão descuidosa. Tomei o tramway
quase tranquilo. Mas ali, tudo indica a morte, a angústia, o horror, ali é
impossível, e eu sentia um frio,
um frio...
— Estamos no ponto terminal; não
salta? diz-me o condutor, virando os bancos. Faço um esforço, salto. E vou. Vou
devagar, vou não querendo ir. A impressão de fim, de extinção violenta! Aquele
recanto, aquele hospital com ar de cottage inglês aviltado por usinas de
porcelana, é bem o grande forno da peste sangrenta. Como deve morrer gente ali,
como devem estar morrendo naquele instante. Desço a rua atordoado, com um
zumbido nos ouvidos. O mar é um vasto coalho de putrefações, de lodo que se
bronzeia e se esverdinha em gosmas reluzentes na praia morta. O chão está todo
sujo, e passam carroças da Assistência, carroças que vêm de lá, que para lá
vão. Quase não há rumor. É como se os transeuntes trouxessem rama de algodão
nos pés. Só as carroças fazem barulho. E quando param — como elas param! — é o
pavor de ver descer um monstro varioloso, desfeito em pus, seguindo para a
cova... Espero que não haja nenhuma carroça à porta, precipito-me pela alameda
que sobe ao hospital. Vou quase a correr, paro à porta de uma sala que parece
escritório.
— O diretor?
— É alguma coisa de urgente?
indaga um jovem.
— É. É e não é.
— Vou preveni-lo. Sente-se. O
senhor está pálido.
Caio numa cadeira. Sinto as mãos
frias. As pernas tremem. Eu tenho medo, oh! muito medo... E aquele trecho de
secretaria não é para acalmar o destrambelhamento dos meus nervos. Tudo é
branco, limpo, asseado, com o ar indiferente nas paredes, nos móveis sem uma
poeira. Os empregados porém movem-se com a precipitação triste a que a morte
obriga os que ficam. Retintins de telefone repicam seguidamente nos quatro
cantos. Os diálogos cruzam-se, diálogos em que as vozes falam para dores
— Mais um doente?
— Ah! sim, ciente.
— Qual? Não há mais lugar. O de
nome José Bernardino? Vou ver.
E mais adiante:
— Olhe, 425? Morreu ontem à
noite. Se já seguiu? Já.
Enquanto essas notícias são dadas
à boca dos fones, há mulheres pálidas e desgrenhadas que esperam novas dos seus
doentes, há velhos, há homens de face desfeita, uma série de caras em que o
mistério da morte, lá fora, entre as árvores, incute um apavorado respeito e
uma sinistra revolta. Quantas mães sem filhos! Quantos pais à espera da certeza
da morte dos filhos! Quantos filhos ali, apenas para tratar do enterro dos que
lhe deram o ser. Ela não respeita idade, passa a foice purulenta em tudo, está
lá reinando, fora, no jardim, entre as árvores, morro acima. Os funcionários
têm uma delicadeza fria.
— Que deseja, minha senhora?
— Saber do meu filho. É 390.
— Há quantos dias?
— Há quatro. Ainda elas não
tinham saído. Foi o médico que disse. Ai! o meu pequeno!
— Está decerto no pavilhão de
observação. Vou mandar ver.
— Meu senhor, a minha mulherinha,
diga-me por Deus, diga-me.
— Espere, homem. Nada de barulho.
Os retintins telefônicos
continuam. Algumas faces não dizem nada. Estão lá sentadas, esperando,
esperando, esperando. E há marcados, marcados do terrível mal, que vão sair,
não morreram, estarão dentro em pouco na rua com a fisionomia torcida, roída,
desfeita para todo o sempre. E ele? E Francisco? Ficará assim? Assim, horrível,
horrível... É preciso vê-lo! É preciso!
O rapaz volta, faz-me um gesto,
sigo-o, dou no gabinete do diretor, muito louro, com a sua face inteligente
vincada de tristeza.
— Então por cá? não teve medo?
Está com a mão fria. Ah! meu amigo, a apostar que não acreditava na devastação
do mal? Pois é horrível, é inaudito. Tenho presentemente no hospital setecentos
e vinte doentes desde a varíola hemorrágica, que mata em horas, até a bexiga
branca que nem sempre mata. Já não há lugares. Nunca São Sebastião esteve
assim. Mandei construir à pressa mais dois pavilhões. Estou arrasado de
trabalho e desolado. Afinal, por mais que se esteja habituado, sempre se tem
coração para sentir a dolorosa atmosfera de desgraça... Mas que deseja? diga.
— Eu desejava tomar uma
informação. Está aqui no hospital um rapaz do norte, Francisco Nogueira,
estudante...
— Francisco? Há tanta gente que
entra e tão pouca que sai... Em que dia entrou?
— Creio que anteontem. Vou mandar
ver.
Tocou um tímpano. Apareceu um
funcionário. Falaram ambos. O funcionário saiu, e desde que saiu, um tremor
apoderou-se do meu corpo. Estaria morto? Estaria vivo? Aquela carne feita de
ouro e de rosas já se teria transformado numa chaga purulenta? E se estivesse
morto? Uma criança tão cheia de esperanças, tão entusiástica, tão pura, sem os
pais aqui, sem ninguém a não ser eu que tremia. Nossa Senhora! Que me viriam
dizer? E ao mesmo tempo, o desejo de encobrir tamanha emoção forçava-me a
fingir um sorriso, a dizer mundanamente coisas frívolas ao homem bom cujos
olhos tinham tanta piedade.
— É o diabo. A epidemia tem
impedido vários prazeres da season.
As grandes estrelas mundiais, os teatros.
— Pouca gente.
— Menos do que se devia esperar.
Não frequenta?
— Não tenho tempo.
— Ninguém dirá entretanto que a
varíola...
— Nas grandes cidades as pestes
dão uma impressão muito menos dolorosa do que outrora.
— Na Idade Média, não, doutor.
Mas um nó subitâneo estrangula-me
a frase. O funcionário voltara, dava informações baixo ao diretor. O médico pôs-se
de pé e diante de mim:
— Está cá. Entrou anteontem. Está
vivo. O médico da enfermaria diz que há esperanças.
— Quero vê-lo, doutor.
Houve uma pausa grave.
— É vacinado?
— Sou.
— Já viu um varioloso?
— Não.
— Gosta desse rapaz?
— É meu amigo.
O diretor pensou. Depois:
— É melhor não vê-lo. Aceite o
meu conselho. A ele nada falta. O senhor parece tão comovido. Tenha esperança,
vá descansar. As emoções fazem mal neste período...
— Quero vê-lo, doutor, quero. É
um grande obséquio que lhe fico a dever.
O diretor ainda hesitou um
instante, mas diante da minha resolução que se fazia súplica, fez um gesto e eu
acompanhei o funcionário, passei a secretaria, entrei no jardim, comecei a
subir para o morro, onde entre as árvores erguiam-se os grandes pavilhões, com
as redes das janelas pintadas de vermelho. Era ali, naqueles enormes galpões,
com janelas forradas de tela rubra que a varíola punha putrefações e gangrenas
em corpos dias antes bons. O homem ia depressa, e eu arquejava atrás, sem
forças, com as têmporas batendo. Meu Deus! Que iria ver? Que se daria? De
repente, parou, subiu uma escada. Subi também. Abriu uma porta de tela, entrou.
Entrei com ele. Abriu outra, passou. Passei com ele. Encaminhou-se para um
compartimento. Segui-o. Onde estava eu? Sei lá! Não sabia! Não sabia! Vi-me
diante de um leito, onde um cobertor tapava, por completo, um pequeno volume.
Para diante havia outros leitos cobertos de vermelhos, outros muitos, cobrindo
a negregada. Certo cavalheiro indagava:
— Quer ver então?
— Sim, senhor.
— Não é grave. Esta escapa. Mas
tenha coragem!
Depois, com infinito cuidado,
pegou das pontas do cobertor e foi levantando aos poucos. Fechei os olhos,
abri-os, tornei a fecha-los.
— Não há engano?
— A papeleta não erra. É ele
mesmo.
Eu tinha diante de mim um
monstro. As faces inchadas, vermelhas e em pus, os lábios lívidos, como para
rebentar em sânie. Os olhos desapareciam meio afundados em lama amarela, já sem
pestanas e com as sobrancelhas comidas, as orelhas enormes. Era como se aquela
face fosse queimada por dentro e estalasse em empolas e em apostemas a
epiderme. Quis recuar, quis aproxima-me. Só consegui dizer para o horror:
— Francisco, Francisco, então
como vais?
Os lábios moveram-se, e uma voz,
outra voz, uma voz que era outra, passou vagarosa:
— Ah! és tu?
Enquanto o corpo não fazia um
gesto. Era ele, ele, sim, porque sobre a travesseira, só uma coisa não
desaparecera dele e da podridão parecia tomar um redobro de brilho: a sua
enorme cabeleira negra, com reflexos de ouro azul-tinta...
Então veio-me um louco desejo de
chorar, um desejo desvairado. Fiz um vago gesto. O funcionário abriu-me a porta
e eu saí tropeçando, desci o morro a correr quase, entre os empregados num
vaivém constante e as macas que subiam com as podridões. Um delírio tomava-me.
As plantas, as flores dos canteiros, o barro da encosta, as grades de ferro do
portão, os homens, as roupas, a rua suja, o recanto do mar escamoso, as
árvores, pareciam atacados daquele horror de sangue maculado e de gangrena. Parei.
Encarei o sol, e o próprio sol, na apoteose de luz, pareceu-me gangrenado e
pútrido. Deus do céu! Eu tinha febre. Corri mais, corri daquela casa, daquele
laboratório de horror em que o africano deus selvagem da bexiga, Obaluaiê,
escancarava a face deglutindo pus. E atirei-me ao bonde, tremendo, tremendo,
tremendo...
Há epidemia, oh! sim, há
epidemia! E eu tenho medo, meu amigo, um grande, um desastrado pavor...
E Luciano Torres, após a
narrativa, caiu-me nos braços a soluçar. Era de noite e foi há dois dias. Ontem
vieram dizer-me que Luciano Torres, meu amigo e colega, fora conduzido em
automóvel da Assistência do seu elegante apartamento das Laranjeiras para o
posto de observação. Está com varíola.
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