A noiva do Donato
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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— Foi um caso espantoso, único,
inacreditável, senhor conselheiro, esse de que fui testemunha, e que eu lhe
conto, embora o senhor já o tenha lido no "D. Quixote".
E puxando o relógio, para ver se
ainda havia tempo, o ilustre advogado santista começou, em estilo rápido,
vivaz, nervoso, pictural, a referir-me a horrível história, sob o alpendre da
Central, à hora, quase, do noturno de luxo:
— "Era no sítio do "Pau
d'Alho", em Vila Bela, onde se haviam casado, naquele dia, o Donato e a
Rosinha. Um despotismo de gente, como o senhor não imagina. A Vila, as
cercanias, a redondeza toda, no "Pau d'Alho". Até veio gente de
Ubatuba! Calcule!"
Uma olhadela ao relógio, e
continuou, telegráfico:
"Violeiro: o Chico Messias.
Dança-se "baile" no terreiro. Chico Messias tira da toeira uma coriza
lacrimosa, de valsa sem motivo."
E acrescentou, num parênteses:
"O caiçara diverte-se sem
sorrir. Diverte-se por obrigação. Sua alegria é uma hipótese triste, socavada
de ancilóstomos."
E reatou, descritivo, unindo o
gesto à palavra, dando voltas no meio do alpendre:
— "Damas e cavalheiros vão e
vem, e tornam a ir, e tornam a vir, e dão-se as mãos, e balanceiam, e remoinham,
e desnalgam-se, numa chorea que tem passos de lanceiros, atitudes de Pedowa e
desengonços tupinambás."
Outra interrupção, para um surto
histórico:
"D. Pedro Fernandes
Sardinha, quando foi do seu caso com os Aimorés, devia ter assistido a
paulovices muito semelhantes."
E tornando, com uma soberba
vivacidade de descrição:
"Ela, a noiva, dentro do
vestidinho clássico, de manzuk branco, o filó pendente da mão. Tem olhos baixos
e constrangidos de protagonista. Ele, traz a fatiota de elasticotine, que tem
reflexos envernizados e o suplemento da gravata escura, de tricô frouxo,
escorrida pelo "adão".
E descreve a festa:
— Ambos assistem sem apetite o
apetite dos convidados. Há um mastigo odioso de bocados grandes, e o cair do
bocado, goela abaixo, com um rumor de rã assustada em pântano adormecido.
Comem! E comem!
Nova consulta ao relógio, e a
descrição despenhou-se, para ganhar tempo:
Hora da sobremesa. O Inocêncio,
professor público, vai falar! Recuo de
cadeiras; engolir de últimos bocados; bigodes engordurados que se chupam. —
Atenção, senhores! O Inocêncio vai falar.
Como se estivesse na festa, eu
próprio me empertigo, e o ilustre viajante repete, assombroso:
Vai falar o Inocêncio. E começa
tan, tan, tan, e meus senhores, e o himeneu, e a família, e o tugúrio, e mais
isto, e mais aquilo e... e... e o Inocêncio perde o fio, e embrulha, enrola,
engole, mastiga, encaroça, embatuca. Estende-se um vágado coletivo, pesado como
um paralelepípedo. O Inocêncio, que empunha o copo, guina a boreste gorgolões
de cerveja.
Noutro parênteses, o meu amigo
sentencia, outra vez:
— Há situações que obstruem a vida
como caroços de jabuticaba!
E engatando, de novo, com os
olhos no trem, desabou, história abaixo:
— Coitado do Inocêncio!
Felizmente, o Dito Pintassilgo, que lhe estava ao lado, encontrou uma saída.
Levanta-se, sorri, braceja, e, alto e sonoramente:
— Viva a noiva!
O viva desonerou aquele
constrangimento, como um laxativo. Um alívio geral.
— Viva!...
E o Dito prosseguiu, vitorioso:
— Viva os óio da noiva!
— Vivoooo!
— Viva os dente biturado da
noiva!
— Viva!
— Viva o pescoço da noiva!
— Viva!
— Viva os peito da noiva!
— Viiiiva!
Tomando fôlego, o narrador
continuou, elétrico:
— Os vivas desciam, conselheiro,
assustadoramente, noiva abaixo. O noivo, o Donato, piscou, por três vezes, os
olhos, apreensivo. De repente, remexe-se, mergulha a mão pela cinta, toma da
garrucha trochada, coloca-a à sua frente, na mesa, e, com aquele sorriso seu,
desdentado, e a vozinha gutural, oitava acima:
— Oie, seus convidado: não é por
nada: mas eu queria apreveni, que os "viva" que passá do imbigo da
noiva pra baixo... eu sapeco!"
Último apito. Um pulo do meu
amigo, um barulho de ferragens, um resfolegar fatigado de máquinas. E o trem
desapareceu.
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