A nova Califórnia
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
CAPÍTULO 1
Ninguém sabia donde viera aquele
homem. O agente do Correio pudera apenas informar que acudia ao nome de
Raimundo Flamel, pois assim era subscrita a correspondência que recebia. E era
grande. Quase diariamente, o carteiro lá ia a um dos extremos da cidade, onde
morava o desconhecido, sopesando um maço alentado de cartas vindas do mundo
inteiro, grossas revistas em línguas arrevesadas, livros, pacotes...
Quando Fabrício, o pedreiro, voltou de um serviço em casa do novo habitante, todos na venda perguntaram-lhe que trabalho lhe tinha sido determinado.
— Vou fazer um forno, disse o
preto, na sala de jantar.
Imaginem o espanto da pequena
cidade de Tubiacanga, ao saber de tão extravagante construção: um forno na sala
de jantar! E, pelos dias seguintes, Fabrício pôde contar que vira balões de
vidro, facas sem corte, copos como os da farmácia — um rol de coisas esquisitas
a se mostrarem pelas mesas e prateleiras como utensílios de uma bateria de
cozinha em que o próprio diabo cozinhasse.
O alarme se fez na vila. Para
uns, os mais adiantados, era um fabricante de moeda falsa; para outros, os
crentes e simples, um tipo que tinha parte com o tinhoso.
Chico da Tirana, o carreiro,
quando passava em frente da casa do homem misterioso, ao lado do carro a chiar,
e olhava a chaminé da sala de jantar a fumegar, não deixava de persignar-se e
rezar um “credo” em voz baixa; e, não fora a intervenção do farmacêutico, o
subdelegado teria ido dar um cerco à casa daquele indivíduo suspeito, que
inquietava a imaginação de toda uma população.
Tomando em consideração as
informações de Fabrício, o boticário Bastos concluíra que o desconhecido devia
ser um sábio, um grande químico, refugiado ali para mais sossegadamente levar
avante os seus trabalhos científicos.
Homem formado e respeitado na
cidade, vereador, médico também, porque o doutor Jerônimo não gostava de
receitar e se fizera sócio da farmácia para mais em paz viver, a opinião de
Bastos levou tranquilidade a todas as consciências e fez com que a população cercasse
de uma silenciosa admiração à pessoa do grande químico, que viera habitar a
cidade.
De tarde, se o viam a passear
pela margem do Tubiacanga, sentando-se aqui e ali, olhando perdidamente as
águas claras do riacho, cismando diante da penetrante melancolia do crepúsculo,
todos se descobriam e não era raro que às “boas noites” acrescentassem
“doutor”. E tocava muito o coração daquela gente a profunda simpatia com que
ele tratava as crianças, a maneira pela qual as contemplava, parecendo
apiedar-se de que elas tivessem nascido para sofrer e morrer.
Na verdade, era de ver-se, sob a
doçura suave da tarde, a bondade de Messias com que ele afagava aquelas
crianças pretas, tão lisas de pele e tão tristes de modos, mergulhadas no seu
cativeiro moral, e também as brancas, de pele baça, gretada e áspera, vivendo
amparadas na necessária caquexia dos trópicos.
Por vezes, vinha-lhe vontade de
pensar qual a razão de ter Bernardin de Saint-Pierre gasto toda a sua ternura
com Paulo e Virgínia e esquecer-se dos escravos que os cercavam...
Em poucos dias a admiração pelo
sábio era quase geral, e não o era unicamente porque havia alguém que não tinha
em grande conta os méritos do novo habitante.
Capitão Pelino, mestre-escola e
redator da Gazeta de Tubiacanga, órgão
local e filiado ao partido situacionista, embirrava com o sábio. “Vocês hão de
ver, dizia ele, quem é esse tipo... Um caloteiro, um aventureiro ou talvez um
ladrão fugido do Rio.”
A sua opinião em nada se baseava,
ou antes, baseava-se no seu oculto despeito vendo na terra um rival para a fama
de sábio de que gozava. Não que Pelino fosse químico, longe disso; mas era
sábio, era gramático. Ninguém escrevia em Tubiacanga que não levasse bordoada
do capitão Pelino, e mesmo quando se falava em algum homem notável lá no Rio,
ele não deixava de dizer: “Não há dúvida! O homem tem talento, mas escreve: "um
outro", "de resto...”. E contraía os lábios como se tivesse engolido
alguma coisa amarga.
Toda a vila de Tubiacanga
acostumou-se a respeitar o solene Pelino, que corrigia e emendava as maiores
glórias nacionais. Um sábio...
Ao entardecer, depois de ler um
pouco o Sotero, o Cândido de Figueiredo ou o Castro Lopes, e de ter passado
mais uma vez a tintura nos cabelos, o velho mestre-escola saía vagarosamente de
casa, muito abotoado no seu paletó de brim mineiro, e encaminhava-se para a
botica do Bastos a dar dois dedos de prosa. Conversar é um modo de dizer,
porque era Pelino avaro de palavras, limitando-se tão somente a ouvir. Quando,
porém, dos lábios de alguém escapava a menor incorreção de linguagem,
intervinha e emendava. “Eu asseguro, dizia o agente do Correio, que...” Por aí,
o mestre-escola intervinha com mansuetude evangélica: “Não diga "asseguro",
senhor Bernardes; em português é garanto”.
E a conversa continuava depois da
emenda, para ser de novo interrompida por uma outra. Por essas e outras, houve
muitos palestradores que se afastaram, mas Pelino, indiferente, seguro dos seus
deveres, continuava o seu apostolado de vernaculismo. A chegada do sábio veio
distraí-lo um pouco da sua missão. Todo o seu esforço voltava-se agora para
combater aquele rival, que surgia tão inopinadamente.
Foram vãs as suas palavras e a
sua eloquência: não só Raimundo Flamel pagava em dia as suas contas, como era
generoso — pai da pobreza — e o farmacêutico vira numa revista de específicos
seu nome citado como químico de valor.
CAPÍTULO 2
Havia já anos que o químico vivia em Tubiacanga, quando, uma bela manhã, Bastos o viu entrar pela botica adentro. O prazer do farmacêutico foi imenso. O sábio não se dignara até aí visitar fosse quem fosse e, certo dia, quando o sacristão Orestes ousou penetrar em sua casa, pedindo-lhe uma esmola para a futura festa de Nossa Senhora da Conceição, foi com visível enfado que ele o recebeu e atendeu.
Vendo-o, Bastos saiu de detrás do
balcão, correu a recebê-lo com a mais perfeita demonstração de quem sabia com
quem tratava e foi quase em uma exclamação que disse:
— Doutor, seja bem-vindo.
O sábio pareceu não se
surpreender nem com a demonstração de respeito do farmacêutico, nem com o
tratamento universitário. Docemente, olhou um instante a armação cheia de medicamentos
e respondeu:
— Desejava falar-lhe em
particular, senhor Bastos.
O espanto do farmacêutico foi
grande. Em que poderia ele ser útil ao homem, cujo nome corria mundo e de quem
os jornais falavam com tão acendrado respeito? Seria dinheiro? Talvez... Um
atraso no pagamento das rendas, quem sabe? E foi conduzindo o químico para o
interior da casa, sob o olhar espantado do aprendiz que, por um momento, deixou
a “mão” descansar no gral, onde macerava uma tisana qualquer.
Por fim, achou ao fundo, bem no
fundo, o quartinho que lhe servia para exames médicos mais detidos ou para as
pequenas operações, porque Bastos também operava. Sentaram-se e Flamel não
tardou a expor:
— Como o senhor deve saber,
dedico-me à química, tenho mesmo um nome respeitado no mundo sábio...
— Sei perfeitamente, doutor,
mesmo tenho disso informado, aqui, aos meus amigos.
— Obrigado. Pois bem: fiz uma
grande descoberta, extraordinária...
Envergonhado com o seu
entusiasmo, o sábio fez uma pausa e depois continuou:
— Uma descoberta... Mas não me
convém, por ora, comunicar ao mundo sábio, compreende?
— Perfeitamente.
— Por isso precisava de três
pessoas conceituadas que fossem testemunhas de uma experiência dela e me dessem
um atestado em forma, para resguardar a prioridade da minha invenção... O
senhor sabe: há acontecimentos imprevistos e...
— Certamente! Não há dúvida!
— Imagine o senhor que se trata
de fazer ouro...
— Como? O quê? fez Bastos,
arregalando os olhos.
— Sim! Ouro! disse, com firmeza,
Flamel.
— Como?
— O senhor saberá — disse o
químico secamente. A questão do momento são as pessoas que devem assistir à
experiência, não acha?
— Com certeza, é preciso que os
seus direitos fiquem resguardados, porquanto...
— Uma delas, interrompeu o sábio,
é o senhor; as outras duas, o senhor Bastos fará o favor de indicar-me.
O boticário esteve um instante a
pensar, passando em revista os seus conhecimentos e, ao fim de uns três
minutos, perguntou:
— O coronel Bentes lhe serve?
Conhece?
— Não. O senhor sabe que não me
dou com ninguém aqui.
— Posso garantir-lhe que é homem
sério, rico e muito discreto.
— É religioso? Faço-lhe esta
pergunta, acrescentou Flamel logo, porque temos que lidar com ossos de defunto
e só estes servem...
— Qual! É quase ateu...
— Bem! Aceito. E o outro?
Bastos voltou a pensar e dessa
vez demorou-se um pouco mais consultando a sua memória... Por fim, falou:
— Será o tenente Carvalhais, o
coletor, conhece?
— Como já lhe disse...
— É verdade. É homem de
confiança, sério, mas...
— Que é que tem?
— É maçom.
— Melhor.
— E quando é?
— Domingo. Domingo, os três irão
lá em casa assistir à experiência e espero que não me recusarão as suas firmas
para autenticar a minha descoberta.
— Está tratado.
Domingo, conforme prometeram, as
três pessoas respeitáveis de Tubiacanga foram à casa de Flamel, e, dias depois,
misteriosamente, ele desaparecia sem deixar vestígios ou explicação para o seu
desaparecimento.
CAPÍTULO 3
Tubiacanga era uma pequena cidade
de três ou quatro mil habitantes, muito pacífica, em cuja estação, de onde em
onde, os expressos davam a honra de parar. Há cinco anos não se registrava nela
um furto ou roubo. As portas e janelas só eram usadas... porque o Rio as usava.
O único crime notado em seu pobre
cadastro fora um assassinato por ocasião das eleições municipais; mas, atendendo
que o assassino era do partido do governo, e a vítima da oposição, o
acontecimento em nada alterou os hábitos da cidade, continuando ela a exportar
o seu café e a mirar as suas casas baixas e acanhadas nas escassas águas do
pequeno rio que a batizara.
Mas, qual não foi a surpresa dos
seus habitantes quando se veio a verificar nela um dos mais repugnantes crimes
de que se tem memória! Não se tratava de um esquartejamento ou parricídio; não
era o assassinato de uma família inteira ou um assalto à coletoria; era coisa
pior, sacrílega aos olhos de todas as religiões e consciências: violavam-se as sepulturas do “Sossego”, do seu
cemitério, do seu campo-santo.
Em começo, o coveiro julgou que
fossem cães, mas, revistando bem o muro, não encontrou senão pequenos buracos.
Fechou-os; foi inútil. No dia seguinte, um jazigo perpétuo arrombado e os ossos
saqueados; no outro, um carneiro e uma sepultura rasa. Era gente ou demônio. O
coveiro não quis mais continuar as pesquisas por sua conta, foi ao subdelegado
e a notícia espalhou-se pela cidade.
A indignação na cidade tomou
todas as feições e todas as vontades. A religião da morte precede todas e
certamente será a última a morrer nas consciências. Contra a profanação,
clamaram os seis presbiterianos do lugar — os bíblias, como lhes chama o povo;
clamava o agrimensor Nicolau, antigo cadete, e positivista do rito Teixeira
Mendes; clamava o major Camanho, presidente da loja Nova Esperança; clamavam o
turco Miguel Abudala, negociante de armarinho, e o cético Belmiro, antigo
estudante, que vivia ao deus-dará, bebericando parati nas tavernas. A própria
filha do engenheiro residente da estrada de ferro, que vivia desdenhando aquele
lugarejo, sem notar sequer os suspiros dos apaixonados locais, sempre esperando
que o expresso trouxesse um príncipe a desposá-la —, a linda e desdenhosa Cora
não pôde deixar de compartilhar da indignação e do horror que tal ato provocara
em todos do lugarejo. Que tinha ela com o túmulo de antigos escravos e humildes
roceiros? Em que podia interessar aos seus lindos olhos pardos o destino de tão
humildes ossos? Porventura o furto deles perturbaria o seu sonho de fazer
radiar a beleza de sua boca, dos seus olhos e do seu busto nas calçadas do Rio?
Decerto, não; mas era a Morte, a
Morte implacável e onipotente, de que ela também se sentia escrava, e que não
deixaria um dia de levar a sua linda caveirinha para a paz eterna do cemitério.
Aí Cora queria os seus ossos sossegados, quietos e comodamente descansando num
caixão bem feito e num túmulo seguro, depois de ter sido a sua carne encanto e
prazer dos vermes...
O mais indignado, porém, era
Pelino. O professor deitara artigo de fundo, imprecando, bramindo, gritando:
“Na história do crime, dizia ele, já bastante rica de fatos repugnantes, como
sejam: o esquartejamento de Maria de Macedo, o estrangulamento dos irmãos
Fuoco, não se registra um que o seja tanto como o saque às sepulturas do "Sossego".
E a vila vivia em sobressalto.
Nas faces não se lia mais paz; os negócios estavam paralisados; os namoros
suspensos. Dias e dias por sobre as casas pairavam nuvens negras e, à noite,
todos ouviam ruídos, gemidos, barulhos sobrenaturais... Parecia que os mortos
pediam vingança...
O saque, porém, continuava. Toda
noite eram duas, três sepulturas abertas e esvaziadas de seu fúnebre conteúdo.
Toda a população resolveu ir em massa guardar os ossos dos seus maiores. Foram
cedo, mas, em breve, cedendo à fadiga e ao sono, retirou-se um, depois outro e,
pela madrugada, já não havia nenhum vigilante. Ainda nesse dia o coveiro
verificou que duas sepulturas tinham sido abertas e os ossos levados para
destino misterioso.
Organizaram então uma guarda. Dez
homens decididos juraram perante o subdelegado vigiar durante a noite a mansão
dos mortos.
Nada houve de anormal na primeira
noite, na segunda e na terceira; mas, na quarta, quando os vigias já se
dispunham a cochilar, um deles julgou lobrigar um vulto esgueirando-se por entre
a quadra dos carneiros. Correram e conseguiram apanhar dois dos vampiros. A
raiva e a indignação, até aí sopitadas no ânimo deles, não se contiveram mais e
deram tanta bordoada nos macabros ladrões, que os deixaram estendidos como
mortos.
A notícia correu logo de casa em
casa e, quando, de manhã, se tratou de estabelecer a identidade dos dois
malfeitores, foi diante da população inteira que foram neles reconhecidos o
coletor Carvalhais e o coronel Bentes, rico fazendeiro e presidente da Câmara.
Este último ainda vivia e, a perguntas repetidas que lhe fizeram, pôde dizer
que juntava os ossos para fazer ouro e o companheiro que fugira era o
farmacêutico.
Houve espanto e houve esperanças.
Como fazer ouro com ossos? Seria possível? Mas aquele homem rico, respeitado,
como desceria ao papel de ladrão de mortos se a coisa não fosse verdade!
Se fosse possível fazer, se
daqueles míseros despojos fúnebres se pudesse fazer alguns contos de réis, como
não seria bom para todos eles!
O carteiro, cujo velho sonho era
a formatura do filho, viu logo ali meios de consegui-la. Castrioto, o escrivão
do juiz de paz, que no ano passado conseguiu comprar uma casa, mas ainda não a
pudera cercar, pensou no muro, que lhe devia proteger a horta e a criação.
Pelos olhos do sitiante Marques, que andava
desde anos atrapalhado para
arranjar um pasto, pensou logo no prado verde do Costa, onde os seus bois
engordariam e ganhariam forças...
Às necessidades de cada um,
aqueles ossos que eram ouro viriam atender, satisfazer e felicitá-los; e
aqueles dois ou três milhares de pessoas, homens, crianças, mulheres, moços e
velhos, como se fossem uma só pessoa, correram à casa do farmacêutico.
A desinteligência não tardou a
surgir; os mortos eram poucos e não bastavam para satisfazer a fome dos vivos.
Houve facadas, tiros, cachações. Pelino esfaqueou o turco por causa de um fêmur
e mesmo entre as famílias questões surgiram. Unicamente, o carteiro e o filho
não brigaram. Andaram juntos e de acordo e houve uma vez que o pequeno, uma
esperta criança de onze anos, até aconselhou ao pai: “Papai vamos aonde está
mamãe; ela era tão gorda...”.
De manhã, o cemitério tinha mais
mortos do que aqueles que recebera em trinta anos de existência. Uma única
pessoa lá não estivera, não matara nem profanara sepulturas: fora o bêbedo
Belmiro.
Entrando numa venda, meio aberta,
e nela não encontrando ninguém, enchera uma garrafa de parati e se deixara
ficar a beber sentado à margem do Tubiacanga, vendo escorrer mansamente as suas
águas sobre o áspero leito de granito — ambos, ele e o rio, indiferentes ao que
já viram, mesmo à fuga do farmacêutico, com o seu Potosi e o seu segredo, sob o
dossel eterno das estrelas.
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