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"Não-Me-Toques"!
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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I
Passavam-se os anos, e Antonieta ia ficando para tia, — não que
lhe faltassem candidatos, mas — infeliz moça! — naquela capital de província
não havia um homem, um só, que ela considerasse digno de ser seu marido.
Ao Comendador Costa começavam a inquietar seriamente as exigências
da filha, que repelira, já, com desdenhosos muxoxos, uma boa dúzia de
pretendentes cobiçados pelas principais donzelas da cidade. Nenhuma destas se
casou com rapaz que não fosse primeiramente enjeitado pela altiva Antonieta.
— Que diabo! dizia o Comendador à sua mulher, D. Guilhermina, —
estou vendo que será preciso encomendar-lhe um príncipe!
— Ou então, acrescentava D. Guilhermina, esperar que algum
estrangeiro ilustre, de passagem nesta cidade...
— Está você bem aviada! Em quarenta anos que aqui estou, só dois
estrangeiros ilustres cá têm vindo: o Agassiz e o Herman.
Entretanto, eram os pais os culpados daquele orgulho indomável.
Suficientemente ricos tinham dado à filha uma educação de fidalga, habituando-a
desde pequenina a ver imediatamente satisfeitos os seus mais custosos e
extravagantes caprichos.
Bonita, rica, elegante, vestindo-se pelo último figurino, falando
correntemente o francês e o inglês, tocando muito bem o piano, cantando que nem
uma prima-dona, tinha Antonieta razões sobejas para se julgar um avis rara na sociedade em que vivia, e
não encontrar em nenhuma classe homem que merecesse a honra insigne de
acompanhá-la ao altar.
Uma grande viagem à Europa, empreendida pelo Comendador em
companhia da esposa e da filha, completara a obra. Ter estado em Paris
constituía, naquela boa terra, um título de superioridade.
Ao cabo de algum tempo, ninguém mais se atrevia a erguer os olhos
para a filha do Comendador Costa, contra a qual se estabeleceu pouco a pouco
certa corrente de animadversão.
Começaram todos a notar-lhe defeitos parecidos com os das uvas de
La Fontaine, e, como a qualquer indivíduo, macho ou fêmea, que estivesse em tal
ou qual evidência, era difícil escapar ali a uma alcunha, em breve Antonieta se
tornou conhecida pela "Não-me-toques".
II
Teria sido realmente amada? Não, mas apenas desejada, — tanto
assim que todos os seus namorados se esqueceram dela...
Todos, menos o mais discreto, o mais humilde, o único talvez, que
jamais se atrevera a revelar os seus sentimentos.
Chamava-se José Fernandes, e era o primeiro empregado da casa do
Comendador Costa, onde entrara aos dez anos de idade, no mesmo dia em que
chegara de Portugal.
Por esse tempo veio ao mundo Antonieta. Ele vira-a nascer,
crescer, instruir-se, fazer-se altiva e bela. Quantas vezes a trouxera ao colo,
quantas vezes a acalentara nos braços ou a embalara no berço! E, alguns anos
depois, era ainda ele quem todas as manhãs a levava e todas as tardes ia
buscá-la no colégio.
Quando Antonieta chegou aos quinze anos e ele aos vinte e cinco,
"Seu José" (era assim que lhe chamavam) notou que a sua afeição por
aquela menina se transformava, tomando um caráter estranho e indefinível; mas
calou-se, e começou de então por diante a viver do seu sonho e do seu tormento
Mais tarde, todas as vezes que aparecia um novo pretendente à mão da moça, ele
assustava-se, tremia, tinha acessos de ciúmes, que lhe causavam febre, mas o
pretendente era, como todos os outros, repelido, e ele exultava na solidão e no
silêncio do seu platonismo.
Materialmente, Seu José sacrificara-se pelo seu amor. Era ele,
como se costuma dizer (não sei com que propriedade) o "tombo" da casa
comercial do Comendador Costa; entretanto, depois de tantos anos de dedicação e
amizade, a sua situação era ainda a de um simples empregado; o patrão, ingrato
e egoísta, pagava-lhe em consideração e elogios o que lhe devia em fortuna.
Mais de uma vez apareceram a Seu José ocasiões de trocar aquele emprego por uma
situação mais vantajosa; ele, porém, não tinha ânimo de deixar a casa onde ao
seu lado Antonieta nascera e crescera.
III
Um dia, tudo mudou de repente.
Sem dar ouvidos a Seu José, que lhe aconselhava o contrário, o
Comendador Costa empenhou a sua casa numa grande especulação, cujos efeitos
foram desastrosos, e, para não fechar a porta, viu-se obrigado a fazer uma
concordata com os credores. Foi este o primeiro golpe atirado pelo destino
contra a altivez da "Não-me-toques".
A casa ia de novo se levantando, e já estava quase livre dos seus
compromissos de honra, quando o Comendador Costa, adoecendo gravemente,
faleceu, deixando a família numa situação embaraçosa.
Um verdadeiro deus ex
machina apareceu então na figura de Seu José que, reunindo as suadas
economias que ajuntara durante trinta anos, e associando-se a D. Guilhermina,
fundou a firma Viúva Costa & Fernandes, e salvou de uma ruína iminente a
casa do seu finado patrão.
CAPÍTULO IV
O estabelecimento prosperava a olhos vistos e era apontado como uma
prova eloquente de quanto podem a inteligência, a boa fé e a força de vontade,
quando o falecimento da viúva D. Guilhermina veio colocar a filha numa situação
difícil...
Sozinha, sem pai nem mãe, nem amigos, aos trinta e dois anos de
idade, sempre bela e arrogante em que pesasse a todos os seus dissabores, aonde
iria a "Não-me-toques"?
Antonieta foi a primeira a pensar que o seu casamento com José
Fernandes era um ato que as circunstâncias impunham...
Antes da sua orfandade, jamais semelhante coisa lhe passaria pela
cabeça. Não que Seu José lhe repugnasse: bem sabia quanto esse homem era digno
e honrado; estimava-o, porém, como a um tio, ou a um irmão mais velho, — e ela,
que recusara a mão de tantos doutores, não podia afazer-se a ideia de se casar
com ele.
Entretanto, esse casamento era necessário, era fatal. Demais, a
"Não-me-toques" lembrava-se de que o pai, irritado contra os seus
contínuos e impertinentes muxoxos, um dia lhe dissera:
— Não sei o que supões que tu és, ou o que nós somos!
Culpa tive eu em dar-te a educação que te dei! Sabes qual é o marido que te convinha? Seu José! Seria um continuador da minha
casa e da minha raça!
Tratava-se por conseguinte, de homologar uma sentença paterna. A
continuação da casa já estava confiada a Seu José: era preciso confiar-lhe
também a continuação da raça.
Assim, pois, uma noite ela chamou-o e, com muita gravidade,
pesando as palavras, mas friamente, como se se tratasse de uma simples operação
comercial, lhe deu a entender que desejava ser sua mulher, e ele, que
secretamente alimentava a esperança desse desenlace, confessou-lhe trêmulo, e
com os olhos inundados de pranto, que esse tinha sido o sonho de toda a sua
vida.
V
Casaram-se.
Nunca um marido amou tão apaixonadamente a sua esposa. Seu José
levou à Antonieta um coração virgem de outra mulher que não fosse ela; fora das
suas obrigações materiais, amá-la, adorá-la, idolatrá-la, tinha sempre sido e
continuava a ser a única preocupação do seu espírito...
Entretanto, não era feliz; sentia que ela o não amava, que se
entregara a ele apenas para satisfazer a uma conveniência doméstica: era
apática; sem querer, fazia-lhe sentir a cada instante a superioridade terrível
das suas prendas. Ninguém melhor que ele, tendo sido, aliás, até então, o único
homem que lhe tocara, se convenceu de quanto era bem aplicada aquela ridícula
alcunha de "Não-me-toques".
O pobre diabo tinha agora saudades do tempo em que a amava em
silêncio, sem que ninguém o soubesse, sem que ela própria o suspeitasse.
VI
Antonieta aborrecia-se mortalmente naquele casarão onde nascera, e
onde ninguém a visitava, porque o seu caráter a incompatibilizara com toda a
gente.
O marido, avisado e solícito, bem o percebeu. Admitiu um bom sócio
na sua casa comercial, que prosperava sempre, e levou Antonieta à Europa,
atordoando-a com o bulício das primeiras capitais do Velho Mundo.
De volta, ao cabo de um ano, construiu uma bela casa no bairro
mais elegante da cidade, encheu-a de mobílias e adornos trazidos de Paris, e
inaugurou-a com um baile para o qual convidou as famílias mais distintas.
Começou então uma nova existência para Antonieta, que, não
obstante aproximar-se da medonha casa dos quarenta, era sempre formosa, com o
seu porte de rainha e o seu colo opulento, de uma brandura de cisne.
As suas salas, profundamente iluminadas, abriam-se quase todas as
noites para grandes e pequenas recepções: eram festas sobre festas.
Agora já lhe não chamavam a "Não-me-toques"; ela
tornara-se acessível, amável, insinuante, com um sorriso sempre novo e
espontâneo para cada visita.
Fizeram-lhe a corte, e ela, outrora impassível diante dos
galanteios, escutava-os agora com prazer.
Um galã, mais atrevido que os outros, aproveitou o momento
psicológico e conseguiu uma entrevista — Esse primeiro amante foi prontamente
substituído. Seguiu-se outro, mais outro, seguiram-se muitos...
VII
E quando Seu José, desesperado, fez saltar os miolos com uma bala,
deixou esta frase escrita num pedaço de papel:
"Enquanto foi solteira, achava minha mulher que nenhum homem
era digno de ser seu marido; depois de casada (por conveniência) achou que
todos eles eram dignos de ser seus amantes. Mato-me."
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