Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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A garganta que o Mediterrâneo faz
entre a Cirenaica e o Peloponeso chamavam o Mar d'Ouro...
Oliveira Martins
I
A frota cilícia, depois de cruzar o Mar Tirreno com as suas
quilhas velozes e de assaltar o litoral da Etrúria e do Lácio, deixando
incendiada em Óstia a esquadra consular romana, cujas galés numerosas douraram,
durante noites seguidas, com as suas chamas sinistras, as altas ondas
espumantes e as brancas dunas das praias — rumava agora lentamente, velas de
púrpura enfunadas, em direção a Brundísio, na costa do Adriático. Abarrotada
com as presas ricas de Pirgos, de Castro Novo e Gaieta, viera descendo do
norte, na monção da primavera, à bonança do mar largo e ao esplendor do céu
azul. E como a brisa era à feição e as correntes favoráveis, a marinhagem
pirata, toda ela forte e moça, composta de gregos e iberos, louros gauleses da
Armórica e romanos expatriados, gente meridional e ardente, colhida ao acaso em
meio à multidão variadíssima das vilas e cidades das costas mediterrâneas,
expandia-se em tumultuosa alegria e amava com louca desenvoltura, abraçada
baquicamente, sobre as toldas dos navios, às morenas prisioneiras formosas da
Itália peninsular.
Assim, comandantes e marinheiros festejavam a vitória estrondosa
daquele cruzeiro feliz, numa estranha embriaguez de luxúria e de vinho,
explodindo atroadoramente, entre a cordoalha e os mastros, à sombra dos toldos
de Tiro, por onde o sol se coava num grande clarão sulferino.
E Cneio Lutácio, o almirante em chefe da frota corsária,
embriagado também, não de falerno e mulheres mas de vingança e ódio saciados,
numa atitude desdenhosa e soberba, forte e inacessível, sorria triunfalmente,
de pé junto à borda, sob os latinos de púrpura, à alta popa rutilante do seu
trirreme dourado. Sorria triunfalmente, com a sua larga face romana e os seus
negros olhos sensuais, no orgulho e na glória do grande combate havia pouco
vencido sobre aqueles que, outrora, o tinham levado ao exílio em terras
distantes da pátria. E recordando as lutas em Roma, quando Sila subira ao
consulado, a sua ditadura sanguinária e as humilhações que passara, obrigado a
fugir para a Espanha com Quinto Sertório quando estava a alcançar o tribunado,
sentia dentro d'alma uma funda amargura — amargura terrível de proscrito e de
soldado! — ao mesmo tempo que grandemente exultava pelos assaltos vitoriosos
que dera, bem à cara de Sila e do seu exército, em Clazômenas e Samos, em Lasso
e Samotrácia. Fora após esses sucessos, sem contar todavia as constantes
derrotas às esquadras romanas na Sicília, na Grécia e na Cirenaica, que
resolvera decididamente atacar o litoral da Itália com toda a sua frota,
procurando abater totalmente o poder de Roma no mar. Secundando deste modo a
boa marcha da guerra de Espanha e dominando o Mediterrâneo com a inúmera multidão
das naves cilícias de que tinha o comando geral, esperava dentro em pouco
vencer o tirano e regressar à Pátria, a que o prendia além de tudo uma grande
paixão amorosa. Mas enquanto não chegava esse dia entre todos venturoso do
almejado repatriamento, para, como todo o bom romano da época, dar largas às
suas vinditas e cóleras, cumpria satisfazer o seu amor, a sua paixão, o seu
ideal, pois que não podia mais esperar. Por isso, firmado na batalha de Óstia,
resolvera atacar sem perda de tempo as quilhas romanas do Adriátieo, dando
também um golpe de mão a Brundísio, onde estava a sua amada. E absorto de todo
nessa grande preocupação, agora que deixava a bombordo o litoral da Messápia e
avistava já pela proa as terras altas da Apúlia, pensava na sua Lódia querida,
a quem, ainda nas vésperas de partir para o exílio, fizera juras sinceras de
afeto, prometendo voltaria a buscá-la, um dia, embora numa frota pirata e em
luta contra a própria Pátria. E ali ia, com efeito, depois de alguns anos de
ausência, nas suas naus gloriosas, dominando aqueles mares...
Mas a frota contornava um pequeno promontório de rochas que se
avistava a um bordo e Cneio Lutácio, ordenando aos capitães puxassem todo para
a costa, porque a ilha de Faros vinha surgindo já à entrada de Brundísio,
volveu a mirar com orgulho as duzentas velas da esquadra, composta, na sua
maior parte, de hemiolias ligeiras e mioparones esguios, cintados de frisos
de cedro correndo em tronchados de ouro. Vogava em duas divisões, tendo por
navios-testas dois altos trirremes riquíssimos, cobertos de chaparias
faiscantes, com as proas talhadas em florões e grossas bordaduras artísticas,
as popas abertas em leque como imensas caudas de cisnes. Num deles ia Lutácio,
o almirante em chefe; no outro, o seu lugar-tenente Cetego Cláudío, o feliz, assim apelidado por haver sempre
pelejado com êxito em mais de cem encontros marítimos.
De repente desfizeram de amura, virando na bordada de terra. E com
o sol ainda alto no Azul suave e meigo da tarde, a ilha de Faros veio passando
lentamente a boreste, subindo e descendo nos balanços de bordo, com o seu
litoral penhascoso e rendado, os grossos novelos espumosos das vagas rugindo e
dançando em torno às suas colinas coroadas, aqui e além, de maciços de árvores
e flores, tendo no viso mais alto um esguio obelisco de mármore branco — o
farol — onde o grande globo de ouro da lâmpada, pendendo de um gancho de bronze
e ferido da luz vespertina, faiscava vivamente, como se, já aceso e suspenso no
seio negro da noite, à maneira dum grande astro solitário e saudoso, estivesse
já a iluminar e a desfazer de perigos a costa e o porto, chamando a um repouso
e quietude fugazes e efêmeros esses estranhos nômades alados — as tristes naves
errantes.
Lutácio expediu então três hemiolias
latinas a reconhecer a costa. As alígeras velas voavam, à refrega do sul,
na crista alta das vagas espumando em flor. Os seis triângulos das hemiolias, agora cor de fogo ao
crepúsculo, bordejando, cá e lá, contra a costa, ainda afastada à proa,
lembravam seis estranhas, formidáveis borboletas de sangue a voejar
sinistramente nas águas, pressagiando assassinatos tremendos ou pavorosas
matanças...
E em pouco, diante de toda a frota, numa linha recuada e recurva,
Brundísio surgiu, radiando pelos seus templos e pela sua casaria de mármore.
Pela noite, o poderoso chefe corsário levou o primeiro assalto à cidade, sem
que um birreme ou trirreme, ou que um só pêntere romano lhe saíssem ao
encontro...
II
Semanas depois, numa alegre madrugada flamante, a esquadra, com o
seu velame de púrpura bojando como guiões de triunfo, proava ao sul e entrava
no mar Jônio. Para trás, entre Caônia e Hidrunto, à boca do Adriático, as
rochas fulvas de Olitrones fugiam já, lentamente, em grandes coroas de espuma.
Toda a costa do Epiro, de Palcesto à Acarnania, corria ao longe e a leste, em
bordaduras risonhas. Córcira, Paxos, Leucade, Ítaca, Cefalenia e Zacinto —
floridas ilhas lendárias — levantavam-se das águas, em relevos verdejantes.
Após esses ninhos de amor beijados do zéfiro jônico, surgia alto, a um bordo,
velado na bruma argêntea, o Peloponeso soberbo que ouviu, outrora, os cantos
épicos de Homero e se desenhava nas ondas como uma enorme folha de plátano que,
arrancada subitamente aos bosques verdes da Ática, viesse rolando no ar e caísse,
por fim, fresca e vicejante, criando raízes e florescendo, sobre o azul do mar
de Mirtos, tão pitorescamente povoado de pássaros marinhos como de galés
rutilantes.
E a mesma alegria lúbrica, que embalara e embriagara juntamente
com os vinhos aquelas almas viris de piratas, na travessia bonançosa de Óstia a
Brundísio, voltara a estourar, mais borbulhante e mais viva, sobre as vagas
roladoras, dentro dos barcos cilícios. Agora até o próprio almirante se
inebriava também, celebrando as suas núpcias enlaçado à sua Lódia querida. Na
vasta câmara luxuosa do seu trirreme dourado, ao som de músicas lúbricas, em
meio às telas de seda que ornavam as anteparas e tetos, sobre custosas
alfombras de Side, da espessura de um pé de felpo macio e de matizes delicados
figurando cenas olímpicas, em amplos divãs afofados e recobertos de púrpura,
provocando volúpias e gozos em braços e colos de Ninfas — o par amante e ditoso
rolava, insaciável e lânguido, em grandes gestos de amor...
Durante seis dias, descendo suavemente com o norte por entre esse
imenso crivo de ilhas que formam a Hélade sublime, a frota vogou para o sul num
louco tumulto de orgia — quando, uma noite, na altura de Citera, um temporal de
noroeste assaltou e dispersou os navios, fazendo cessar bruscamente o
desenvolto festim. O trirreme almirante, com alguns birremos ligeiros e setenta
e oito hemiolias cobertas, fora
impelido contra a costa ocidental de Creta, na latitude do promontório
Cimarros. A divisão de Cetego, com a maior parte dos mioparones latinos, subitamente apartada da primeira pelas furiosas
cordas do vento, aproara para o norte, entre Tenara e a Egília, buscando um
abrigo seguro na baía da Lacônia. E as demais quilhas da frota, dispersas pelas
rajadas terríveis, andavam aos boléus no marouço, ou se haviam afundado talvez
nas covas fundas das ondas.
A tormenta durara apenas uma noite, mas o seu furor fora tal que,
por espaço de dois dias seguidos, o mar estourou e rolou, em colinas
espumantes, por todo o Mediterrâneo, desde o litoral rendilhado da Ásia Menor
até as álacres praias de Espanha. O centro, porém, do ciclone não passara dessa
garganta profunda que fica entre a Cirenaica e Creta, a que os piratas chamavam
Mar de Ouro (Aureum Mare), porque
dele lhes vinham as fabulosas riquezas que tinham acumuladas e ocultas nas suas
montanhas cilícias e porque era aí que as suas frotas cruzavam, em contínuas
estações ou paragens, assaltando, aprisionando e saqueando, com o maior êxito,
os numerosos comboios romanos que vinham do Egito ou da Líbia Exterior,
carregados de trigo e preciosidades, bem como as pequenas esquadras comerciais
e de guerra que desciam o Egeu, procedentes da Macedônia, da Propôntida ou do
Euximo, atulhadas de tesouros.
O vento aí levara tudo em torvelinho e destruição. A armada de
Públio Muciano (descendente do velho pontifex
maximus da antiga e nobre Roma de Pórcio Gatão) um dos bravos oficiais de
Sertório que passara a piratear também para auxiliar a guerra de Espanha com
mantimentos e reforços de tropas apanhados ou pilhados em toda a costa
mediterrânea — perdera-se, em quase totalidade, contra as rochas do promontório
de Ardanis. Outra esquadra cilícia, que guardava a Sicília e a Sardenha
singrando entre as Baleares e Útica, ao longo da Zeugitânia, deixara o melhor
dos seus navios sobre os bancos do golfo de Hipone. E uma frota romana, que
vinha do Éfeso carregada de gêneros e protegida pela hansa das cidades lícias,
apesar da chegada à Onísia, onde a borrasca a apanhara, fora encalhar, de água
aberta, a Itanos.
Cneio Lutácio pretendia assaltar Apolônia por aqueles dias — e, à
tolda do seu trirreme, no alto degrau do pavilhão do comando, olhando as águas
sem cessar, bramia, agitado e colérico, ante um tal contratempo, um tamanho
transtorno. Aquilo vinha impedir-lhe penetrar no Mar de Ouro antes da passagem
dos navios de Ápio Aquílio, já saídos de Rodes com as riquezas da Trácia e do
Ponto em demanda da Itália. Era assim que a tempestade lhe fazia perder esse
rico e rendoso comboio inimigo. E como as correntes e o mar desmontado o haviam
impelido fortemente ao sueste, sobre as costas do norte de Creta, para dentro
do cabo Cimaros, os primeiros relevos de terra surgiram à proa, detalhando-se
pouco a pouco à vista e aproximando-se da frota no voo da singradura. Então os
palácios e templos de Cidônia apareceram ao fundo, na curva do seu golfo
risonho, alvejando pelos seus altos e colunados frontões de mármore onde
triunfava imortalmente o glorioso e incomparável gênio artístico da Helênia.
O almirante em chefe lembrara-se então de ancorar e refrescar as
galés na encantadora e amada cidade de Minos, o rei dos reis cretenses, o sábio
e olímpico Minos, dominador bom e justo dessa Creta venturosa, resplandecente e
augusta, viveiro invejado e querido de cem cidades graciosas e de mil aldeias
artísticas. Aí aguardaria a divisão de Cetego arribada na Lacônia, cuja demora
em unir-se-lhe já o ia impressionando e tornando apreensivo sobre o êxito final
daquele longo e trabalhoso cruzeiro, sem dúvida o mais opulento e feliz de
quantos haviam feito até ali os cilícios. Os navios de Cetego já deviam estar à
vista, pensava, pois, apenas o ciclone amainara, lhe enviara de Citera oito
quilhas ligeiras a marcar-lhe a junção com a esquadra em Cidônia. O seu
espírito forte e lúcido, mas ao mesmo tempo supersticioso e místico, como o de
todo o romano de então, apenumbrava-se e languescia agora, à ideia de que
aquela tormenta era decerto um castigo dos Deuses protetores de Roma vingando a
derrota de Óstia. E investigando continuamente a solidão do mar largo
desenrolando-se infindamente à popa no cetim de água azul e ouro, mostrava-se
triste e pensativo, apesar do esplendor da bonança iluminando alegremente o
Oceano e dos sorrisos e olhares apaixonados e ardentes em que o envolvia,
reclinada ao seu ombro, numa atitude de abandono e langor, Lódia, a amante
adorada.
Mas, de repente, velas altas de púrpura vermelharam ao longe, no
horizonte. Proavam naquela direção, os redondos e latinos bojando ao vento do
norte, os topes dos mastaréus oscilantes refulgindo por uma roseta de ouro que
os encimava artisticamente, simbolizando a Estrela Polar — iluminadora bendita
das Singraduras e Rumos, guia amado das Galés e das Naus pelas noites
oceânicas! À maneira que a multidão de cascos se detalhava mais e mais, numa aproximação
gradual e constante, a marinhagem do trirreme-chefe, como a guarnição das hemiolias em volta, reconhecia, um a um,
os navios de Cetego.
À popa, por entre os ornatos de marfim e ouro das bordas, tendo à
cabeça o capacete de almirante e a envolver-lhe o tronco uma couraça de
reluzentes escamas, Cneio Lutácio mirava também, detidamente, as singradoras
quilhas felizes, sorrindo de glória e de júbilo, o espírito agora sereno,
abraçado à sua Lódia, que toda se lhe entregava languidamente, olhando contente
as velas, a boca fresca, e a sorrir numa enfiada de pérolas, o farto colo
sensual a arfar docemente, o corpo túmido e forte e rescendente de aromas a
fremir lubricamente, envolto num capício de coa de um precioso escarlate cocéus, aberto a um lado de alto a baixo
e descobrindo a perna nua sob a franjadura d’ouro!
Então a maruja, satisfeita, debruçada às amuradas, rompeu num
uníssono estrondoso saudando as galés de Cetego que, em voos de aves marinhas e
cantos guerreiros, desfilavam vagarosas em torno da nau almirante. Após essas
continências ao chefe, toda a esquadra assim reunida entrou a demandar
lentamente o ancoradouro de Cidônia, ao som das músicas de bordo e das
inflamadas e livres canções selvagens do corso, repetindo-se de novo as cenas
de amor desenvoltas em que vinham desde Óstia capitães e marítimos, festejando
nesse instante mais um triunfo soberbo — o da luta com o ciclone — na
embriaguez tumultuosa dos vinhos doces da Grécia, fervendo em crateras de prata
cravejadas de rubis.
III
Repousados os marujos, reparadas e refrescadas as galés, a
esquadra levou âncoras, à pálida luz encinzada de um ocaso chuvoso. Lentamente,
à aragem do sul, os duzentos cascos se alinharam em duas filas gigantescas,
semelhando duas serpentes monstruosas de corpos em grossos anéis eriçados de
arestas, ou dois singulares rosários de colossais camândulas aladas, flutuando
estranhamente nas vagas. E como a brisa era branda, cada fila vogava de
panos quase murchos e a bater contra os mastros, puxadas pelos trirremes dourados
dos dois almirantes e ajudadas nessa marcha de calma pelos longos e rijos remos
de cedro prateados que, impelidos possantemente por milhares de pulsos de
Hércules, ao imergirem na água, a um tempo, num só movimento musical e rítmico,
abriam à superfície do golfo infinitos bolhões de espuma clara, a formarem
pitorescamente, com a esteira da singradura, um largo e sinuoso rendado de
aljôfares, golfando marulhosamente do fundo de cada quilha. Ao longe, na barra,
uma névoa densa e úmida encobria tudo...
Caía a noite quando as velas, guinando a oeste, montavam o
promontório Cimaros. À esquerda ou a bombordo, a costa montanhosa de Creta
desaparecera de todo, apenas assinalada agora pelo enorme globo bicolor do
farol de Cidônia, ardendo no alto, como um astro, com a sua luz verde e de
ouro. À direita ou a boreste, a ilha de Egília, coroada no seu viso culminante
pelo Templo de Diana, cuja mole tinha uma extensão de três milhas e mais de mil
colunas de mármore, branquejava tenuemente, à distância, como um litoral cheio
de dunas.
A chuva cessara. Rumava-se agora ao sul, à bolina, contra a
aragem ainda fraca da proa, em demanda do Mar de Ouro. A frota, faustosamente
iluminada às cobertas e toldas, envolta no incessante soar de músicas e
cânticos, no vozear grosso e rouco da maruja em júbilo, com as amuras das velas
de púrpura como a cobrir tudo de um fantástico velário de sangue, lembrava de
repente uma naumaquia gigante, no Tibre, celebrando um triunfo romano, por uma
noite de bruma... Mas, a leste, no horizonte, o céu escampara, muito límpido e
azul. E a um dos bordos das galés balouçantes a lua surgia, talhada em
crescente, como uma lâmina de alfange, acendendo filetes de giz luminoso pelo
emaranhado dos cabos e mastros, e uma trêmula fita prateada na infinita
amplidão das ondas...
Estiado o tempo, os marinheiros de folga, que se abrigavam nas
cobertas, correram ao convés, aglomerando-se sobre os castelos e bordas. E,
voltados para o Oriente e para a popa, vendo a lua na sua fase segunda, a voar
pelo céu entre grossas vagas de nuvens, alguns dos que tinham estado com as
forças de Sertório, nas praias cantábricas da Espanha e da Gália, lembravam-se
vagamente das pequeninas embarcações dos bretões, canoas esguias de couro, de
pontas recurvas e pintadas a branco, que viam, às vezes, do alto das rochas do
Trilicucum e do Curianum, destacando e brilhando ao sol, ora bem salientes e
nítidas na crista elevada da mareta espumante, ora ocultas e submersas na cava
funda do marouço em fúria, isoladas e perdidas na vastidão azul escura do Mar
Aquitânico. Os romanos, sempre serenos e felizes, orgulhosos dos seus triunfos
navais, satisfeitos com o bom tempo e enlevados com o luar, batiam as mãos e
saltavam, gritando: — Salve, Diana! deusa
da Noite e dos Bosques! e os cilícios, sempre tristes e humildes,
indiferentes quase àquelas vitórias e glórias que os colocavam apenas pouco
acima de cativos e vis tributários de Roma, pois na Cilícia tudo era feito à
maneira romana, sob os mesmos costumes e usos, as mesmas leis e política, os
cilícios, saudosos já dos seus lares e das suas terras risonhas nesse longo e
afastado cruzeiro, debruçavam-se das bordas, e, erguendo os braços ao ar,
murmuravam docemente: — Ó branca e divina
Astarte, que a tua luz nos ilumine e guie sempre na Treva, Deusa do Sonho e do
Amor!... Em meio aos florões e entalhaduras de ouro da popa, no alto degrau
do pavilhão do comando, Cneio e Lódia, os dois amantes, o belo par venturoso,
unidos e conchegados docemente sobre almofadões de púrpura, olhavam também, num
enleio, o clarão fosco da lua lançando de leste a oeste uma estranha via láctea
marinha, por entre as alas alterosas das galés singrantes...
Na altura de Gisamo, já muito amarada a oeste, pela força das
correntes e os bordejos contínuos, a esquadra guinou ao sueste, direita a
Criú-Metapon. Daí, sempre à bolina contra o sul, seguiu em demanda da Clauda, o
admirável observatório e entreposto insular dos piratas nas costas cretenses,
onde já devia aguardá-la a valente esquadrilha de birremos ligeiros empregada
entre a Espanha, a Cirenaica e a Cilícia, trazendo notícias de Sertório ou
levando as novas das vitórias corsárias, sempre recebidas em Sido, a famosa
capital, com entusiasmo e delírio.
Alvorecia quando a ponta noroeste da Clauda se desenhou à proa,
surgindo da espuma das vagas, num extenso relevo granítico. E logo de uma
enseada em calma onde ilhotes cor de ocre pontuavam a água azul, pequenas velas
partiram, em voos de aves marinhas, em direção aos navios. Eram seis birremos
cobertos e vinte hemiolias esguias
que, destacadas da frota de Públio Muciano, batiam as costas de Creta em
cruzeiros de vigia. Esta esquadrilha de exploração e aviso — a melhor que
possuíram os cilícios durante o seu efêmero mas extraordinário poderio marítimo
— escapara às fúrias do grande ciclone, graças ao denodo e perícia do seu
comandante Lúcio Sétimo que, apanhado de súbito entre os temerosos escolhos de
Crisos e a grossa rebentação dos bancos cretenses, soubera a tempo abrigar-se
em Hieropitna.
Em pouco, numa magnífica bordada à popa, o dourado birreme de
Lúcio, à frente dos seus albatrozes temíveis, acercou-se da galé alta de Cneio
e, volteando-a garbosamente, com os seus tripulantes às bordas e sobre os dois
mastros latinos, veio à fala a um dos bordos, ao estrugir sonoroso e rouco de
um coro marujo e de cem buzinas náuticas, entoando as boas-vindas. E
atravessados ao vento e quase unidos um ao outro os dois navios, apenas chusmas
e tubas cessaram, Lúcio Sétimo, surgindo a bombordo, no degrau do comando,
embocou o porta-voz e, voltado para a nau almirante, começou a relatar
verbalmente os sucessos ali ocorridos desde a saída da esquadra para a Itália
até aquele dia. Bem em frente, debruçado ao portaló do seu alto trirreme e
cercado do grande cortejo dos seus oficiais, tendo Lódia ao seu lado, presa a
si pelo braço que lhe passara à cintura, Lutácio atentamente o ouvia, belo e
forte, sob o capacete de prata faiscante e sob o espesso e rico manto de seda
dos Cônsules Marítimos, de um encarnado tão brilhante e tão vivo, visto assim
de repente ao clarão do sol levante, que dir-se-ia singularmente talhado de
algum tecido de fogo ou rubis...
Agora, de toda a parte da Clauda e dos numerosos penedos vizinhos,
procelárias e gaivotas alvíssimas acudiam, em revoadas, a saudar alegremente a
frota, passando por entre as velas e mastros numa grazinada festiva. E à
dourada alacridade do sol saindo vitoriosamente o côncavo dossel da manhã muito
límpida, o Mediterrâneo faiscava no seu imenso lençol azul de cetim líquido
bordado de pedraria...
Mas Sétimo falava. E depois de narrar, com detalhes, o naufrágio
das frotas cilícias de Ardanis e Hipone e de duas flotilhas ligeiras de Rodes e
da Grande Sirte, referiu-se aos repetidos cruzeiros que fizera em toda a volta
de Mar de Ouro. Por fim, preveniu ao almirante de que, por um comboio fenício,
vindo de Lilibeu por Catânia para a costa de Tiro, soubera que uma grande
esquadra romana, ao mando de Marco Antônio, forçava velas para ali, a vindicar
a derrota de Óstia e o assalto de Brundísio.
Ao nome de Marco Antônio, seu rival e inimigo, os olhos negros de
Cneio tiveram um fulgor sinistro. Tesou-se então soberbamente sobre os altos
coturnos vermelhos onde se viam estampados a ouro, em desenhos miudinhos e
artísticos, deuses e divindades marinhas — Netuno, Glauco, Tritões, Nereidas,
Oceânides — e numa resolução decisiva, abrindo os braços sobre as águas, num
gesto brusco e violento que repuxava em grandes pregas o seu imenso manto
sanguíneo, mais apertado agora no círculo denso dos oficiais do seu séquito
marítimo que o fitavam ansiosamente, de olhos faiscantes e faces incendiadas,
como se investissem já com o inimigo, Lutácio ordenou a Sétimo largasse
imediatamente para o norte e, apenas avistasse a frota romana e verificasse o
rumo, a marcha e o número de quilhas que trazia, voltasse a unir-se à esquadra
com a sua veleira flotilha.
Súbito, de toda aquela extraordinária multidão de naves elevou-se
ao ar e ficou a rolar por instantes nas ondas o estrugir rude e bélico das
buzinas náuticas. Procelárias e gaivotas dispersaram, então, num alarme e em
grasnidos vivíssimos, buscando o pouso das ilhas ou a amplidão do mar livre. Na
linha rasa do horizonte havia a desolação e o vago dos pélagos infindos. Tudo
em torno era ermo e de anil. E embora a grasnação inquieta das aves marinhas
ainda assustadas continuasse a agitar tumultuariamente a alta e vasta
serenidade do céu, onde o sol glorioso, já quase galgando o zênite, entornava a
largos jorros o fino pó de açafrão da sua luz quente e límpida, sentia-se flutuar
e gemer, por entre os mastros e velas, de envolta com o murmúrio do vento e da
vaga, uma saudade infinita...
Mas era urgente explorar a zona de mar a nordeste, a ver quando o
inimigo aparecia. E Lúcio Sétimo, o intrépido, num voo de corvo marinho, saltou
à frente dos seus barcos ligeiros e fez-se ao largo, à bolina.
Naquela mesma hora e sem perda de tempo, para evitar a surpresa do
ataque por algum ponto não previsto, Lutácio fracionou a divisão de Cetego em
quatro bem dispostas flotilhas, devendo duas delas guardar Creta pelos extremos
de leste e oeste desde a Clauda até Criso, e as duas outras cruzar pela costa
da Líbia Exterior, de Pretônio à Berenice. Ele, almirante em chefe, sairia com
a sua divisão, composta dos melhores navios, a percorrer o coração do Mar de
Ouro, de Apolônia a Cortine, onde decerto viria a travar-se a batalha, porque
era para aquela garganta do Mediterrâneo oriental — passagem forçada das frotas
romanas — que Antônio se dirigia. E pela tarde, prontos estes preparativos prévios
de guerra, deu o sinal da partida.
Das quatro esquadrilhas da divisão de Cetego, a primeira — ao
mando deste, que não podia distanciar-se muito do almirante em chefe, porque
lhe cabia substituí-lo em caso de necessidade — devia ficar ali mesmo, na Clauda;
e por isso não se movia, pairando sobre velas, a pequena distância da ilha. A
segunda, terceira e quarta — dirigidas por Licínio Emílio, Caio Lívio e Cláudio
Valério, capitães escolhidos — já viravam destramente ao largo, procurando os
seus destinos. E a divisão de Lutácio, apenas aquelas alinharam aos seus rumos,
fez-se, com o vento da popa, na derrota do Mar de Ouro...
Quando a escócia aérea e negra da noite começou a alastrar o
horizonte a leste, bordada já pelas espiguilhas de ouro faiscantes das
primeiras estrelas — as numerosas galés velejantes achavam-se ainda à vista
umas das outras, cobrindo, aqui e além, o infinito e líquido gorgurão azul
escuro do Mar, de largas rendas de espuma...
IV
Com efeito, nos idos de maio, Marco Antônio arrancou de Régio para
o Mar de Ouro, à frente da mal aparelhada e mal armada esquadra que organizara
a custo com navios adquiridos particularmente e com as galés que Roma, apesar
do abatimento dia a dia crescente da sua força de mar, pudera manter, até ali,
em Tarento e no Adriático.
O almirante romano era tio de Antônio, o companheiro inseparável
de Catilina, de Clódio, de Célio e de Dolabela, e um dos boêmios mais
conhecidos e temidos da vida airada em Roma; de Antônio que veio a ser depois
general insigne e braço direito de César no esmagamento dos velhos princípios
republicanos, em Lerda, Farsália, Tapso e Munda, sócio com Lépido no
triunvirato de Otávio, em que teve o comando do Oriente fixando-se no Egito
onde se fizera rei e vivera nove anos
nos braços de Cleópatra, numa orgia desenfreada de amor; de Antônio que, ao
momento, não passava de um radical revolucionário, como o próprio César e os
outros camaradas de boêmia, mas que já tinha amigos no Senado e cujo nome de
guerreiro hábil e bravo começava a andar de boca em boca, pois havia pouco
chegara da Ásia onde tivera saliente papel nas campanhas da Síría, sob Gabínio,
e com este se passara ao Egito, a restaurar Ptolomeu, o Auleta, em Alexandria.
Fora menos pelo seu mérito que pelos empenhos do sobrinho que o Senado o
investira naquele posto, pela primeira vez criado para Públio Servílio, em 676,
e por ele exercido desde então até ao ano transacto (677), durante o qual
batera valorosa e triunfalmente a pirataria, esmagando-a nas águas da Ásia
Menor, valendo-lhe o feito o glorioso cognome de isáurico.
Marco Antônio viera da Ásia, onde era oficial no exército de
Luculo, apenas ali constara que o Senado pretendia restaurar o Comando Geral
Marítimo do Mediterrâneo contra os corsários cilícios, os quais, apenas Servílio
regressara a Roma, haviam, com pasmosa atividade e mais amplamente ainda que
outrora, reorganizado as suas primitivas esquadras, dominando como nunca as
duas bacias mediterrâneas — a de oeste e a de leste — e impedindo chegassem à
Itália, como dantes, os grandes comboios de trigo que lhe iam das províncias. O
ex-oficial de Luculo tinha por principais intentos não somente posição e
renome, mas também tomar vingança completa de Lutácio, pela guerra que este lhe
fizera quando com ele concorrera ao tribunado e, sobretudo, pela afronta
imperdoável do rapto de Lódia, filha do senador Júnio Rufo, a qual, embora o
não amasse, lhe estava prometida em casamento.
Obtida a comissão, partira logo a organizar a armada. O Senado
porém não lhe dera dinheiro, dizendo-lhe que se arranjasse com os elementos
marítimos de que dispunha a República — três mil homens sobreviventes de Óstia
e as galés com os seus cinco mil tripulantes das frotas de Tarento e do
Adriático. Na anarquia e desorganização a que chegara o governo romano, agora
não mais nas mãos da antiga oligarquia corrupta mas exclusivamente em poder dos
cavaleiros, dos comícios e dos audazes, — o que era pior ainda! — o seu grande
poder marítimo foi pouco a pouco decrescendo sem que ninguém olhasse para isso,
e chegara por fim à miséria em que se via. Entretanto, Marco Antônio não
desanimara. Contraiu empréstimos com os grandes banqueiros romanos — que
emprestavam sempre a todos os que subiam — e audazmente meteu ombros à empresa.
Assaláriou gente, comprou navios de comércio que armou em guerra, trouxe-os
para Régio onde também reuniu as frotas de Tarento e do Adriático, e pôs-se a
arranjar e aparelhar a sua esquadra. E, embora conhecesse a perícia náutica e a
bravura guerreira do rival, tanto como a imensa força dos piratas cilícios,
mantendo no Mediterrâneo para cima de mil navios e mais de oitenta mil homens
em armas, mercenários, sim, mas heroicos e longamente adestrados nas manobras
do mar, — o novo almirante romano decidiu entusiasticamente vir dar batalha à
esquadra cilícia mesmo em águas do Mar de Ouro.
Assim, tendo partido de Régio, fora tocar em Cefalênia de onde
tomou para o sul, costeando a Élida e a Messênia em procura de Lutácio, cuja
armada calculava dever andar junto à Creta. Mas o ciclone o apanhara à altura
das ilhas de Emusses, levando-o a procurar Colonides com avarias na esquadra.
Permaneceu aí quase um mês, a reparar os velhos cascos que o mar abalara. E
apesar da tormenta e da fragilidade da frota lhe haverem ministrado ao acaso a
primeira impressão de insucesso, o obcecado romano, desprezando os riscos da
aventura, ousou prosseguir na viagem.
Deixava já pela popa o promontório de Criú-Metapon e os altos
montes ao fundo, quando, um dia, pela tarde, latinos de púrpura vermelharam nas
águas. Era a esquadrilha de Cetego que, reconhecendo a frota romana, cambou
logo ao sueste, no canal entre a Clauda e Anópolis, a avisar o almirante em
chefe da aproximação do inimigo. Marco Antônio, então, julgou a esquadra
cilícia dispersa entre Creta e a Clauda e, supondo poder batê-la facilmente,
meteu em linha de ataque, correndo sobre a flotilha à força de velas e remos.
Mas os navios de Cetego, ligeiros e leves como eram, não andavam,
voavam. E, no outro dia, aos primeiros clarões da manhã, o almirante romano
nada mais avistou sobre o mar...
V
Havia três semanas que a esquadra cilícia deixara a Clauda e
cruzava o Mar de Ouro, de Cirena a Apolônia, de Arsinoé a Berenice. Nesse curto
espaço de tempo, sobre essas águas entre todas ricas no rico Internum Mare de então, fizera presas
valiosas. Logo ao primeiro dia, na altura do cabo Piconte, de onde se avistavam
as planuras encantadas do Jardim das
Hespéridas, orladas ao fundo por uma franja densa e sem fim, formada pelas
umbelas de ouro do silfium que pareciam
grandes flores de sol — caíra prisioneiro e sem resistência um numeroso comboio
romano, carregado de trigo, que ia de Ptolemaida para Gaeta. Cinco dias depois,
era uma flotilha mercante de galés fenícias, vinda de Gades com o produto em
ouro e prata amoedados das grandes vendas do estanho das Cassitéridas e
trazendo à tolda, num contínuo festim oceânico, sob os toldos de púrpura
palpitando ao vento, bandos de cortesãs e dançarinas espanholas, de uma
beleza enlevadora e ardente, de uma elegância e meneios graciosos, nas suas
primitivas sarabandas e fandangos executados ao som de músicas
langorosas, embaladoras e lentas. E ainda nas vésperas tinham vindo
juntar-se-lhe vinte trirremes da frota da Sardenha, salvos da grande borrasca
nos abrigos da Sicília. De sorte que o grosso da esquadra montava agora a cento
e quarenta e seis quilhas, sem falar na esquadrilha de Cetego que corria a
reunir-se-lhe e sem contar os comboios apresados que formavam à retaguarda.
Como um imenso e fantástico bando de gigantescas alcíones
vermelhas boiando nas águas, as velas de Lutácio perdiam de vista o extremo
leste da Cirenaica e puxavam para o mar alto a rumo de noroeste, quando
pequenos panos de púrpura começaram a salpicar de escarlate o horizonte, à
proa. Em pouco, pela rapidez da avançada, pelo número e pelos sinais arvorados
nos altos topes dos mastros, se reconheceu nos navios à vista a divisão de
Cetego. Chegadas à fala a esquadrilha e a esquadra, informado o almirante em
chefe de que o inimigo o procurava, pronto a combate — a formidável mole de
naus meteu em linha de guerra, tomando o rumo da Clauda...
Marco Antônio, com toda a sua frota vogando sempre para o sul na
esteira de Cetego, pairava então na altura de Lebena, a lutar com a marcha
lenta e pesada dos velhos quinquirremos que trazia, que eram o melhor da sua
esquadra, e com a violência constante de ventos contrários.
Mas os barcos cilícios, favorecidos por essa mesma circunstância,
voavam vorazmente sobre ele, como sobre um cardume de sardinha, nadando
tonto à flor d'água, perseguido pela tormenta e pelos grandes cetáceos, cai,
faminto e impiedoso, um bando de procelárias. E, no outro dia de manhã, as duas
frotas se avistaram.
À distância de três milhas mais ou menos Lutácio entrou a manobrar
as suas quilhas, dispondo-as na forma de um vasto triângulo de base dupla,
conforme a célebre tática de Duílio na batalha de Miles. Já a esse tempo as
velas romanas evoluíam também, mas em manobras difíceis e tardas, porque eram
totalmente formadas de grandes trirremes e pênteres. Além disso, com o vento da
proa, todas as suas unidades de combate se moviam a remos, e assim mesmo com
vacilações e incertezas constantes, pela nenhuma prática e destreza da maior
parte de seus marinheiros. Só a galé de Antônio e as outras que com ela
compunham o centro de resistência da armada romana, guarnecidas pelos veterano
de Óstia, executavam manobras seguras, perfeitas.
No entanto não conseguira ainda uma completa formatura de combate
e já a esquadra cilícia, na sua pasmosa ligeireza, a atacava com a divisão da
vanguarda ou da frente, mantendo porém firme e certo, nas faces, o colossal
triângulo boiante de sua forma ingente. Foi então que Marco Antônio mediu, com
acerto, a extraordinária possança inimiga, da qual quase desdenhara e zombara,
a princípio, quando, havia um mês, pela tarde, passando entre a Glauda e
Anápolis, lhe parecera que as quilhas leves de Cetego, mal o avistaram no
horizonte, se lançavam proa fora, a fugir. Vendo então que, se não pusesse em
prática quanto antes uma manobra decisiva e suprema, estaria irremediavelmente
perdido com todos os seus, tentou-a, em esforços extremos, dispondo, num
relance feliz e habilmente, com a maior instantaneidade, todos os grandes
quinquerremos da esquadra em quatro divisões de vanguarda, a fim de repelir e
envolver, se possível fosse, o primeiro choque violento dos mioparones e hemiolias ligeiras. Mas
Cetego não lhe deu tempo para o êxito, atacando-o de repente, por barlavento,
com uma multidão de birremes. E logo muitas das galés dessas quatro divisões
romanas foram postas a pique ou caíram prisioneiras...
De ambos os lados agora, escurecendo os ares, num silvar de
ciclone, as setas partiam, vibradas por milhares de braços alçados dentre um
fervilhar de homens coalhando as bordas e toldas, onde as torres de combate,
eriçadas de gente nos cimos, se erguiam, ao rumor das manobras, em meio aos
panos de púrpura que, encharcados d'água contra as chamas temerosas do petróleo
em fogo, pareciam estranhamente embebidos em sangue ou em vinho.
Seguiu-se ao primeiro grande golpe das miúdas embarcações cilícias
contra a vanguarda de Antônio um outro ainda maior de cinquenta trirremes
veleiros, os quais, rompendo de novo as divisões inimigas e penetrando no seu
seio, metiam no fundo a pontaços de rostros, ou abordavam furiosamente os
navios que podiam, jungindo-os a si com os arpéus e as pequenas pontes
volantes, por onde lhes despejavam no convés e cobertas pelotões densos de
soldados, apesar dos grossos jorros de pez derretido e de chumbo candente lançados
com desespero e furor do alto das torres de madeira, transformadas numa espécie
de crateras flutuantes em erupções contínuas...
Mas o combate não atingira ainda os núcleos principais das duas
frotas onde se achavam postadas, agora, para não serem facilmente assaltadas,
as grandes naus capitânias, em cujos altos pavilhões de comando os almirantes
rivais, dirigindo a ação em pessoa, se contemplavam enfurecidos como dois leões
da Numídia.
No entanto a vanguarda romana fora de todo aniquilada, não obstante
o pronto socorro que lhe enviara Antônio, procurando reforçá-la com quarenta
das suas melhores galés. Estas, porém, não chegaram a enfileirar-se às outras,
porque Lutácio, que não perdia uma só minúcia da batalha, logo lhes opusera
outros tantos trirremes. As galés então recuaram, temendo serem envolvidas, e
aprisionadas pelo inimigo que já lhes fendia irresistivelmente em cima.
Até esse instante, a esquadra cilícia perdera apenas vinte e dois mioparones, trinta e três hemiolias e dezesseis birremos. Os
navios maiores continuavam ilesos. Mas a frota romana ficara despojada de quase
metade, sendo a maior parte trirremes e pênteres.
Antônio, perturbado e fora de si com o desastre da sua vanguarda,
sem refletir em mais nada, ordenou imediatamente às filas que se seguiam
avançassem, a fundo, sobre o lado do triângulo que lhe pareceu mais acessível;
e ele próprio se jogou no meio delas, com os sessenta pênteres ainda intactos
que lhe restavam, num ataque decisivo. Visava, sobretudo, à divisão de Lutácio,
cujo trirreme reluzente de ouro e riquíssimo corria já ao seu encontro, seguido
por vinte birremos possantes e quarenta mioparones
e hemiolias esguias.
A esse tempo, Cetego, arrebatado pelo triunfo que coroava já os
seus navios e auxiliado eficazmente pelas esquadrilhas de Licínio Emílio e
Valério — as de Caio Lívio e Sétimo seguiam Lutácio —, derrotava e punha em
fuga completa a divisão da retaguarda romana que voava em socorro de Antônio.
Fora este o golpe decisivo à derrota do ex-oficial de Luculo, cujos pênteres,
atacados vigorosa e invencivelmente pelo chefe cilício e desamparados de todo
pelas forças da retaguarda, já batidas e enxotadas para longe, dispersaram
finalmente nas águas, embora engajados ainda na derradeira e tremenda
refrega...
Por todo o Mar, em torno, mastros e cascos em pedaços flutuavam
desoladoramente, ao acaso, na crista espumosa dos vagalhões. Em meio deles,
mortos boiavam em multidão. Numerosos náufragos, que o ferro ocasionalmente
poupara no torvelinho da luta mas que o marouço furioso tentava engolir com as
fauces hiantes, bracejavam desesperada e ansiosamente num último esforço de
salvação.
De parte a parte, agora, as naus, com as correntes e os ventos,
caíam pouco a pouco sobre as costas penhascosas de Creta que ondulavam além,
muito longe, como uma vaga mancha azulada sob um véu nevoento...
Quando as galés-almirantes vieram a chocar-se, enlaçadas uma a
outra e rugindo, à maneira de dois monstros marinhos de idades geológicas
remotas, foi como se um terrível cataclismo subvertesse de repente o Oceano. E
enquanto os chefes se batiam peito a peito, dentro das duas galés jungidas
pelas correntes e pontes, como formando um só casco, as guarnições,
enlouquecidas, chacinavam-se reciprocamente, sobre os castelos e toldas, num tumulto
horrível.
Da esquadra romana, a única nave que resistia ainda era a de
Antônio, cujo valor desesperado se opunha, num último impulso de heroísmo, à
pujança esmagadora da gente cilícia. Mas um instante chegou em que o envolveu
para sempre a rajada final e ele foi cair, de repente, sob o punhal de
Lutácio...
Vencedor, o glorioso chefe corsário fez um sinal a toda a frota. E
logo, na sua galé e nas demais, as músicas e as trombetas de guerra longamente
ressoaram em triunfo, enquanto um incêndio formidável rompia de súbito entre os
despojos romanos, devorando, em novelos de fumo e labaredas sinistras, o alto
pêntere de Antônio que boiava perdido nas ondas...
O sol caía já no ocidente, numa barra cor de vinho. Para os longes
recuados, nebulosamente envolvidos num polvilhamento de cinza, o disco imenso
do horizonte, sem a renda de uma ilha. No alto do Firmamento, onde a luz
expirava num violáceo de lis, pairava uma serenidade etereal que descia sobre
as águas desolando tudo.
A noite apontava a leste, envolta no seu imenso manto de sombra
salpicado de ouro.
Então, orgulhoso e sorrindo, abraçado à sua amante, Cneio Lutácio,
ainda com as mãos ensopadas no sangue do rival, de pé à popa, no tombadilho do
trirreme dourado, mandou aproar à Cilícia, a gozar o seu amor e as suas grandes
riquezas no seu castelo do Tauro, feito como um templo de Deuses sobre um trono
de altas rochas, dominando o Mar sem fim...
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