A nova classe de cirurgiões
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Vou ao barbeiro duas vezes à
semana.
Ele é um tipo distinto, asseado.
É italiano, calvo, magro, usa o bigode raspado à americana e não exala nunca o
famoso hálito de alho que foi causa de grande aborrecimento para Thackeray, o
qual afirmou, mesmo, ser tal coisa um dos apanágios dessa honesta gente. Além
disso o seu elegante casaco de alpaca está sempre delicadamente perfumado.
É bem hábil no ofício, e, se me
submeto com paciência às rápidas evoluções depilatórias de uma aguçada navalha
— aço Sheffield puro —, faço-o, contudo, um pouco desconfiado.
Respiro, tranquilo, ao findar-se
cada operação...
Mas o bom do homem possui um
defeito, comum a muitos barbeiros: é loquaz. Fala muito, exageradamente, com
todos os fregueses sobre todos os assuntos, enxertando, com frequência, termos
exóticos, alemães, ingleses, franceses, e até de esperanto, nas suas prolixas
orações que se tornam, afinal, verdadeiras saladas de palavras,
intencionalmente confusas... capazes de fazer ao V. de O Paiz ralar-se de inveja se as ouvisse...
A princípio eu respondia:
— Foi mau!...
A operação era logo suspensa. O
meu Fígaro interrompia-a para melhor ouvir e melhor poder objetar.
Ah! ele sempre objetava! Às vezes
risonho, com ares superiores; quase sempre, porém, de sobrolho contraído ele
aproximava do meu assustado nariz o afiado gume, ameaçador e firme.
Essas emoções me enervavam.
Resolvi, então, calar-me.
Ainda algumas vezes esgotou ele a
sua facúndia, mas percebendo que me desagradava, foi diminuindo, até
cessar por completo, os seus discursos.
Pude, pois, durante certo tempo,
gozar do seu mutismo ao me barbear... prazer, na realidade calmo e delicioso!
Em princípios do ano findo fui
obrigado a retirar-me do Rio para terras longínquas e selvagens. Depois de
muito viajar fiz alto em um arraial, o de Santo Antônio dos Silveira do Pomba,
lugarejo perdido nos confins de Minas.
Só aí foi que senti a falta do
meu italiano! O barbeiro do local era feroz, e mais feroz ainda a navalha dele!
Que navalha, santo Deus!
Tirava-me cada laca de pele que me fazia estremecer. O homem era dos tais que
tiram pele e deixam cabelo!... Mas ai! que podia eu fazer contra? Se eu o
censurasse tenho certeza de que ele me mataria!...
Assim torturado passei lá ano e
meio, quase. Até que, em meados de junho, em noite úmida e escura, desço na
Central... cheio de saudades e cheio de vontade de liquidar a espessa barba que
deixara crescer havia duas semanas...
Mudara-se o meu amigo. Abandonara
o andar térreo à rua Ouvidor e fora instalar-se em soberbo prédio à avenida
Central... Só ele ocupava dois pavimentos!
Confesso que hesitei... Assim,
porém, que vislumbrei o meu falador amigo, desocupado, animei-me e atravessei o
luxuoso salão iluminado à eletricidade com ventiladores a girar etc... e sob os
olhares altamente analisadores de alguns elegantes encostados às ombreiras, em
palestra...
Custou-lhe reconhecer-me!... O
meu grande estado hirsuto fê-lo estranhar-me.
Depois indagou das minhas
viagens, das causas delas, do seu resultado etc...
Que linguagem diferente, a
dele!... A frase era polida, cuidada, bem construída, isenta dos antigos
anglicismos, galicismos etc...
A atitude, os gestos dele eram
bem outros! Muito parecidos com os de um 2º secretário!...
Por sobre isso a maravilhosa
instalação a me intrigar! Que melhoramentos! Que rios de dinheiro teria
custado!... Indaguei, medroso, do motivo de todo aquele aparato de luz e
progresso...
— Eu lhe explico, senhor
Anacleto. A causa disso é a reforma da instrução.
— Que reforma?
— Pois não sabe? Há outra reforma
da instrução. Brevemente será publicada com todas as minúcias. Nem se compara
às outras...Verá!
Olhe... sempre a nós, barbeiros,
feriu-nos esse tratamento pejorativo...
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