Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O almirante Ribas acabava de
referir às senhoras, à mesa de jantar, a origem da mulata nacional, tal como eu
a contei, aqui, há poucos dias, quando o desembargador Pessegueiro, recompondo
as guias do bigode grisalho e cuidado, atalhou, com orgulho:
— Há engano nessa tradição, Sr.
almirante: há engano. A mulata não teve origem no céu, como se diz; a sua
origem, para glória nossa, é toda terrena.
E recostando-se na cadeira,
apoiando-se na mesa com ambas as mãos, começou, pausado, a sua narrativa:
— O preto, o branco e o amarelo,
que habitam a África, a Europa, a Ásia e a Oceania, foram, realmente, modelados
por Jeová, que os reconheceu, de fato, como seus filhos. Atirando-os, aos
milhares, ao mundo, ele os conhecia todos, regulando-lhes a vida e a morte. E
tanto assim, que, quando aparecia, no céu, de volta da terra, um branco, um
preto ou um indivíduo de raça asiática, ele tomava, paternal, pela mão,
reconduzindo-o ao convívio dos bem-aventurados.
Feita uma pequena pausa, o
desembargador continuou:
— Certo dia, porém, bateram à
porta de ouro do céu. Solícito, como sempre, São Pedro correu a abri-la, e
recuou, deslumbrado: era a primeira mulata que, requebrada, cheirosa,
encantadora, incomparável, penetrava, triunfante, no Paraíso!
As senhoras sorriram, admirando o
entusiasmo do velho magistrado, e ele, sorrindo com elas, retomou o fio à
narrativa:
— A presença daquela criatura
estranha, rica de encantos, de graças, de seduções, agitou, de pronto, a morada
celeste. Anjos e serafins rodeavam-na, fascinados, tontos, embriagados de
beleza. Estrelas que viviam isoladas no azul, achegavam-se, cochichando,
formando constelações. E uma grande música religiosa ressoou pelas alturas,
celebrando, num enlevo, o maravilhoso acontecimento.
Nesse ponto, com os braços e os
lábios abertos, o desembargador quedou-se, como num êxtase. Passado um minuto,
continuou:
— Avisado da novidade, Jeová
quis, ele próprio, ver o prodígio; e, descendo do seu trono de pedrarias,
encaminhou-se, com o cortejo de arcanjos, no rumo da porta, de se achava a
mulata, rodeada de santos e querubins. Chegando aí, ao vê-la, ele próprio
recuou, tapando os olhos com as mãos; diante dele, a cabeça pendida para um
lado, os lábios entreabertos num sorriso, e os olhos entrefechados num
delíquio, a recém-chegada esperava-o, doce, linda, maravilhosa! Passado o
primeiro momento de pasmo, o Supremo Arquiteto levantou o rosto venerável, e,
com a barba soberba derramada pelo peito largo, bradou, deslumbrado:
"— Eu fiz a raça preta, que povoou a Líbia ardente, suportando,
impassível, o fogo dos desertos. A raça amarela, cujas mulheres, pequeninas e
tímidas, enchem a Ásia, é obra minha. A mulher branca, delicada, mimosa, de
olhos azuis e cabelos de ouro, saiu das minhas oficinas. Que artífice terá,
porém, imaginado e realizado esta joia, esta obra-prima da natureza, esta flor
incomparável da criação?"
Nesse momento, os bem-aventurados
abriram alas, deixando ver uma figura curiosa: barba feita, bigode retorcido,
correntão de ouro atravessado sobre o colete, que lhe dava maior vulto à
obesidade, apareceu, sorridente, o Manel da Venda, exclamando, com orgulho:
— Eu, Senhor!
Ante essa confissão, Jeová não
resistiu: encaminhou-se para o Manel, que o olhava desafiadoramente, e, sem se
conter, bradou, com os olhos úmidos:
"— Mestre!..."
E apertou-lhe a mão, comovido.
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